Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda.
(Cecília Meireles, O Romanceiro da
Inconfidência)
Era final
de tarde. Sozinho no meu canto mais seguro do mundo, eu regava as plantas do
meu quintal. Nunca encontrei nada mais seguro que regar minhas flores, elas me
escutam e eu as faço felizes com um pouco de água. São humildes, pedem pouco
para me suportar. Enfim, eu estava lá, absorto na perfeição do silêncio, quando
ele me apareceu como num flash: não estava lá, de repente estava. Com os pés
plantados no chão, a um metro e meio de mim, com a cabeça inclinada para o
lado, olhando-me com um olho só, espiava-me nada discreto.
Surpreso
em vê-lo ali, tão perto, fato incomum entre os voadores, admirei-o, também de
lado, com um olho só, mas meio encabulado. Era a primeira vez que um deles se aproximava
tanto de mim, e o fato de me olhar daquela maneira direta, deixou-me
incomodado; mas não tanto quanto o assombro que senti quando ele me dirigiu a
palavra:
― E aí,
rapaz, tudo bem?
(Eu,
silêncio)
― Ô
rapaz, estou falando com você!
(E eu,
silêncio)
Enquanto
meus olhos moviam-se convulsivamente para todos os lados, eu não encontrava
forma de fechar a boca e articular alguma sílaba que fosse.
― O que é
que há com você, meu camarada, é tímido ou idiota? Quem sabe mudo?! ―
perguntou-me sem cerimônia.
― Você
está falando comigo? ― consegui tremular essas palavras que, na verdade, não
saíram da minha boca; caíram.
― Claro!
Está vendo mais alguém aqui?
― Não...
não estou. É que... é que estou..., há meu Deus! É que não consigo acreditar.
Nunca um de vocês falou comigo antes.
― O que
você quer dizer com um de vocês? Por acaso você não conversa com pardais? Tem
algo contra nós? Prefere os bem-te-vis, as araras, os papagaios imorais ou
alguma outra dessas aves ornamentais metidas?
― Não,
não é isso, eu quis dizer que nunca um pássaro falou comigo.
― Ah,
está bem, entendo, nós, pássaros, somos meio temerosos dos humanos, hahahaha,
até mesmo esses exibidos que citei agora, na verdade, são temerosos. A verdade
é que vocês não são muito gentis conosco. Sabe como é!
― É
verdade ― respondi com os olhos incrédulos do feio que foi beijado pela rainha
do baile; o que ele percebeu.
― Está
tudo bem com você, rapaz? Parece meio esquisito.
― Estou
bem, estou bem, é que você me pegou desprevenido.
― Sei,
sei, peguei você com as calças arreadas, como vocês dizem, hahahahaha! Mas, se
quiser, posso ir embora e deixar você aí com suas flores.
― Não,
pode ficar. Fique, por favor!
― Certo,
certo! Eu perguntei por que não gosto de incomodar ninguém, não sou esses
pombos estúpidos que ficam por aí fazendo suas necessidades em qualquer lugar,
sujando tudo e ainda sendo alimentados pelos humanos com migalhas de pão; isso
é muito triste. E por falar em alimentar, você não teria aí um pãozinho para
mim?
― Mas
você acabou de reclamar dos pombos...
― Você se
apega a cada detalhe, rapaz! Tem ou não um pãozinho para mim?
― Tenho
sim, vou pegar para o senhor.
― Senhor,
não! Eu pareço velho para você? Minhas penas estão desbotando? Meu bico está
flácido? Minhas pernas estão tremendo? Faça-me o favor! ― falou alto com as
mãos na cintura, digo, com as asas a cintura; se aquilo era uma cintura.
― Não!
Falei apenas por respeito.
― Certo,
mas me trate por você.
― Ok,
como quiser. Vou pegar seu pão.
― Está
bem! Eu aguardo.
