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31 de janeiro de 2014

O vampiro sem glamour no mais belo dos filmes de terror: por Chico Lopes *

publicado em 11/8/2005 no blog Verdes Trigos


O convívio com livros, revistas, sites especializados e outras tantas fontes, entre elas, naturalmente, o espectador - basta citar que lido com públicos de cinema profissionalmente, no Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas, desde 1994 - me fez ver que há um certo número de filmes de terror tidos como clássicos e que este número não se renova com muita facilidade. É quase invariável que se cite "O exorcista" (o primeiro, de William Friedkin), "O bebê de Rosemary" (de Roman Polanski), "O iluminado" (de Stanley Kubrick) e pouco mais, de acordo com as idiossincrasias do interlocutor.

Na verdade, o gênero sempre foi um pouco desprezado pela crítica, porque fazer filmes de terror, repetindo todos aqueles clichês, parece ser muito fácil, e a enxurrada de produções que vai diretamente para as locadoras é de uma ruindade espantosa, em geral mais para cômica. Os grandes filmes acabam se destacando porque, afinal, são quatro ou cinco. Isso talvez se aplique a outros gêneros, mas temos que reconhecer que se ajusta melhor ao gênero terror, que é mesmo propício ao lixo num grau elevado.

No caso dos filmes de vampiro, então, a coisa se tornou, nos últimos anos, quase uma palhaçada - nos anos 80, a série "A hora do espanto" reabilitou a criatura de caninos à mostra na pele de Chris Sarandon, insinuando homossexualidade, meio na brincadeira, e o que já tinha sido caricaturado pelo próprio Polanski em "A dança dos vampiros" nos anos 70 virou piada mesmo. 

Não se vê muitos filmes de vampiro hoje em dia, e os que aparecem de vez em quando não seduzem um público muito anestesiado pelo excesso de horror e incredulidade. Passam pelas locadoras, sendo alugados pelo público aficionado, que consome lixo explícito ou produções medianas numa quantidade impressionante, porque há um lado vicioso nisso. Por vezes, esses filmes são deliberadamente procurados para sessões de sado-masoquismo adolescente o mais estúpido. Aí, de fato, a qualidade em nada importa.

Em 1992, Francis Ford Coppola tentou recuperar a história original de Drácula, escrita pelo inglês Bram Stoker, indo à fonte. Seu "Drácula de Bram Stoker" resultou num filme muito bonito, cheio de técnicas admiráveis e cenas de grande poesia, mas, exceto por Gary Oldman no papel principal, prejudicado por canastrões irremediáveis como Keanu Reeves e Winona Ryder nos papéis essenciais do corretor Jonathan e sua esposa Mina.

O melhor, o mais belo de todos filmes de terror, é ainda "Nosferatu - O vampiro da noite", de Werner Herzog, e o público mais refinado (naturalmente, isso não inclui a turminha que assiste "Drácula 3000" com complacência) poderá confirmar isso procurando o DVD com a edição, com ótimos extras - finalmente! - dessa produção, realizada em 1979, e bastante restrita ao circuito dos filmes de arte.

Uma proeza: o perfeito remake

A curiosidade de "Nosferatu - O vampiro da noite" é que talvez seja o remake mais bem feito de toda a história do cinema! Ele refaz com rara felicidade um clássico do cinema mudo, em que poucos ousavam tocar - "Nosferatu", realizado em 1922, por F.W Murnau. Arrisco dizer que é um filme superior à obra-prima do mudo. Porque esse filme de Murnau é uma relíquia de cinemateca, repleto de beleza, mas um tanto datado, reconheçamos, e sempre visto como relíquia, com aquela reverência por vezes opaca que se destina às obras demasiado reconhecidas e Herzog, sem perder o respeito pelo filme de Murnau, o atualizou, o enriqueceu, além de ter conseguido uma coisa que considero proeza das mais elogiáveis: fez um filme sonoro a cores que, na verdade, tem toda a grandeza de um mudo e preto & branco! 

