Fundado em 28 de Setembro de 1998

31 de outubro de 2017

Germinal: Émile Zola



Se Deus está morto, 
nascerá outro para vingar os miseráveis.



A miséria é mais produto da vontade das pessoas do que da condição em que vivem




Foi assim:



Germinal Literário




Quando o homem tinha uma mulher no coração, 
estava liquidado, 
podia morrer.



“Etienne era todo ouvidos. Tinha sede de saber, de compreender esse culto de destruição, sobre o qual o mecânico não dava senão detalhes obscuros, como se estivesse guardando mistério para si.
 - Explica-te, homem. Qual é a finalidade de vocês?
- Destruir tudo... Exterminar as nações, os governos, a propriedade, Deus e o culto.
- Estou entendendo. Mas a que leva isso?
- À comuna primitiva e sem forma, a um mundo novo, ao começo de tudo.
- E os meios de execução? Como é que vocês vão fazer?
 - Pelo fogo, pelo veneno, pelo punhal. O salteador é o verdadeiro herói, o vingador popular, o revolucionário em ação, sem frases tiradas dos livros. É preciso que uma série de horríveis atentados aterre os poderosos e acorde o povo.
Falando, Suvarin transformava-se, ficava terrível.
 Em êxtase, erguia-se da cadeira, uma chama mística incendiava-lhe os olhos pálidos e suas mãos delicadas comprimiam a borda da mesa a ponto de quebrá-la. Cheio de medo, o outro o fitava, pensando nas histórias de que conhecia trechos vagos, mediante confidências entrecortadas: tesouros abarrotados por baixo dos palácios do czar, chefes de polícia abatidos a punhaladas como javalis, uma amante dele, a única mulher que amara, enforcada em Moscou numa manhã de chuva, enquanto ele na multidão beijava-a com os olhos, despedindo-se."  
(Émile Zola, Germinal, Ed. Abril, página 251)

Zola por Cèzanne

Era aquilo que desnaturava os sistemas, levando um ao exagero revolucionário, empurrando o outro para uma afetação de prudências, conduzindo-os, enfim, e sem eles quererem, para além de suas próprias ideias, nessa fatalidade de encarnar um papel que não se escolheu.




 -----Sei que me desculparão, desejava abrir este almoço com ostras... Como sabem, às segundas-feiras um carregamento delas chega a Marchiennes, e eu tinha planejado mandar a cozinheira até lá com o carro, mas ela teve medo de ser apedrejada... Todos a interromperam com risadas. Achavam a história muito engraçada. — Psiu! — fez o Sr. Hennebeau, contrariado, olhando para as janelas de onde via a estrada. — Os outros não precisam ficar sabendo que temos convidados esta manhã. — Pois eis uma rodela de salsichão que eles não terão — gracejou o Sr. Grégoire. As risadas recomeçaram, mas mais discretas. Os convivas sentiam-se à vontade nessa sala forrada de tapeçarias flamengas, mobiliada com velhos baús de carvalho. Peças de prata brilhavam por trás dos vidros dos armários e havia ainda um grande floreiro suspenso, de cobre vermelho, cuja forma arredondada e polida refletia uma palmeira e uma
aspidistra, verdejando em vasos de maiólica. Lá fora estava um dia de dezembro glacial, devido ao cortante vento do nordeste, mas nem um sopro dele entrava na peça aquecida como uma estufa e onde flutuava o fino aroma de um ananás em fatias, numa compoteira de cristal. — E se fechassem as cortinas? — propôs Négrel, que se divertia com a idéia de assustar os Grégoire. A camareira, que ajudava o criado a servir a mesa, pensou que era uma ordem e foi puxar uma das cortinas. Houve, desde então, intermináveis gracejos: não pousaram mais um copo ou um garfo sem tomar precauções, cada prato foi saudado como se fosse um salvado de um saque numa cidade conquistada. Mas por trás dessa alegria forçada havia um medo surdo, traído apenas por olhares involuntários à estrada, como se um bando de famintos estivesse espiando para a mesa, através das janelas. Depois dos ovos trufados foram servidas trutas de rio. A conversação era agora sobre a crise, industrial que se agravava havia dezoito meses. — Era fatal — disse Deneulin. — A prosperidade dos últimos anos tinha que nos levar a isto... Pensem um pouco nos enormes capitais imobilizados em vias férreas, em portos e canais, em todo esse dinheiro enterrado nas mais loucas especulações. Só aqui, nesta região, foram instaladas refinarias de açúcar como se o departamento tivesse de dar três colheitas de beterraba. E agora aí está o resultado! O dinheiro desapareceu, tem-se que esperar receber os juros dos milhões empatados. Daí o estrangulamento mortal da economia e a estagnação final dos negócios.