Mas que
diabos eu comi no almoço? eu me perguntava, enquanto caminhava em direção à
cozinha e minhas pernas dançavam o samba do crioulo doido. Não é possível, nada
me tira da cabeça que alguma coisa alucinógena está me afetando; quem sabe
aquele arroz meio esquisito, de cor estranha. Tenho que me lembrar de nunca
mais comprar aquela marca. Ou será que bati com a cabeça e não me lembro? Era
tudo o que eu não precisava, enlouquecer antes de ser feliz. Que tipo de maluco
acredita que conversa com pássaros? Qual será meu próximo passo, conversar com
as lagartixas sobre o porquê de elas sempre concordarem com tudo? Minha cabeça
rodava incrédula do absurdo da situação.
Apesar do
assombro de Dr. Dolittle, consegui fingir ter uma mente saudável, pegar
o pão e voltar ao pardal.
― Pronto!
Aqui está, pode comer.
― O que é
isso, ficou maluco? ― gritou abrindo as asas como se estivesse se preparando
para me esbofetear a cara. Sua voz aguda tornava-se quase insuportável quando
esbravejava; escavava meu tímpano feito uma agulha.
― O que
foi, você não pediu pão?!
― Sim,
mas como você quer que eu coma um pão desse tamanho? Eu sou um pássaro, não um
crocodilo. Preciso que você o esmigalhe para mim.
― Tudo
bem, tudo bem, desculpe-me, vou fazer isso já (Não acredito que estou mesmo
falando com um pássaro, sussurrei para o outro Eu são que ainda devia estar
dentro de mim).
― Assim
está melhor ― disse o pequenino com um sorriso matreiro (Um sorriso matreiro?
De um pássaro? Quanta loucura!).
Depois
que esmigalhei o pão, não pude me furtar de observar a rapidez e a precisão com
que aquela coisinha pequena bicava os farelos no chão; possuía a destreza e a
agilidade de um... de um..., bem, de um pássaro, claro! E naquele mesmo momento
surreal, eu me peguei imaginado como seria bom voar, conhecer o mundo, está
acima de tudo e de todos, pousar sobre um fio de dezenas de mil volts e, não só
não morrer eletrocutado como poder ficar lá observando a barafunda da rua, os
sorrisos e gritos dos daqui de baixo, a beleza da vida que se movimenta sem
cessar e a feiúra dos esgotos humanos que se escondem nos becos mais sombrios e
furtivos ― eu sei, isso não era hora de pensar em feiúras; mas fazer o quê, não
pude evitar. Enfim, seria bom voar como um pássaro que namora o vento e não se
engarrafa com as máquinas velozes aqui de baixo. Como seria... mas não era, por
que durante aqueles poucos segundos em que sonhava fui despertado pelo
pequenino que me trouxe de volta à realidade com uma leve bicada no meu pé
descalço.
― O que
você está pensando aí, rapaz?
― Eu
estava só imaginando como deve ser bom voar.
― Ah, é
sim, é maravilhoso poder ser livre, dar uns rasantes, empoleirar-se numas
árvores, nuns fios elétricos sem se eletrocutar; é maravilhoso, o que estraga é
a sua raça, vocês, humanos invejosos de nossa liberdade.
― Nós?!
Mas por quê?
― Ora,
vocês parecem odiar nossa liberdade, sempre querem nos aprisionar como se fôssemos
bibelôs sem sentimentos; é só um de nós darmos sopa que lá vem um alçapão
desgraçado nos abocanhando, e pouco depois nosso mundo se transforma numa
gaiola. Nós sofremos com isso, sabia? Eu quero ser livre, eu quero fazer aquilo
que nasci para fazer, eu quero voar sem ter que me preocupar se algum humano
egoísta não vai me privar disso para o seu bel prazer.
― É... Eu
imagino. É muito cruel o que fazem com vocês. Você tem razão. Inclusive, certa
vez, um dos nossos pensadores, um sábio homem chamado Spinoza disse que “ser
livre é fazer o que segue necessariamente da natureza do agente”, ou seja, é
aquilo que você acaba de me dizer, ser livre é fazer aquilo que a sua natureza
destinou-lhe fazer. Ninguém tem o direito de tirar isso do outro... ― nesse momento
parei de falar e, em silêncio, percebi-me ridículo: não acredito que estou
citando Spinoza a um pássaro, que estupidez!
