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24 de fevereiro de 2012

Equador: Miguel Sousa Tavares


 São Tomé e Príncipe: um dos cenários do livro do mês  

Nas leituras que realizamos no nosso clube de leitura, é costume associarmos alguma música ao livro do mês. Para "Equador", de Miguel Sousa Tavares, uma das músicas lembradas foi "Notícia de Jornal", de Chico Buarque. No início da leitura, houve quem esperasse algo parecido a "Não existe pecado do lado de baixo do Equador", na performance emblemática que Ney Matogrosso realizou nos idos da década de 70. Uma curiosa evolução da expectativa de nossos leitores aconteceu à medida que o drama de nossos personagens da eterna pátria-mãe se desenrola, espetacularmente, culminando na tragédia que parece um padrão recorrente de sua história. 


"A gente não escolhe o dono do nosso coração"


De meu lado, do jeito que vai, o vira acaba numa milonga ou num fado tropical. 







Outras sugestões:


Do Luis Bernardo para Ann: “Delícia, delícia, assim você me mata!...”


Tema da Ann seria: “Você é doida demais”


Deu na mídia:



Espaço do Leitor:


Na linha do Equador mora uma ilha
onde o tempo escraviza as boas vontades.
Um homem só, como andorinha, não faz, verão.
Mas acalora o fogo latente das liberdades,
questiona vaidades, verdades e incendeia-se
nessa paixão desenfreada, que também é carne.

Contamina o leitor visitante,
que se derrete como o calor da ínsula
que cresce como os pés de cacau, (re)colhidos
que transpassa como o charme do antigo
e galopa em direção a seu próprio mergulho 

Rita Magnago

22 de fevereiro de 2012

Modesta Sugestão: Carlos Rosa Moreira



Últimos anos dos sessenta, eu tinha cerca de doze anos. Passava na Globo a novela " A rainha louca". Mesmo sendo um garoto ativo e desassossegado, eu parava tudo para ver a novela. E por causa da novela tive o primeiro ímpeto de escrever alguma coisa, um conto! A novela era tão louca quanto a rainha que lhe dava o título. Passava-se no México, na segunda metade do século XIX, durante as lutas pela independência daquele país. Tinha, portanto, um fundo histórico real. Contava a triste e verdadeira aventura de Maximiliano de Habsburg e sua jovem esposa Charlotte, princesa da Bélgica, ambos convencidos por Napoleão III a embarcar na canoa furada de serem imperador e imperatriz no explosivo país de Benito Juarez. O jovem e elegante ator Rubens de Falco interpretava Maximiliano e a bela e talentosa Nathalia Timberg, Charlotte (Carlota). Havia duelos de espadachins, ataques de índios, sociedades secretas e a incrível história do índio ignorante, rústico peão de fazenda, que aproveitou o desmaio da sinhazinha que o desprezava, e pela qual era apaixonado, para comer a sinhazinha. Comer não no sentido antropofágico, como era costume de muitos índios, mas no sentido amoroso. Depois o índio foi levado à Europa, educou-se e tornou-se garboso cavalheiro que acabou por conquistar o coração da sinhazinha que, outrora, o desprezava. Ela, então, o apresenta ao filho concebido naquela noite do desmaio (antigamente, era muito comum mulher desmaiar). 

  Pois é, mas o que mais chamava a minha atenção era a sociedade secreta, da qual fazia parte um misterioso personagem interpretado pelo ator Paulo Gracindo. Na trama, a tal sociedade tinha relação com o sinistríssimo "Poço de Fontainebleu", de onde vinham, no escuro das noites, pavorosos gritos.

  Eu achava aquilo uma maravilha. Então resolvi escrever uma história. E na minha história haveria uma escura caverna de onde também sairiam gritos terríveis; e a caverna teria um nome, seria a "Caverna de Fontainebleu".  Como podem perceber, eu era um garoto muito original e cheio de imaginação.

  Decidi que precisava de um local reservado para escrever a minha história. O local escolhido foi o quarto da empregada. Enquanto a empregada cozinhava, eu escrevia. Eu gostava do quarto com a empregada dentro, especialmente quando ela terminava o banho e trancava a porta para se enxugar. Era uma rotunda empregada que ocupava todo o espaço do buraco da fechadura. Mas, para escrever, era preciso ter concentração.