O filme prova que a cor e o som podem sim ser usados magnificamente, a serviço da eloqüência da imagem. É o que nos ensinam os melhores filmes, é o que o público sempre esquece - que a arte cinematográfica, nos anos 20, apogeu do mudo, já tinha atingido uma perfeição que, para alguns estetas mais puristas, dispensava o som. E aí Hollywood entrou com "O cantor de jazz" em 1929 e o Cinema, como arte, desandou a tagarelar e andar para trás, tornando-se, como dizia Hitchcock, "fotografia de gente que fala", e até hoje poucos são os filmes verdadeiramente artísticos em termos visuais. A rigor, a grandeza do cinema como arte, incluindo o aspecto sonoro, volta apenas no início dos anos 40, com o "Cidadão Kane", de Orson Welles, que, compreensivelmente, fez uma revolução.

O público espectador de filmes de vampiro, a menos que mais refinado, rejeitou esse "Nosferatu" de Herzog em sua época - o filme ficou mesmo destinado aos que freqüentam as salas de arte. Isso não mudou, ao contrário, piorou, porque a decadência na qualidade do espectador, de alguns anos para cá, é apavorante, e, agora, decididamente, o cinema de arte - ou o que se convencionou chamar assim - é cada vez mais evitado. Pouca gente quer filmes orientais ou europeus, "lentos demais". Foge-se do que parece letargia, porque o vício do cinema de ação, de correria, de apenas dois neurônios, de ritmo americano, explica isso perfeitamente.

Herzog filmou a sua obra-prima com austeridade. Tinha uma outra como base e estrutura, e sabia que ia ser comparado a Murnau, por vezes desfavoravelmente. Mas, teve, de cara, uma vantagem sobre Murnau - pôde usar a história original, de Bram Stoker, escrita em 1897 (a mesma filmada por Coppola, na tentativa de ir às fontes primárias, e refilmada quinhentas mil vezes em porcarias comerciais). 

Murnau tivera dificuldades com a família do escritor por direitos autorais e fez seu filme conservando a história, mas mudando os nomes dos personagens. Herzog filmou livremente, usando os nomes a seu arbítrio (Mina, nas mãos dele, virou Lucy). Isso não importa, porque a história foi preservada em sua ossatura.

Presságios rondam o mundo pequeno-burguês

Não há, para o público viciado, o que se espera de um filme de vampiro - os castelos apavorantes, com portões que rangem e criados soturnos que atendem ao visitante incauto que chega, os morcegos, mecânicos ou não, atacando em profusão, e o clássico vampiro - o modelo de Bela Lugosi ou de Christopher Lee via Hammer - aparecendo como um homem mais para sexy, com a capa preta e vermelha. A associação inevitável do vampiro com a sedução erótica acabou por tornar o célebre Conde menos assustador que insinuante, e, como os terrores do mundo real são quinhentas mil vezes mais aterrorizantes, de uns anos para cá, qualquer filme com ele faz pensar que se está diante de um excêntrico, um lunático inofensivo, não de uma ameaça letal.

Herzog entra com sua arte, intensa, mas austera, e o vampiro renasce, de outra maneira. É uma criatura ferida, desolada, solitária, e decididamente, não tem sex-appeal. Seu potencial de morte e melancolia é, no entanto, conservado, com a arte do diretor e de Klaus Kinski.

Esse é um filme sobre a Beleza, que, aliada à Tragédia, visita um lar pequeno-burguês (as análises freudianas do id reprimido do corretor Jonathan Harker e sua mulher Lucy podem dar em mil conclusões, mas serão todas óbvias, e o importante, que é a força das imagens, está lá). 

O filme começa plácido, com uma imagem bem caseira, burguesa, de gatos brincando. Isso é apenas para fazer um contraponto com o que virá: nada mais que um transtorno sem tamanho para pôr abaixo toda essa tranqüilidade superficial.

Jonathan (o ator Bruno Ganz, muito convincente em sua cara de homem prosaico, marido domesticado e passivo) vai a seu trabalho de rotina e observa da janela a pequena cidade onde vive com a mulher (Isabelle Adjani, linda como nunca). Herzog filmou na holandesa Schiedam, impossibilitado de filmar em Delft, de que Vermeer pintou uma vista que, para Proust, era o mais belo dos quadros. Os cidadãos de Delft não gostaram nada da idéia de que ele soltaria ratos (ainda que meras cobaias pintadas de cinza) sobre a cidade. 