― Pois é!
― ele continuou, sem dar bola para minha cara de idiota. ― Eu queria ver se
esses bandidos iriam gostar de ficar anos e anos presos numa gaiola, sem
direito a sair, brincar com os amigos, viajar, ser livre. Afinal por que acham
que têm o direito de nos aprisionar? Por que eles acham que têm mais direito do
que eu de ser livre?
(Nesse
momento, suas penas se agitavam como os braços de um italiano nervoso).
― É
verdade ― corroborei.
― Isso é
coisa de gente estúpida: não aceitariam ser presos, mas prendem os pássaros. Se
não gostam de ficar engaiolados, não sei por que engaiolam a gente.
― Você
tem razão.
― Eu sei
que tenho! Agora me dá licença ― disse e se dirigiu em minha direção, sem a
menor cerimônia ou preocupação. Tenho certeza que, se não fosse tão pequeno,
passaria por cima de mim como o verdadeiro senhor do meu quintal.
― O que
foi? ― perguntei.
― Eu
quero beber um pouco dessa água aí do lado do seu pé; essa poça aí ― e me
apontou com a asa direita uma pequena poça d’água que, levemente, ondulava ao
sabor do vento, junto ao pé do meu roseiral.
― Ah,
claro! Tudo bem!
― Estou
meio entalado com esse pão ― explicou-me ― e preciso beber um pouco de água,
antes que eu comece a perder a voz.
― Fique à
vontade!
― Ahhhh,
água boa, tá tá tá tá. Eu precisava disso.
Por
alguns instantes, ele se esqueceu de mim e se ocupou apenas de sua água. Seus
movimentos pareciam com o daquelas armações gigantescas de petróleo usadas para
perfurar o solo em busca do ouro negro, baixando e levantando a cabeça
continuamente, para sorver o líquido do chão. E como o silêncio já me incomodava,
resolvi, mesmo desajeitadamente, reiniciar uma conversa com ele:
― Você
voa sempre por aqui? ― perguntei com um sorriso de canto de boca, como um
adolescente que não sabe o que dizer a menina linda a quem acaba de ser
apresentado no aniversário de alguém.
― Sim,
vôo ― respondeu-me borbulhando as palavras, enquanto mergulhava o bico na poça
d’água. ― E você, cultiva flores?
― Só
essas aqui. Gosto de tê-las no meu quintal; embelezam o ambiente.
―
Embelezam o ambiente... Parece coisa de bichinha, hahahahaha ― soltou-me essa
com um sorriso largo que jamais imaginei ver sair de uma boca, digo, de um
bico, algum dia.
― Não
sabia que você tinha senso de humor ― respondi (Palhaço! pensei).
― E por
que não teria, acha que todo pássaro é estúpido? É claro que eu tenho senso de
humor, o que você acha que nós pássaros fazemos quando não estamos voando? Nós
conversamos uns com os outros, brincamos, contamos piadas, dançamos valsas ― e
mexeu as pernas curtas feito um bêbado que teimava em não cair.
― E isso
é uma valsa? ― perguntei tentando controlar o riso que explodia, por medo de
sofrer umas bicadas insuportáveis nos meus pés.
― O que
foi? É que eu estou meio enferrujado ― respondeu-me contrariado. ― Mas você tá pensando
o quê? Todos nós dançamos. Somos exímios dançarinos. Você nunca percebeu a
semelhança entre os passos de uma valsa e os movimentos dos pássaros num vôo?
São iguais, rapaz, a valsa foi inspirada em nós, nós somos os verdadeiros
idealizadores da valsa. Mas hoje eu estou meio mal, andei doente, esses últimos
dias, e não posso dançar direito, mas logo logo volto a ter vento nas pernas.
― Sei,
sei.
― O que
foi, está duvidando de mim? Não debocha de mim não que eu te dou uma bicada nas
fuças, rapaz. Tá pensando que tamanho é documento?!
