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20 de novembro de 2012

Clube do Conto - Caça: Carlos Rosa Moreira



Vi quando o moleque arrancou a bolsa dos ombros da senhora e quase a derrubou no chão. Foi muito rápido. Veio na corrida, abocanhou a bolsa e continuou correndo. Esgueirou-se entre pernas e automóveis. Quando a mulher gritou, ele ia longe, fora das vistas indiferentes dos que passavam, mas não da minha. Eu esperava por uma oportunidade dessas. Andava pelas ruas observando, atento à movimentação dos moleques. Apalpei a meia trinta e cinco oculta no cós: teria de chegar perto, bem pertinho... E teria de ser num lugar de pouco movimento.

Não perdi de vista o pixaim descolorido pela água oxigenada. Ele entrou por uma rua, saiu em outra; deu a volta no quarteirão movimentado, se misturou às pessoas, parou na porta de uma galeria. Da loja de discos ao lado, vinha o som de um pagode cantado por um sujeito de voz pastosa; na calçada, camelôs anunciavam seus produtos criando uma insuportável algaravia. O moleque observou tudo durante um tempo, depois foi andando. Ia devagar, esperto, tinha o punho esquerdo fechado à altura do peito, com a mão direita espalmada dava umas pancadinhas no punho fechado como se marcasse um ritmo. A todo momento se voltava, sua visão era de trezentos e sessenta graus. Dobrou a esquina deixando a rua principal e seguiu em direção à praia.

Duas meninas com uniforme escolar vinham pela calçada. De longe, vi quando ele as interpelou. Ameaçava-as com um caco de vidro. Pegou uma mochila colorida, apoderou-se de uma bolsinha, arrancou um reloginho, mas a mão de um senhor acertou em cheio no seu pescoço. Do jeito que caiu se levantou, e antes que um pontapé o pegasse, já estava longe. Parei para ajudar a procurar o reloginho caído no chão. Isso me fez perder o moleque de vista. Dei voltas pelos quarteirões e, após cortar várias ruas, vi uma mulher que tentava estacionar numa vaga apertada. O flanelinha sinalizava com a mão para ajudá-la. Era ele. Parei na esquina, apalpei a calça; a rua era muito calma, um lugar interessante...

Quando a mulher terminou a manobra e abriu a janela para lhe dar uma gorjeta, ele a assaltou com o caco de vidro. Pegou a bolsa que a mulher entregou, remexeu dentro, tirou o que queria e jogou a bolsa no chão. Corri para alcançá-lo, mas um porteiro também correu. Dois rapazes apareceram e foi uma gritaria danada que reverberou naquela rua cercada de prédios. O moleque parecia uma gazela. A perseguição atravessou duas esquinas, mas, de repente, ele sumiu. Os rapazes e o porteiro retornaram enraivecidos e excitados.

Eu continuei. Passei um quarteirão, passei outro. Quando ia cruzar a terceira esquina, levei uma trombada que, por pouco, não me derrubou. Aos meus pés, apavorado, o moleque se arrastava para um vão de parede. O nariz sangrava, tinha os olhos arregalados e tremia. Levou o indicador à boca, ia implorar alguma coisa. Enfiei a mão dentro da calça e senti o contato com o metal morno. Segurei a pistola já com o dedo no gatilho, mas uma barulheira de vozes intimidou meu gesto. Um grupo de rapazes mal-encarados vinha em nossa direção. O da frente quase era arrastado por um cão pitbull.

O moleque fez cara de choro, implorou socorro com os olhos esbugalhados. Olhei o medonho grupo que se aproximava, olhei o moleque; antes que eu pudesse pensar qualquer coisa, ele se levantou e correu. Ao atravessar a rua, levou um trompaço de uma bicicleta que vinha na contramão, jogando-o a mais de dois metros. Os rapazes e o pitbull o alcançaram ainda no chão. Não o vi mais. Também não vi o pitbull que se enfiou na confusão de pernas que chutavam e pisavam. Ouvi uns gritos de terror, mas foi coisa ligeira.

Ajeitei a meia trinta e cinco no cós, virei as costas e fui andando. Lembrei-me de um filme. Havia uma cena em que um atobá mergulhava e pescava um peixe que não parava de se debater em seu bico. E o peixe tanto se debateu que se soltou em pleno ar, mas antes que chegasse à água, foi capturado por uma gaivota que vinha num rasante.

Retornei à rua principal e fiquei no meio daquele movimento de gente para lá e para cá. Divaguei um pouco, observando as pessoas. Até que vi, sentadinho no mármore da entrada de uma padaria, o moleque de pixaim descolorido. Os olhinhos espertos observavam em trezentos e sessenta graus, as mãozinhas magrelas marcavam um ritmo nervoso batendo palmas sem som.


2 comentários:

  1. Confesso que eu torço pelo moleque de pixaim descolorido... E que o narrador-armado seja preso - ou se frustre, na sua caça psicopata. Se o cara já sai de casa armado, tem mais é que morrer com a própria bala. Já o moleque deve ser o mesmo retratado em "Meu guri", do Chico Buarque... Imagino a mãe favelada abrindo as bolsas e finalmente "se identificando" com os documentos ali existentes. O "perigoso" na história é o homem com arma de fogo, assassino em potencial. Como ele, o grupo encabeçado pelo pitt bull, também sedento de massacres pelas próprias mãos. Já o garoto não cortou ninguém com seu caco de vidro... Bom conto. Põe pra fora os temores da classe média e os horrores que se dispõe a praticar em defesa de sua vidinha. Parabéns, Carlos!

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  2. O conto de Carlos Rosa Moreira não nos coloca em oposição ao menino, de forma alguma. Ele só faz o nosso coração bater forte com vontade de mudar certas situações da sociedade. Se alguém desse uma pequena chance a esse menino, será que ele seria o mesmo selvagem em busca de proventos? Onde estão os que deveriam cuidar da educação dele? Os pais ensinaram-no a respeito da vida? Ora, eu não vou jogar pedras no menino que poderá se tornar um adulto perigoso. Eu culpo, sim, essa sociedade que o abandonou e fechou as portas. O homem que observa o moleque revela intenções de resgatá-lo? Se não, duvido que a violência possa ser diferente dessa que estamos presenciando.

    Temos outros olhares para o conto, questões completamente contrárias as que foram feitas, mas aguardaremos os próximos capítulos.

    Excelente!

    Sonia Salim

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