O provincianismo pequeno-burguês é enfatizado. Jonathan conclui que aqueles canais tão típicos da cidadezinha não levam a lugar nenhum... Mas seu tédio vai durar pouco, porque um tabelião (vivido com risadinhas nervosas por Roland Topor) vai lhe pedir para ir aos montes Cárpatos, onde um certo aristocrata, ansioso por adquirir uma casa na cidade, quer sem demora efetuar a transação. É longe, mas o homem, além de excêntrico, é rico, e o negócio pode fazer com que Jonathan compre, enfim, uma casa melhor para ele e sua mulher.

Vai, mas antes ela quererá um passeio na praia. A fotografia aí se prova o prodígio que Herzog precisava - mergulhamos em gradações de branco e cinza na praia menos "tropical" e luxuriante que se possa imaginar. Por vezes, a fotografia elegerá o branco e essas gradações como que para se contagiar do preto & branco do filme original com mais veemência. Em todo caso, predominarão sempre os tons esmaecidos, que, subitamente entrando em contraste com cores mais quentes, produzirão efeito devastador. E não haverá - isso é ainda melhor - nenhum abuso de vermelho e sangue.

Os Cárpatos e a escuridão 

Sob a imponência sinistra da música do grupo alemão Popol Vuh, vamos para os Cárpatos, com Jonathan, a galope. Os Cárpatos já são citados numa parábola enigmática a que Kaspar Hauser se refere no final de "O enigma de Kaspar Hauser", de 1975, do próprio Herzog. 

Em algum lugar, o diretor disse uma vez que queria mostrar, na tela, uma árvore como uma coisa assustadora. Essa capacidade estranha, de deixar que o natural se imponha de maneira lenta, e com um impacto ímpar, em seus filmes, ele a tem, e ninguém pode negar. Dessa vez, temos que olhar para as montanhas pelos olhos dele, e nos assustamos. Elas são o que montanhas, vistas com sensibilidade visionária, são - excessos, coisas da Natureza que nos intimidam, como possuidoras de uma identidade precisa e ameaçadora. Possuem segredos inumanos - como não possuiriam? - e que somos nós senão esse minúsculo Jonathan que galopa em direção ao coração devorador de pedra, abismo e escuro? Herzog captará aquele exato momento em que o dia luta com a chegada da noite, no alto, dramaticamente, em nuvens ligeiras, hiperbolizadas pela música do Popol Vuh.

E chegará ao castelo de Nosferatu depois de muito alertado pelos proprietários de uma taverna e pelos ciganos que encontrara numa aldeia. É curioso, porque é uma cena óbvia, inevitável, essa - o sujeito diz que vai visitar o castelo do monstro e um silêncio se faz na taverna, porque pronunciou o nome maldito do Conde. Mas, dessa vez, Herzog, por alguma razão, recuperou o potencial de susto que esse susto-clichê possui com a simplicidade muito prosaica da taverna e a cara muito terra-a-terra do Jonathan de Bruno Ganz.

Mas, o castelo não existe, é pura ruína. Contrariando as regras do filme comercial, não tem nada de torres ameaçadoras contra o céu, corvos voejando, raios entre nuvens de tempestade fulgurantemente clareadas. À porta, quem vai lhe receber - traindo aquela ansiedade e impaciência a que o tabelião se referiu - é o próprio Conde Drácula.

Ninguém esquecerá Kinski nesse papel, e ele pode morrer convicto de que foi o maior momento de sua estranha carreira de ator. 

Os espectadores jovens, fãs de filme de terror, rejeitam esse vampiro. Pudera: ele é todo negro, todo funerário, e não sugere senão morte, desolação, tristeza. É um rato, lá estão seus dentinhos, suas orelhas pontudas, suas garras expressivas. Ouve-se lobos, corujas, aves de rapina, naquela escuridão, e o rosto, como máscara kabuki em trevas, diz: "Ouça: os filhos da noite fazem a sua música!" E lança olhares invejosos para Jonathan, que come, porque, afinal, esse é um ser humano mortal, pode comer, pode conhecer sabores que ele não conhece. Desprezível, Jonathan é: Nosferatu lhe diz que ele tem uma mentalidade de camponês, não sabendo o que vai na alma de um caçador...Chama-o de bruto, em suma. Mas ele é dono dessa coisa preciosa: a humanidade.