―
Desculpe ― respondi após dar um passo para trás ―, eu não queria debochar de
você, é que eu não sabia que pássaros dançavam, muito menos que a valsa foi
inspirada em vocês.
― Você
não sabe de muitas coisas, hein?! ― disse balançando a cabeça com ar de desdém.
E olhando para o lado sussurrou: ― Humanos, sempre achando que são os únicos no
mundo que sabem se divertir.
― Eu não
penso assim, eu acredito que todos merecem viver.
― Você
deve mesmo achar que os pássaros são estúpidos... ― continuou sem dar a menor
bola para a minha defesa, e seguiu falando sozinho como orador maluco. Parecia
um palestrante italiano revoltado, gesticulando com as asas, apontando para o
céu, para o chão, abrindo e fechando o bico feito uma matraca desgovernada. Eu
quase não entendia o que dizia para si mesmo. Mas, já no final de seu monólogo,
ouvi-o voltar ao assunto que havíamos abordado há alguns minutos atrás: ― Tenho
certeza de que você deve ter alguma gaiola escondida por aí, com algum colega
meu lhe servindo de decoração para a casa.
― Claro
que não! Eu já deixei claro que não concordo com o aprisionamento de pássaros.
― Sei,
sei.
― Falo a
verdade!
― Tudo
bem, rapaz, vamos esquecer isso. Eu acredito em você.
― Então
por que disse aquilo?
― Só para
desopilar. Precisava botar para fora a raiva que às vezes sinto dos humanos.
Sabe o que mais me impressiona em vocês? É a capacidade que têm de serem
escravos; talvez por isso queiram aprisionar a tudo e a vocês mesmos. Estão
sempre criando máquinas que se obrigam a saber utilizá-las, mesmo que não
tenham uma real necessidade delas, criam seus carros, criam suas geringonças,
criam seus mitos e crenças e acabam tornando-se escravos de tudo o que criaram.
Por que se enjaulam tanto? Por que não sabem ser livres com nós? Não precisam
de asas para serem livres, precisam de desprendimento, precisam sentir o vento
que todos os dias toca os seus rostos e aprenderem com ele que quando lhe
obstruem o caminho, ele logo encontra outra saída, mas nunca se deixa prender,
nunca se deixa governar pelos desejos de outros, pela imposições das formas ou
modismos. Eu acredito, rapaz, que o destino de todo ser vivo é a liberdade,
mesmo o de vocês que são tão incompetentes para ela.
― Isso
foi bonito!
―
Obrigado!
― Bonito
mesmo! Você falou igual a um grande poeta que tivemos no meu país; ele se
chamava Vinícius de Moraes, e certa vez disse que “o destino dos homens é a
liberdade”.
― E ele
tinha razão, é o destino de vocês, e é o nosso também, mas vocês atalham a sua
liberdade e aniquilam a nossa e de vários outros seres que não respeitam; são
egoístas, são egocêntricos. Já não é o bastante escravizarem-se em nome de seus
bens, de suas posições sociais, de sorrisos e falsas ideologias, ainda querem
usar-nos como presentes e objetos para decoração de suas vidas vazias?! Vocês
têm muito que aprender conosco, os verdadeiros membros da liberdade, nós que
...
E
continuou falando, falando e gesticulando aos quatro ventos como se palestrasse
para um auditório ávido por sua sabedoria. Eu não sei onde e como um pássaro
adquiriu tanta filosofia. Mas sei que, enquanto ele falava, veio-me à lembrança
uma citação de Rousseau que há muito tempo não ruminava, desde os tempos de
faculdade, quando um professor obrigava-nos a decorar algumas máximas de
pensadores para recitarmos e comentarmos na sua aula, como prova de nossa
capacidade de interpretação e apreço pelas ciências humanas, que ele, nosso
professor, julgava indispensável para a formação do ser humano (hoje concordo
com ele); enfim, as palavras de Rousseau eram as seguintes: “O cidadão, ao contrário [do homem
selvagem], sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para
encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu
encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir
a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada
poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria
baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com
desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la”. Será que o pardal já
havia lido o mestre francês e o seu “Discurso sobre a desigualdade”? Claro que
não! Quer dizer... Quem sabe?! Loucura? Eu sei.