O Sr. Hennebeau combateu essa teoria, mas conveio que os anos felizes tinham estragado o operário. — Quando penso — exclamou ele — que esses latagões das nossas minas podiam fazer até seis francos diários, o dobro do que ganham agora... E viviam bem, adquiriram hábitos de luxo... Hoje, naturalmente, parece-lhes duro ter de voltar à frugalidade antiga. — Sr. Grégoire — interrompeu a dona da casa —, faça o favor, sirva-se de mais um pouco de truta. Estão boas, não acha? O diretor continuou: — Tudo isso será culpa nossa? Nós também somos atingidos, e bem cruelmente... Desde que as fábricas começaram a fechar, uma a uma, tivemos uma trabalheira dos diabos para dar saída aos nossos estoques. E, diante da crescente redução de pedidos, vemo-nos forçados a baixar o preço básico. E é isso que os operários não querem compreender. Houve um silêncio. O criado apresentou perdizes assadas, enquanto a camareira começava a servir vinho de Chambertin aos convivas. — Houve fome na índia — continuou Deneulin a meia voz, como se estivesse falando consigo mesmo. — A América, suspendendo seus pedidos de ferro e de fundição, deu um rude golpe nos nossos altos-fornos. Tudo se encadeia, uma sacudidela longínqua é suficiente para abalar o mundo... E dizer que o império estava tão orgulhoso dessa febre industrial! Atirou-se à sua asa de perdiz. Depois, elevando a voz: — O pior é que, para baixar o preço básico, devia-se, logicamente, produzir mais; de outra forma, a baixa só atinge os salários, e o operário tem razão de dizer que é ele que paga com a crise. Esta confissão, resultado da sua franqueza, foi motivo de discussão. As senhoras começaram a entediar-se. Por outro lado, cada um se ocupava do seu prato, no entusiasmo do primeiro apetite. O criado entrou e ia dizer alguma coisa, mas hesitou. — Que é? — perguntou o Sr. Hennebeau. — Se são mensagens, pode entregar-me. Estou esperando algumas respostas. — Não, senhor. É o Sr.
Dansaert que está no vestíbulo, mas ele não quer incomodar. O diretor desculpou-se e mandou entrar o capataz. Este ficou em pé, a poucos passos da mesa. Todos se voltaram para olhá-lo, enorme, sem fôlego, cheio de novidades. Os conjuntos habitacionais continuavam tranqüilos, mas já estava decidido que viria uma delegação. Talvez já estivesse a caminho... — Está bem. Obrigado — disse o Sr. Hennebeau, — Preste atenção: quero um relatório de manhã e outro à noite. Assim que Dansaert partiu, voltaram aos gracejos; atiraram-se à salada russa declarando que era preciso não perder um segundo se queriam dar cabo dela. Desse momento em diante a alegria recrudesceu. Tendo Négrel pedido pão à camareira, esta lhe respondeu com um "sim, senhor" tão baixo e tão aterrorizado que parecia ter atrás de si uma turba pronta para o massacre e a violação. A dona da casa disse-lhe então, com muita graça: — Você pode falar, eles ainda não chegaram. O diretor, a quem acabavam de entregar um maço de cartas e telegramas, quis ler alto uma das cartas. Era de Pierron. Dizia ele, em termos respeitosos, que se via obrigado a entrar em greve com os camaradas para não ser maltratado; e acrescentava que nem mesmo pudera recusar-se a fazer parte da delegação, mas estava em desacordo com essa gestão. — Aí está a famosa liberdade de trabalho! — exclamou o Sr. Hennebeau. Voltaram então à greve e pediram sua opinião. — Bem... — respondeu ele. — Já tivemos outras, não é mesmo? Será uma semana, no máximo uma quinzena de vagabundagem, como da última vez. Vão percorrer as tabernas e depois, quando a fome apertar, voltarão ao trabalho. Deneulin balançou a cabeça. — Eu não estou tão tranqüilo... Desta vez eles parecem mais bem organizados. Têm até uma caixa de previdência, não é isso? — Sim, com apenas uns três mil
francos... Que poderão fazer com uma ninharia dessas? Desconfio que o chefe deles é um tal de Etienne Lantier. É bom operário, não gostaria de ter de despedi-lo como fiz da vez passada com o famoso Rasseneur, que continua a empestar a Voreux com suas idéias e sua cerveja... Mas tudo isso não tem importância, dentro de oito dias a metade dos mineiros voltará ao trabalho, e dentro de quinze os dez mil estarão novamente no fundo da mina. Estava convencido do que dizia. Sua única inquietação vinha do temor de cair em desgraça se a administração lhe imputasse a responsabilidade pela greve. Há já algum tempo sentia que não era visto com bons olhos. Por isso, abandonando a colherada de salada russa de que se servira, relia os telegramas de Paris, respostas em que ele procurava penetrar o sentido de cada palavra. Os outros compreendiam sua atitude, o almoço transformara-se em refeição de campanha, comida num campo de batalha, antes dos primeiros tiros. A partir desse momentos as senhoras tomaram