Usará o homem, vampirizado, para chegar a Lucy, a mulher, que está num medalhão, que tem "um belo pescoço" (o resto, muito belo, não é citado). A sua natureza é bissexual, não parece devotar uma paixão exclusiva por Lucy, como por vezes certos Dráculas muito romantizados e forçosamente heterossexuais parecem ter. Ele se sente atraído por Jonathan também, esta é a verdade, e, quando vai em sua direção, não se está longe de pensar que Jonathan é um pobre homem assustado com algum homossexual que o ataca com uma avidez louca, de que só pode recuar: seu apetite é panssexual, é um apetite desolador por qualquer forma de vida que não seja a sua. Ele quer ser esses dois, carnes não amaldiçoadas e solitárias como a sua, ele quer se evadir, desesperadamente, de sua pele, de sua maldição secular.

A escuridão abocanha Jonathan. Mas tem algo de uterino também. Ele não sabe, mas, de algum modo, está preso a seu próprio desejo, a seu delírio, de uma maneira que os ciganos da aldeia já haviam insinuado. O castelo, tal como o cigano disse, é uma espécie de construção mental, delirante, do desejo de cada um que o visita. Para ilustrar isso, veja-se que importância Herzog dá, a uma certa altura, a filmar um garoto cigano que toca um violino guinchado numa das reentrâncias do labirinto que o castelo se revela para o aturdido Jonathan, que não encontra meio de fuga. O menino, na certa, é um cigano que lá se perdeu, alma penada escravizada a seu instrumento. Ficamos presos por aquilo a que nos entregamos de um modo bem mais trágico que as fantasias de sedução do cinema comercial costumam insinuar.

Teremos, então, realizada a estratégia de Nosferatu, no que foi auxiliado pelo tabelião, seu discípulo: prendeu Jonathan no castelo e irá para a cidade, de navio, chegando antes do corretor, que é forçado a cavalgar, para salvar a mulher. Quando Jonathan chega à cidade (e a entrada numa carruagem é um prodígio de fotografia, com o reflexo desta nos canais, evocando pinturas impressionistas), já está louco, perdido para a sanidade burguesa, e Nosferatu já tomou conta dos cidadãos, com seus ratos pestilentos. 

O luto infinito

Nunca veremos esse vampiro feliz, exultante, todo arrogante , como outros costumam ser. Esse Nosferatu de Kinski, por quê destoa tanto dos vampiros glamourosos? Porque é, acima de tudo, uma idéia - uma idéia de luto, de solidão, de tristeza que atravessa séculos. Como poderia ser satisfeito um sujeito que precisa carregar seu caixão com punhados da terra natal, que não pode ver a luz do sol, que tem ratos como companhia, mora em cemitérios e só consome sangue humano à custa de horror? O que ele tem de indestrutível? Só a sua duração, que é na verdade uma condenação a uma eternidade de tédio e malogro. Ave enlutada, negro dentro do negro, é uma criatura de pesadelo que atravessa a noite, naquela roupa que parece uma mortalha amarfanhada. Por vezes, é até mesmo desajeitado - vê-lo carregando seu caixão de cá para lá dá a impressão de que vemos um pobre-diabo a se agitar, não querendo se livrar de algum embornal que traga às costas.

Maravilhoso é quando ele consegue se aproximar de Lucy e lhe pedir amor e ela o rejeita, dizendo que amará Jonathan e a ninguém mais. Rejeitado, esse Nosferatu não se impõe, violento, prepotente, senhor de si - ao contrário, o gemido de frustração que lança é de um desespero nunca visto. E é assustador menos pelo medo que nos causa que pela certeza de que nos dá de que é um monstro que sofre de maneira indizível (de onde Kinski arrancou aquele som?). 