Contudo, o importante é que senti vergonha, diante
daquela criatura tão pequenina, por nosso orgulho, por nossas prisões, por
nosso desprezo a tudo aquilo que não concordava com nossa forma arbitrária e
megalomaníaca de gerir o mundo. Nós, servos de nossa própria criação,
bajuladores, servis de homens que, muitas vezes são tão pequenos que temos que
fazer um grande esforço para não os sublimarmos e acabarmos por perder alguma
hipócrita ascensão; e tudo isso para fugirmos de nossa liberdade. É,
empolguei-me um pouco. Mas, na verdade, e naquele instante, eu já sonhava com
revoluções, lado a lado com o pardal, numa luta pelos direitos de liberdade.
Porém, em meio a essa auto-pregação mental que me dominava, onde já me tornara
professor e aluno, esqueci que havia outro palestrante diante dos meus pés. Mas
acordei de mim mesmo ainda a tempo de ouvi-lo dizer:
―E por
isso estamos aqui, escondendo-nos de vocês, brutamontes sem coração, invejosos
de nossas asas...
―
Acredito que você já disse isso ― não pude resistir, tive que interrompê-lo.
―E daí?!
― rasgou-me outra vez os tímpanos com sua voz argentina. ― Vale sempre à pena
repetir uma boa frase.
― Todos
os pardais são assim, animados como você?
― Não,
mas nenhum é lerdo assim como você, hahahahaha!
Era
incrível a capacidade que ele possuía de mudar de humor; chegava à beira do
absurdo, da falta de bom senso.
― Você é
mesmo muito engraçado ― eu ainda disse com sarcasmo; porém inútil.
― E sou
mesmo! ― respondeu prontamente com a animação de um hiperativo. Não lhe restava
mais o menor resquício da irritação de há pouco. E continuou, sem perder a
piada: ― Já você é um mama-na-égua com cara de bundão, hahahahaha!
― O que é
isso? Também não precisa xingar!
― Relaxa,
relaxa e goza, eu estou só mexendo com você, rapaz, sossega, hahahaha!
―
Desculpe, é que eu ando meio estressado ultimamente; tenho muita coisa na
cabeça.
― É
galhada?! Hahahahaha! Entendeu? Galhada, chifre, hahahahaha. Eu não podia perder
essa, hahahahaha... Deixa pra lá, você não tem senso de humor mesmo.
― Eu
entendi a sua brincadeira “espirituosa”. Mas não é chifre; não tem nada a ver
com mulher. É trabalho.
― Sei,
sei. Mas você tem que aprender a relaxar, deixar as coisas rolarem,
sdivertir-se, pegar umas pardalzinhas, quer dizer, umas gatinhas; aliás, que
negócio é esse de gatinhas que vocês falam: é porque acham suas mulheres
parecidas com gatos ou são chegados a um pêlo mesmo?
― É
apenas uma forma carinhosa de nos referirmos às mulheres. Isso quer dizer que
elas são bonitas, manhosas, macias, delicadas...
― Sei,
sei, frescura pura!
― Você
não é muito romântico, não é?!
― Por que
diz isso?
― Está
sempre debochando de coisas sensíveis. Primeiro foi das minhas flores, agora do
nosso tratamento para com as mulheres.
― Espera
aí, meu camarada, ser romântico é uma coisa, frescurite é outra! Eu sou
romântico, muito romântico, para a sua informação ― e fez uma ridícula cara de
amante latino; se é que posso me referir assim à expressão facial de um
pássaro. Que expressão facial? você me pergunta. Mas eu garanto que vi uma
expressão facial naquele rosto, digo, naquela cara.
― Você
deve ser mesmo muito romântico ― falei com a credulidade de um niilista.