parte na conversa. A Sra. Grégoire apiedava-se daquela pobre gente que ia passar fome; Cécile já planejava a distribuição de pão e carne aos necessitados. A Sra. Hennebeau, no entanto, espantava-se ouvindo falar da miséria dos mineiros de Montsou. Então eles não eram felizes? Gente que tinha casa, carvão e cuidados médicos, tudo à custa da companhia! Na sua indiferença por aquele rebanho, ela só sabia sobre ele a lição aprendida, com que maravilhava os parisienses de visita; e, tendo acabado por acreditar no que recitava, indignava-se com a ingratidão daquela gente. Durante todo esse tempo, Négrel continuara assustando o Sr. Grégoire. Cécile não lhe desagradava e chegaria mesmo a casar com ela, para ser agradável à sua tia. Mas não estava apaixonado, isso não; era um rapaz experiente, já calejado, como ele dizia. Proclamava-se republicano, o que não o impedia de tratar seus operários com extremo rigor, e de fazer brincadeiras a respeito deles com as senhoras. — Eu também não tenho o otimismo do meu
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tio — disse ele. — Receio graves desordens... Assim, Sr. Grégoire, aconselho-o a fechar a Piolaine a sete chaves. Podem saqueá-la... Mas justamente o Sr. Grégoire, sem abandonar o sorriso que iluminava seu rosto bondoso, ia mais longe que a esposa nos sentimentos paternais pelos mineiros. — Saquear a mim! — exclamou ele estupefato. — E por quê? — O senhor não é acionista de Montsou? O senhor não faz nada, vive do trabalho dos outros... Enfim, o senhor é o infame capitalista, e isso basta. Esteja certo, se a revolução triunfasse, ela o forçaria a devolver sua fortuna, como dinheiro roubado... Isso bastou para que o velho perdesse a serenidade, a tranqüilidade infantil em que vivia. Balbuciou: — Dinheiro roubado, a minha fortuna! Então o meu bisavô não ganhou com o suor do seu rosto a soma que ele mesmo colocou na mina? Então não corremos todos juntos os riscos da empresa? Acaso estou eu fazendo uso indébito das minhas rendas? A Sra. Hennebeau, alarmada ao ver mãe e filha pálidas de medo, apressou-se em intervir, dizendo: — Paul está brincando, meu bom amigo.
Mas o Sr. Grégoire estava fora de si. Tendo-lhe o criado oferecido lagostins, tirou três sem saber mais o que fazia, e pôs-se a quebrar as patas com os dentes. — Não digo que não, há acionistas que abusam. Contaram-me, por exemplo, que certos ministros receberam dinheiro de Montsou por baixo da mesa, em retribuição por serviços prestados à companhia. É o caso desse grande senhor, de quem não direi o nome, um duque, o maior acionista que temos, cuja vida é um escândalo de prodigalidade, milhões atirados à rua com mulheres, em estroinice, em luxo inútil. Nós não, vivemos dignamente, como boa gente que somos! Não especulamos, contentamonos numa vida austera com o que temos, repartindo sempre com os pobres... Ora, vamos! Seria preciso que os seus operários fossem uns grandes bandidos para nos roubar sequer um alfinete! O próprio Négrel teve de acalmá-lo, apesar de estar se divertindo com a cólera do velho. Os lagostins continuavam a passar, ouviam-se os estalidos das cascas enquanto a conversa girava para o terreno da política.
Apesar de tudo, ainda muito alterado, o Sr. Grégoire proclamava-se liberal e sentia falta de Luís Filipe. Deneulin era por um governo forte, dizia que o imperador escorregava pelo declive das concessões perigosas. — Lembrem-se de 89! — disse ele. — Foi a nobreza que tornou possível a Revolução, com sua cumplicidade, com o seu gosto pelas novidades filosóficas... Pois bem, hoje, a burguesia faz o mesmo jogo imbecil, com seu furor de liberalismo, a sua ânsia destruidora e as bajulações ao povo... Sim, sim, são vocês que estão afiando os dentes do monstro para que ele nos devore. E fiquem tranqüilos, ele vai devorar-nos! As senhoras fizeram-no calar e tentaram mudar de conversa perguntando-lhe pelas filhas. Lucie estava em Marchiennes, cantando com uma amiga; Jeanne pintava um quadro do rosto de um velho mendigo. Disse tudo isso com ar absorto, sem tirar os olhos do diretor que lia sua correspondência, esquecido dos seus convidados. Por trás daquelas folhas finas ele procurava captar Paris, as ordens dos administradores, que decidiriam a respeito da greve. Mas Deneulin não pôde deixar de voltar ao tema que o preocupava. — Então, que tenciona fazer? — perguntou ele repentinamente. Hennebeau estremeceu e desconversou com uma frase vaga: — Ainda vamos ver. — Claro, vocês podem esperar, têm infra-estrutura — pôs-se a pensar alto Deneulin. — Mas eu estou perdido se a greve atingir Vandame. Gastei tudo reinstalando Jean-Bart e agora só sobreviverei com essa galeria única se produzir sem parar. Como vêem, não posso ficar sentado esperando...