O Drácula sedutor do cinema comercial é um sonho de compensação infantil, como quase todo monstro - pode ser horrível, mas tem o charme da imortalidade, possui belas mulheres (cravando-lhe os dentes, bem entendido), repele os inimigos, voa, vira um morcego perigoso e onisciente, e é dono de uma petulância sem igual. O Nosferatu de Herzog mal se suporta - quando o vemos sendo adulado viscosamente por seu discípulo, o tal tabelião, notamos que é com desprezo infinito que ele trata o sujeitinho rastejante - apenas ordena que ele siga para uma determinada direção, levando os ratos, disseminando a peste. Ele cumpre sua maldição sem ilusão alguma sobre algum privilégio que ela traria. Tudo que ele quer só lhe chega como tédio e contrafação.

É preciso dizer que tudo isso é acompanhado pela música do Popol Vuh e também por trechos de "O ouro do Reno", de Wagner.. Quando a onda vocal, com o langor mórbido típico de Wagner, chega-nos em cheio, ilustrando as imagens da cidade destruída pela peste, temos uma dessas experiências de cinéfilo da espécie mais rara: uma pura sensação de Beleza, de grandes idéias e correntes espirituais que se correspondem perfeitamente exibidas numa tela. Poucos filmes conseguem isso, e Herzog é particularmente feliz nesses achados - conseguiu, com "O enigma de Kaspar Hauser", colocar o célebre "Adágio" de Albinoni pairando sobre imagens de um modo que nunca esqueceremos.

Não bastassem todas as belezas que esse filme oferece generosamente, temos, lá pelo final, quando Lucy se oferece em expiação para reter Nosferatu até que ouça o mortal canto do galo (entre as coisas que serviu para Jonathan no castelo, o vampiro, ironicamente, oferecia uma mesa decorada com um galo), a experiência do que pode ser, concretamente, um vampiro engolindo o sangue de alguém. Nosferatu bebe do pescoço da belíssima Lucy, e ouvimos o glu-glu-glu terrível com que vai engolindo aquilo, como um bebê se entupindo de leite materno. É terrível, lógico e arrebatador.

Também o caçador de vampiros arqui-consagrado, Van Helsing, é maltratado em seu clichê por Herzog nessa produção - aparece como um sujeito burocrata meio pasmo que vai enfiar estacas no vampiro e, cumprida a sua tarefa como alguém que, convocado para matar insetos, o faz com competência medíocre, é preso! Não se pode matar alguém na cidade, mesmo um monstro. Mas, tampouco há cadeia onde se possa ficar. A cidade está acabando, todos morrem, o caos e o luto se instalaram por toda parte. Os que entram na casa de Jonathan e Lucy para prender Van Helsing são apenas uns meros funcionários aparvalhados, devendo cumprir leis que já nem fazem mais sentido.

O final é mais que lógico, irônico, extremamente feliz. Nenhum cineasta comercial o teria feito, mas Herzog coroa o seu filme com aquela cena e aquelas palavras. Sim, a vida passará, agora sim, a ser interessante. E o galope continuará. Noite adentro, para o fundo do fundo, ao som de Popol Vuh.

Sobre o Autor


Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios. 


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Chico Lopes é autor do romance "O estranho no corredor", debatido no clube de leitura em 3/5/2013

Francisco Carlos Lopes

Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

28 de janeiro de 2014

Até pender...: William Lial




Noturno
 
O Mundo de Vidro







   William Lial é escritor (poeta, cronista, contista,  romancista   de um romance ainda não publicado), ensaísta literário, e mestre em Literatura Comparada. 


  Autor de três livros de poemas:

 Sombras (2001)

Noturno (2003) 

O mundo de vidro (2005)


Além de colaborar com jornais e revistas do país. 

Para saber mais sobre o autor e seus livros basta acessar e/ou seguir seu blog: 


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Vendo o mundo com Hitchcock: entre desejos e proibições - Chico Lopes





Eu tinha 13 anos e o filme era proibido para menores de 14. Havia lido sobre a produção em Cinelândia ou em Filmelândia, sabia de seus preparativos, da escolha da modelo Tippi Hendren para o papel principal. Mas não pude entrar no cinema, não consegui comover o gerente com minhas súplicas, e fiquei defronte ao prédio, ouvindo os ruídos da projeção, os gritos das gaivotas, pegando em relance algumas imagens do incêndio de Bodega Bay, quase no final.