  Acabei o conto e fiquei orgulhoso com o rascunho nas mãos. Resolvi submetê-lo ao crivo literário da minha avó, uma contumaz seguidora de novelas e severa professora primária do interior na década de vinte do século passado. Minha avó implicou com uma separação de sílabas. Tentei explicar que isso não era importante no momento, eu gostaria de saber a opinião sobre o teor literário do texto. Naquela idade eu não sabia explicar isso, não sabia dizer "teor literário", e o meu conto ganhou fama de mal escrito. Além disso, fui instado a estudar mais Português.

  Hoje, a experiência daqueles distantes anos mostra-se atualíssima. E contei essa xaropada toda, apenas para sugerir àqueles que tenham textos guardados que jamais os submetam a pessoas que não sejam intimamente ligadas e apaixonadas por Literatura. Esqueça aquele magistrado "muito culto"; esqueça o amigo inteligente e viajado, leitor de best-sellers; esqueça o profissional liberal bem sucedido e amigo. Ter cultura e ser bem sucedido não é aval para examinar um texto. Lembre-se de que todos são leitores e de que seu texto pode ser amado ou detestado, como acontece com qualquer escritor. E saiba que a grande maioria das pessoas, mesmo as chamadas cultas, não estão preparadas para perceber a arte por si mesmas. É preciso que algo ou alguém desperte nelas a imaginação. Todos caminham num fluxo, ocupados e acostumados a se ocuparem com os problemas da vida mundana. É preciso parar, pensar, perceber, imaginar, sentir. E isso requer um pouco de tempo de cada um. Não só tempo cronológico, mas tempo para sair do fluxo a que foi acostumado a viver, um certo tempo psicológico, que todo ser humano deve ter a obrigação de dar a si. É sempre possível ter tempo, mas depende da imaginação. E ter imaginação pode cansar, parece mais fácil permanecer no fluxo.

  Portanto, para examinar seu texto, procure alguém envolvido com Literatura, com a arte; alguém que estude, alguém que ame a língua, que fale com carinho nos livros, mesmo daqueles de que não gostou. Alguém sensível, sincero e generoso, amante da Lingua Portuguesa e leitor voraz. Essas qualidades são imprescindíveis para formar um leitor mais refinado que poderá emitir um parecer com argumentos interessantes. A revisão gramatical é mais fácil, um bom professor resolve.


15 de fevereiro de 2012

< ENTRE LEITURAS >




Lembranças de beira mar: Carlos Rosa Moreira

Patancha sabia limpar baiacu. Pelo menos era isso que se contava. Vivia no porão da casa onde eu passava as férias de julho. Não era empregado da casa, morava ali porque deixavam. Em troca ele limpava o quintal, colhia frutas, às vezes trazia um peixe. Era um sujeito amarfanhado, sujo e velho, tinha a pele queimada pelo sol e cabelos encaracolados de uma cor indefinível. Andava com as roupas usadas que o pessoal da casa lhe dava.

Um dia me disseram que ele limpava e comia baiacus. Eu era muito criança e sabia pouca coisa de peixes e mar. Para mim, aquilo era espantoso, pois acreditava que comer baiacu seria sentença de morte. Certa vez, ele apareceu com um baiacu arara. Disse que ia limpá-lo para comer. Eu fiquei olhando e o vi cortar o bicho, arrancar o couro e abrir suas entranhas. Tirou lá de dentro uma bolinha mole e escura.

─ Isto aqui é o fel, se estourar estraga a carne e faz mal ─ disse ele.

Depois me convidou para o seu almoço. Eu já havia almoçado, mas fiquei curioso, rodei, caminhei na praia e não resisti à tentação. Voltei a casa e o encontrei ao lado de uma lata sobre duas pedras com fogo embaixo. Ele estava encostado a uma parede, coberto por formigas tanajuras. Pegava uma formiga sem machucá-la, conversava com ela e a colocava de novo na roupa. As formigas abriam um grande ferrão negro e, se o picassem, ele as jogava na lata onde borbulhava a carne do baiacu. E dizia assim: ─ São as minhas amiguinhas, minhas companheirinhas. Elas vão almoçar também.

Olhei aquilo e olhei a carne de baiacu cozinhando na lata; resolvi voltar a caminhar na praia. Sei que Patancha ainda viveu por muitos anos comendo carne de baiacu, e morreu de morte morrida.