Essa confissão involuntária pareceu impressionar o Sr. Hennebeau. Enquanto escutava, um plano foi-se formando em sua cabeça: no caso de a greve trazer maus resultados, por que não a utilizar, deixando as coisas correrem até a ruína do vizinho, e depois comprar sua concessão por um preço baixo? Este era o método mais certo para voltar às boas graças dos administradores, que, havia muitos anos, sonhavam com a posse de Vandame. — Se a Jean-Bart o preocupa dessa maneira — disse ele rindo —, por que não a passa adiante? Mas Deneulin, que já se arrependia da involuntária confissão, exclamou: — Isso nunca! Todos riram da sua violência, e a greve foi finalmente esquecida no momento em que a sobremesa surgiu. A compota de maçãs coberta de merengue foi muito elogiada. Em seguida as senhoras discutiram uma receita, a propósito do ananás, que foi declarado igualmente delicioso. As frutas, uvas e pêras, foram o fecho de ouro daquele opulento almoço, que resultou num cansaço feliz. Todos falavam a um tempo, alegres e comovidos, enquanto o empregado servia vinho do Reno em substituição ao champanha, que foi




julgado comum. E o casamento de Paul e Cécile deu, por certo, um sério passo no ambiente simpático da sobremesa. Sua tia lançara-lhe olhares tão expressivos, que o rapaz mostrou-se amável, reconquistando com seu modo carinhoso os Grégoire apavorados com as suas histórias de pilhagem. Por um instante, o Sr. Hennebeau, ante o perfeito entendimento reinante entre sua mulher e sobrinho, sentiu ressurgir a abominável suspeita, como se tivesse surpreendido um contato carnal nos olhares trocados pelos dois. Mas o plano do casamento desenvolvido ali, diante dos seus olhos, tranqüilizou-o mais uma vez. Hippolyte servia o café, quando a camareira entrou em pânico. — Sr. Hennebeau, Sr. Hennebeau, eles chegaram! Eram os delegados. Portas bateram, ouviu-se passar um sopro de pavor através dos aposentos circundantes. — Faça-os entrar para o salão — disse o diretor. Em volta da mesa, os convivas olharam-se, inquietos e vacilantes. Reinou silêncio por um momento. Em seguida, quiseram voltar às brincadeiras: fingiram colocar o resto do açúcar nos bolsos, falaram em esconder os talheres. Mas o diretor permanecia pensativo e os risos pararam, começaram a cochichar enquanto os passos pesados dos delegados entrando no salão ao lado esmagavam o tapete. Baixando a voz, a Sra. Hennebeau disse ao marido: — Você vai primeiro beber o seu café, não vai? — Claro! — respondeu o homem. — Eles que esperem... Estava nervoso, queria ouvir todos os ruídos, fingindo-se ocupado apenas com sua xícara. Paul e Cécile levantaram-se; ele fez a moça olhar pelo buraco da fechadura e ambos começaram a sufocar risadas e a falar em voz baixa. — Pode vê-los? — Sim, vejo um gordo e dois menores atrás. — E são monstruosos, não é isso? — Não, não, são muito simpáticos... Repentinamente o Sr. Hennebeau levantou-se, dizendo que o café estava muito quente e que depois o beberia. Ao sair pôs um dedo sobre os lábios, recomendando prudência. Todos tinham tornado a sentar-se, e ficaram à mesa, mudos, sem ousarem mover-se, de ouvido à escuta, procurando captar o que se dizia no salão, cheios de malestar com aquelas vozes grossas.