Minha paixão por Hitchcock vem daí. Os pássaros foi minha primeira grande intuição do que poderia ser a verdadeira arte cinematográfica. Obcecado por pássaros, eu havia desenhado, a lápis de cor, todo um caderno, procurando fazer com um máximo de exatidão cópias dos pássaros de um álbum de figurinhas educativas. Também desenhava a lápis umas HQs com toques de ficção científica, prédios que se incendiavam, e era leitor ávido de gibis que trouxessem isso — calamidades, ameaças sobrenaturais. O filme ia ao encontro desses devaneios e despertava em mim fascínio quase obsessivo. Nunca me conformei em não ter podido vê-lo daquela vez e desenvolvi por ele uma idolatria só satisfeita, parcialmente, por leituras. Só o vi, na íntegra, pela televisão, mais de dez anos depois. Para ficar maravilhado.



Lembro-me que um crítico de renome chamou-o de "obra-prima da inquietação" e a Hitchcock de "gênio da arte da ansiedade, comparável a Kafka e Edgar Allan Poe". Os cinéfilos são, às vezes, exagerados e parecem precisar dar aos filmes de sua predileção um verniz culto, procedente das artes ditas "mais nobres" (em geral, Literatura) nem sempre cabível. No caso de Os pássaros, no entanto, a comparação é mais que justa: Hitchcock, com essa obra, ganha uma dimensão de grande criador visionário. Em matéria de inquietação, poucos filmes chegam perto.



Alguém disse que é o precursor do filme de catástrofe, o que considero uma ofensa ao gênio hitchcockiano, que é, acima de tudo, sutil. Nenhum terremoto, nenhum grande edifício em chamas, nenhuma avalanche teria a força aterradora desses pássaros banais, imposta de maneira fascinante e inexplicável, assim como em O corpo que cai vemos a Morte transformada em sedutora e participamos de um sonho de ressurreição e onipotência (e necrofilia).



Para começar, o filme não é sensacionalista: os ataques dos pássaros não são combatidos pelo exército americano nem alardeados por todos os meios de comunicação, restringindo-se a uma cidadezinha litorânea da Califórnia — Bodega Bay. Não há morticínio, e uma suposta vingança ecológica fica reduzida à precariedade da conjetura; Hitch parece descartar todas as interpretações simplistas; sua preocupação deve ter sido a de provocar inquietação através de uma fantasia assumida como tal. A invasão das aves é gratuita, imprevisível, e uma velhota ornitóloga, que pedantemente descrê da agressividade dos pássaros, fica daí a pouco reduzida, por um ataque, a um simples ser humano, envergonhado, incapaz de entender.



Hitch sempre ironiza o especialista em seus filmes. No fim de Psicose, um psiquiatra, explicando o comportamento anormal de Norman Bates, não explica quase nada, ou melhor, uniformiza, pelas teorias psiquiátricas, um modo de ser que até ali nos fora mostrado com todo o seu pathos singular de tragédia individual e que não tem como não continuar misterioso. O ódio ao especialista, ao "entendedor", talvez proceda de nosso desapontamento com a arrogância da lógica, que só é eficaz enquanto não confrontada com o mistério e o absurdo da realidade.



Aliás, em Psicose, filme imediatamente anterior a Os pássaros, há uma pista para a gênese deste. Enquanto Marion, próxima vítima, come um sanduíche preparado por ele, Norman Bates ironiza a expressão "comer como um passarinho". "Porque não é verdade, sabe? Os passarinhos comem exageradamente", diz. E atrás de sua cara de alucinado, com asas abertas, há uma coruja empalhada. Por todo o motel, há também daqueles quadrinhos de pássaros tipicamente decorativos.



Hitch talvez quisesse desmitificar a aura tradicional de amabilidade das aves, devolvendo à Natureza filmada um senso de realidade bem mais crível que a habitual e piegas inocuidade das "graciosas criaturinhas do ar". O papel dos grandes artistas sempre foi o de recuperar o poder de perturbação do real, que é o responsável pela magia da arte. A fantasia pura e simples está sempre muito abaixo ou muito acima da grandeza, do assombro da realidade, esta sim sobrenatural.