― Sou! ―
disse com ira e deu dois passos para frente como se fosse dar início a algum
desfile de moda. E continuou: ― Por exemplo: quando chamo uma pardalzinha para
sair, eu a levo numa poça d’água brilhante, dessas que refletem a lua, aí
batemos um papo, eu cubro suas asas com as minhas, assobio no seu ouvido, digo
que ela tem penas lindas e macias, e algumas vezes até canto um pouco para ela.
Aí a belezinha fica toda manhosa, toda mole, e pronto, tá no bico! Eu sou mais
eu, rapaz ― encerrou abrindo as asas, como um verdadeiro canastrão (Eu sei,
canastrão não tem asas para abrir, mas vocês me entenderam).
― É,
parece bonito – respondi-lhe com a boca torta; tendo como único propósito
irritá-lo.
― Parece
bonito? O que é que foi, está de brincadeira comigo? Isso é lindo, rapaz, é o
máximo do romantismo entre as aves. Você nunca levou uma menina para uma poça
d’água?
― Poça
d’água?
― Uma
praia à noite, uma lagoa, lago, seja lá o que for que tenha água. A água é
romântica, rapaz, deixa as fêmeas doidinhas; aquela água refletindo a lua,
balançando mansamente, rumorejando, ahhh, é um barato! Você deveria
experimentar.
― Tá bom,
vou pensar nisso.
― Pense.
Fique aí pensando que agora eu tenho que ir embora.
― Mas já?
―
Desculpe-me, mas preciso ir. Tenho um encontro. Uma pardalzinha linda está me
esperando no fio de telefone da esquina da Rua Gonçalves Medeiros com a Padre
Xavier. Depois eu volto para a gente continuar o papo.
― Tá
certo! Obrigado por descer aqui e falar comigo.
― Por
nada! Foi um prazer, mané, hahahahaha!. Brincadeirinha! Estou tirando um sarro.
Vou nessa, senão a presa vai embora. Elas não gostam de esperar, sabe como é
que é: passam horas ajeitando as penas, esmaltando o bico, e sempre chegando
atrasadas aos encontros, mas na hora de esperar a gente, não têm paciência.
― É, sei
como é.
― Pois é!
Bem, vou indo. Até mais!
― Até
mais, foi um prazer!
― Tchau,
rapaz!
― Tchau!
E ele se
foi. Bateu as asas e alçou vôo como se fosse a coisa mais fácil do mundo,
deslizando pelo céu azul. Ainda o consegui acompanhar por algum tempo, mas
depois foi se tornando cada vez menor, mais distante, até sumir entre os
prédios que, por aqui, brotam do chão como erva daninha no mato. E eu fiquei
ali, parado, pensando que nem no mais psicodélico dos meus sonhos sonhei um
pássaro de voz argentina que me pregava liberdade; não, nem no meu mais louco
devaneio surreal da adolescência me vi personagem de um conto de fadas. E
agora nem sei mais o que pensar de mim. Melhor não pensar nada. Mas quanto a
ele, como não pensar? Aquela pequena matraca ambulante contagia a gente, e sua
liberdade me deixou saudoso das asas que nunca tive.
*Texto publicado pela primeira vez em 2009,
no site Cronópios.
William Lial é
escritor (poeta, cronista, contista, romancista de um romance ainda não
publicado), ensaísta literário, e mestre em Literatura Comparada. Autor de três
livros de poemas, Sombras (2001), Noturno (2003) e O mundo de vidro (2005). Além de colaborar com jornais e revistas
do país. Para saber mais sobre o autor e seus livros basta acessar e/ou seguir
seu blog: http://williamlial.blogspot.com/, curtir sua
página no Facebook: https://www.facebook.com/WilliamLialEscritor ou contatá-lo
por e-mail: wlial1208@gmail.com.
Ilustração do texto: Tomasz Alen Kopera, 11H. Pintor surreal polonês, residente
na Holanda. Sua inspiração é a natureza humana e os mistérios do universo.
Procurando induzir-nos a refletir sobre nós mesmos, o artista usa temas da
natureza mesclados ao homem e a divindades.