"UNIDOS, DESTRUIREMOS A BURGUESIA"




E, sob seus pés, continuavam as batidas cavas, obstinadas, das picaretas. Todos os companheiros estavam lá no fundo; ouvia-os seguindo-o a cada passo. Não era a mulher de Maheu sob aquele canteiro de beterrabas, curvada, com uma respiração que chegava até ele tão rouca, fazendo acompanhamento ao ruído do ventilador? À esquerda, à direita, mais adiante, julgava reconhecer outros, sob os trigais, as cercas vivas, as árvores novas. Agora, em pleno céu, o sol de abril brilhava em toda a sua glória, aquecendo a terra que germinava. Do flanco nutrido brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grande beijo. E ainda, cada vez mais distintamente como se estivessem mais próximos da superfície, os companheiros cavavam. Sob os raios chamejantes do astro rei, naquela manhã de juventude, era daquele rumor que o campo estava cheio. Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra.



— Bobagens! — repetiu Suvarin. —Esse Karl Marx de vocês ainda acredita que se deve deixar agir as forças naturais. Nada de política, nada de conspiração, não é isso? Tudo feito abertamente, luta só pela subida dos salários... Não quero ter nada que ver com essa evolução de vocês. Incendeiem as cidades, ceifem os povos, arrasem tudo, e, quando não sobrar mais nada deste mundo podre, talvez nasça outro melhor dos escombros.
...
Desta vez os três homens estiveram de acordo. Cada um disse o que pensava com uma voz desolada e daí pularam para as lamentações. O operário não podia agüentar mais; a revolução só servira para agravar-lhe as misérias; a partir de 89 os burgueses é que se enchiam, e tão vorazmente que nem deixavam um resto no fundo do prato para o trabalhador lamber. Quem poderia demonstrar que os trabalhadores tinham tido um quinhão razoável no extraordinário aumento da riqueza e bem-estar dos últimos cem anos? Zombaram deles ao declará-los livres. Livres para morrerem de fome, isso sim, e do que, aliás, não se privavam. Não dava pão a ninguém votar em malandros que, eleitos, só queriam locupletar-se, pensando tanto nos miseráveis como nas suas botas velhas. Era preciso terminar com isso, de uma maneira ou de outra: ou por bem, por meio de leis, num acordo amigável, ou por mal, como selvagens, queimando tudo e devorando-se uns aos outros. Se isso não fosse feito agora, pela atual geração, seus filhos com certeza o fariam, já que o século não podia terminar sem outra revolução, desta vez a dos operários, uma revolução devastadora que varreria a sociedade de alto a baixo para reconstruí-la mais decente e justa.
...
— Aumentar o salário, como? Ele está fixado pela lei de bronze na menor soma
indispensável, exatamente no necessário para os operários poderem comer pão seco e fabricar filhos... Se cai muito baixo, os operários morrem e a procura de novos homens faz que ele suba. Se sobe muito alto, o excesso de oferta faz que baixe. É o equilíbrio das barrigas vazias, a condenação perpétua à escravidão da fome.
Quando o russo começava a discorrer dessa maneira, abordando assuntos de socialista instruído, Etienne e Rasseneur ficavam inquietos, perturbados pelas suas afirmações desoladoras, às quais não sabiam o que responder.
— Entendem? — continuou ele com sua calma habitual, encarando-os. — É preciso destruir tudo para que a fome não renasça. Sim! A anarquia, o nada, a terra banhada em sangue, purificada pelo incêndio! Em seguida veremos o que se pode fazer.




— Pensava — disse a Sra. Grégoire — que a companhia lhes fornecesse casa e carvão. 

A mulher de Maheu lançou um olhar oblíquo para a hulha que ardia na chaminé. 

— Sim, é verdade, fornecem-nos carvão, não é grande coisa, mas sempre acende... Quanto à casa, o aluguel é de seis francos por mês, parece que não é grande coisa, mas muitas vezes como é duro pagar... De forma que hoje, nem que me cortassem em pedaços, não encontrariam dois soldos. Onde não há nada, não há nada. 

