TREVAS: novaes/
Não
me é fácil falar. Vinha pela rua escura, cabisbaixa, pensativa, sob o peso da
noite, da minha vida à meia-luz, nada é claro, claro, apenas minha angústia
perene, sei lá de quando ela vem, houve um dia em que a vida parou, partiu-se
em duas metades – uma verde, brilhante, esperançosa e sorridente, que ficou
para trás, outra cinzenta, turva, disforme, essa metade em que vivo agora, vida
pelo meio, pisando em chãos inseguros, em superfícies suspensas, cambaleantes,
que não me permitem nada mais além desse andar vacilante. Apesar de todas as
dúvidas em meu pensamento absorto, eu mantinha um passo que se tentava firme
naquela noite, naquela rua deserta, mais por medo do que por decisão.
Pensei
em Alberto. Não sei por que esse marido, na verdade ex, diria ex...tinto se
pudesse, surgiu em minha vida e por que fez o que fez, sua covardia, seu medo,
sua fraqueza. Se o desgraçado não estava preparado para um filho, para um filho
com problemas, se o babaca não estava ciente do que é ser companheiro e do que é
ser pai, por que diabos se apresentou à minha pessoa? Pelos meus belos olhos?
Meu par de coxas? Minha bunda? Puta que pariu! Avisasse de seus limites e nós
poderíamos ter feito uma troca mais justa, sexo por sexo, prazer por prazer – e
ponto final. Sem devaneios de casamento, de filhos, de responsabilidades. Mas o
energúmeno teve medo de que eu não quisesse essa troca simples, desejo puro, coisa
de homens, ele deve ter pensado. Enredado nessa e noutras neuras masculinas, nutriu
fantasias e se fez casar. E teve filho comigo talvez pensando em me fazer mãe,
na acepção caseira da palavra, mulher comportada, atarefada com filho, para me
ter em casa, “trabalhadora da família”, essa categoria ainda não classificada
no Ministério do Trabalho, mas muito bem definida em mentes masculinas
medíocres.
Pensava
eu nesse estrupício de homem e concluí pelo despropósito de nosso casamento, faz
tempo terminado – ele fugiu, como fogem os ratos. Entre uma passada e outra, no
breu da rua sem vida, enxerguei que sempre estive só, sobretudo casada, pois
aquela companhia foi apenas ilusão, não era nada, era pior que nada. Era muito pior
que nada: me fez perder tempo, nem que fosse um tempo precioso comigo mesma. E
fechou-me para um amor de verdade, usando uma chave de papel: aquela certidão
de casamento. Não consigo explicar agora por que o papel, tão frágil, tão
rasgável, tem esse poder todo que lhe damos. Até as minhas lágrimas poderiam
ter desfigurado, destruído facilmente aquele papel, bastaria que caíssem, não
dos olhos para o meu peito, que se manchava de dor, mas sobre aquele papel
infeliz, que ali estava quase me dizendo: “eu não valho nada, chore em mim,
cuspa em mim, ponha-me no meu lugar, picote-me!” – eu é que não ouvia, não traduzia
suas palavras, pensando que aquele era um papel indestrutível, ou deveria ser.
Eu sim, que me destruísse em pedacinhos, meu Deus, como foi fácil me destruir,
me amassar, rasgar, cuspir em mim, enquanto aquele papel me parecia mais
valioso do que eu mesma, do que a minha felicidade. Seria ele a me fazer feliz,
eu pensava, e no dia em que tudo acabou, ah, naquele dia aquela certidão –
deveria chamá-la de “erratidão”? – estava lá, olhava para mim e não dizia nada.
Nada. Nem mais o que nela jazia escrito fazia mais sentido, se é que fez algum
dia. Nem uma verdade factual aquilo não era mais. Um tempo depois, naquele
mesmo papel, um carimbo no verso dizia-me divorciada. Quer dizer, virou um
papel esquizofrênico, que pela frente diz uma coisa e por trás diz o oposto.
Que papel é esse que me deram, meu Deus? Certamente ele sempre disse outra
coisa por trás, em tinta invisível, mas indelével.
É.
As trevas, pelo visto, não estavam apenas naquela rua sombria, naquela noite
sem lua, estavam um pouco dentro de mim. Um negrume pegajoso, que deixei grudar
na alma, e agora não consigo separar os fatos dos pensamentos, as dores dos
medos, o passado do futuro. Mas eu preciso separá-los. Preciso trazer de volta
a minha alma limpa. A minha beleza radiante.
Pensava
nessas coisas, caminhando pela rua vazia, pela noite calada, quando me apareceu
aquele sujeito. Não sei de onde ele tirou um fiapo de luz, mas foi o brilho que
me fez ver a faca. Colocou-me contra a parede, num canto perdido, e exigiu
silêncio e sexo. Veio das trevas, pensei. Ele repetia: silêncio e sexo, rápido,
na escuridão sem sentido, em palavras descabidas que não ouso reproduzir. Aqueles
segundos pareceram uma eternidade, uma viagem no tempo, silêncio e sexo,
silêncio e sexo, rápido, como pode isso?, tudo o que Alberto sempre reivindicara,
sutilmente, agora aquele homem colérico, agressivo, também queria, exigia,
tentava impor desesperado valendo-se da lâmina brilhante. De minha parte, eu
mais me surpreendia do que temia. Como era possível que as trevas me viessem assim,
que insistissem em permanecer emaranhadas à minha vida, grudadas na minha alma,
eu que acabara de decidir-me pela luz, pela integridade radiante do meu ser?
A
premência do sujeito, aquelas ordens que lhe saíam violentas pela boca como se
fossem a energia nervosa de seu próprio sêmen, uma ansiedade expressa pela
saliva que espirrava gotas em meu rosto, fazendo-me sentir aquela urgência
fluidal antes mesmo de qualquer ato sexual, tudo isso mais me paralisava, como
se fosse um contraponto, uma resistência pela imobilidade. O sujeito nada entendeu
quando larguei-lhe na cara uma risada nervosa, que logo interrompi, ainda mais apreensiva.
Eu não disse a ele, mas é que pensei naquele momento que o meu contraponto precisava
ser, naquela situação, um “contrapinto”, o que me fez rir absurda, numa hora impossível,
e senti-me ridiculamente alheia àquele drama, como se dramas não mais me
ferissem, tão acostumada eu estava com as trevas de minha vida cinzenta. Antes
que o sujeito, que obviamente não estava achando graça, saísse de seus poucos segundos
de estranhamento e desse cabo de sua raiva usando aquela faca que ele não
parava de agitar, fingi que meu riso despropositado fazia parte da minha
intenção de entregar-me àquele pretenso garanhão. Voltei a sorrir e encarei-o
com desejo. Abri dois botões de cima da minha blusa. Dei um passo em sua
direção, mirando-o. Sexo e silêncio? Só se for nas minhas condições, pensei.
Avancei, com volúpia e decisão, fazendo-o vacilar. Quando, por cima de sua
calça, cravei a mão firme sobre seu sexo e o encarei com a vontade mais determinada
que consegui, ele fugiu, assustado e apressado como se tivesse visto o próprio demônio.
Olhei
para a noite deserta. Pensei em Alberto. Pensei nas trevas. Pensei em mim.