O casal resolveu ficar em silêncio, confortavelmente refestelados, pouco a pouco enojados e inquietos com todo aquele alarde de miséria. A outra, receando tê-los ofendido, acrescentou, com seu ar justo e calmo de mulher prática:

— Não me estou queixando. As coisas são assim, temos que aceitar, de nada adiantaria lutar, não mudaríamos nada, claro... O melhor mesmo é continuar trabalhando honestamente, como Deus quer, não é verdade, meus senhores? 

O dono da casa aprovou-a com entusiasmo. 

— Com tais sentimentos, minha boa mulher, é que se vencem os infortúnios. 

Honorine e Mélanie trouxeram finalmente o pacote; Cécile desatou-o e retirou os dois vestidos, alguns lenços de pescoço e até meias e luvas. Tudo ia ficar às mil maravilhas; apressou-se, fez as criadas embrulharem as roupas escolhidas, e, como sua professora de piano acabava de chegar, foi empurrando a mãe e os filhos para a porta. 

— Estamos tão apertados — gaguejou a mulher —; se ao menos tivéssemos uma moeda de cem soldos... 

A frase engasgou-a: os Maheu eram orgulhosos, não mendigavam. 

Cécile, inquieta, olhou para o pai, que recusou terminante-mente, com ares de estar cumprindo um dever. 

— Não, isso não está nos nossos costumes. Não podemos. 

A moça, então, comovida com o semblante transtornado da mãe, quis agradar aos filhos, que não
tiravam os olhos do bolo; cortou duas fatias e deu-as às crianças. 

— Pronto! É para vocês. 

Mas em seguida apanhou novamente os pedaços de bolo e pediu um jornal velho. 

— Esperem, repartam com seus irmãos. 

E, sob os olhares enternecidos dos pais, pô-los finalmente para fora da sala. As pobres crianças, que não tinham pão, lá se foram carregando respeitosamente as fatias de bolo nas mãozinhas entorpecidas pelo frio. 

A mulher de Maheu saiu arrastando os filhos pela estrada, não enxergando mais os campos desertos, a lama negra, o vasto céu lívido que girava. Ao passar novamente por Montsou, entrou resolutamente na loja de Maigrat e suplicou com tal veemência que conseguiu arrancar dois pães, café, manteiga e até sua moeda de cem soldos; o homem emprestava a juro, em curto prazo. Não era ela que ele queria, era Catherine; compreendeu muito bem quando ele lhe recomendou que mandasse a filha para fazer as compras. Ah, gostaria de ver! Que ele se aproximasse muito e Catherine lhe deixaria a cara marcada...




A conduta humana é determinada pela herança genética, 
pela filosofia das paixões
e pelo ambiente.



Era preciso que o rosto de um desconhecido lhe agradasse e que ele estivesse tomado por um desses desejos imperiosos de confidências que fazem, às vezes, as pessoas idosas falarem sozinhas, em voz alta.


Germinal

Germinal

22 de outubro de 2017

A mãe sob a lente de aumento - A Filha Perdida

​"Que bobagem é pensar que é possível falar de si mesmo aos filhos antes que eles tenham pelo menos cinquenta anos. Querer ser vista por eles como uma pessoa e não como uma função. Dizer: sou sua história, vocês começam comigo, escutem, pode ser útil."

A mãe sob a lente de aumento.

Vontades. Premências. Desejos. Fraquezas. Dores. Angústias.
Elena Ferrante traz a mãe e suas necessidades em um tom quase rascante em "A Filha Perdida". Sem medo de julgamento, Leda se descortina diante do leitor e traz à tona segredos da maternidade talvez partilhados por dezenas, centenas, milhares de mulheres em silêncio.
O totem da mãe perfeita surge colorido na relação Nina-Elena, para ser desconstruído paulatinamente aos olhos de Leda, que, ao mesmo tempo, também se desconstrói diante de Nina para que ela possa observar por si mesma - caso consiga - quão pujante é a maternidade imperfeita.
E, como pano de fundo, a traição feminina é colocada à prova, livre de moralismos, de achismos, de ismos quaisquer que a possam destituir da sua força e poder, legítimos ou não. Isso fica a cargo da leitura e do leitor.

Um livro que irrita, que provoca, que emociona, que traz à tona recordações antigas e desejos outrora vividos (ou não), “A Filha Perdida” é uma leitura ímpar e marcante. Inesquecível.