Há no filme cenas que são pura poesia de ansiedade: Melanie Daniels, esperando a menina Cathy sair da escola, fuma nervosamente e percebe que, um por um, os pássaros ameaçadores vão pousando nos ferros de um playground próximo. Vemos a sua impotência em crescendo, e o crescendo obedece a uma prodigiosa intuição cinematográfica — os pássaros vão pousando nos ferros do brinquedo infantil ao ritmo de vozes de crianças que cantam inocentemente na sala de aula, ignorando o perigo iminente, só testemunhado por Melanie. É um autêntico balé de medo, impotência, presságio, inquietação.



A violência das aves é inusitada: furam portas, telhados, vidros, atacando pessoas e coisas com uma determinação rigorosa e insana. Hitch dispensa trilha sonora, deixando que os gritos, pios, cantos façam a música do filme, que assim fica marcado por um fundo sonoro surdo, ubíquo, vago e inquietante, como um vento apocalíptico. A simples visão das aves se juntando nos fios de eletricidade, contra o céu crepuscular, ganha, no filme, uma eloqüência quase mística. E há muito sexo nos ataques: bicos fálicos, determinados, insistentes, nas pernas (muito desejáveis) de Melanie, e uma alegria histérica na destruição pela destruição. Desde a abertura, com os créditos sendo retalhados pelas aves, entende-se que elas simbolizam o que se convencionou chamar de "Id", a força puramente instintiva, anárquica, gratuita e vital mantida sob repressão em cada homem. Hitch gosta, obviamente, de Psicanálise, mas nesse filme, ao contrário de no seguinte, Marnie — Confissões de uma ladra, a simbologia não é tão evidente, embora Édipo e correlatos possam ser vistos nos segredos latentes/manifestos do enredo. Mitch Brenner, o advogado por quem Melanie sente um desejo atrevido de moça rica e mimada, é escravo de uma mãe possessiva, que o impediu de namorar a professora Anne Hayworth, que mora resignadamente em Bodega Bay. O retrato do pai morto é transparentemente uma referência ao triângulo edipiano; de trás dele, a mãe, preocupada em recolocá-lo no lugar depois de um súbito ataque de pardais à sala, faz cair um passarinho que morrera. Para proteger a casa, no ataque final, Mitch coloca móveis contra a porta; o último deles é uma penteadeira, o que o faz ficar diante de um espelho. E, do outro lado do espelho, os pássaros. Eles são mesmo o avesso elucidador da verdade, a violência freudiana existente nessa família cuja paz é a mais superficial possível.



O pai de Hitchcock, segundo as biografias, tinha uma loja de aves. É decantado um episódio da infância do cineasta, não se sabe se inventado por ele (famoso pelas imposturas publicitárias) ou não. O homem teria posto o filho na cadeia por alguns minutos, numa demonstração de autoridade cuja razão Hitch não compreendeu: o que teria feito de errado? Deve ter sentido que o pai desejava era infundir o terror pelo terror, gozando o arbítrio de sua posição superior. Como em A sentença, de Kafka, o pai aterroriza porque é pai e não precisa mais — acha-se plenamente justificado pela terrível respeitabilidade de sua posição. E "o que perturba na sociedade é a aparência racional de sua irracionalidade", disse Marcuse. O gosto pelo sadismo pode ser dissimulado sob formas oficiais, na ordem familiar, nos fatos comumente aceitos e até estimulados, e, na arte, sob a sedução das formas.



Mas a vingança pessoal de Hitch é um dado menor numa obra tão bela. O que importa é a flor original que podemos arrancar de nossos ressentimentos, fobias, obsessões. Acima da biografia psicopatológica do criador, embora, sem dúvida, alimentando-se dela, resplandece o vigor auto-explicativo da criação.



O taxidermista


Horror como entretenimento? Que alma é a essa que precisa de doses permanentes de crueldade para manter seu precário equilíbrio? O que o cinema do horror nos oferece não é nada além disso — a possibilidade de vivermos, sem repressão, sem remorso, o sonho de um crime. De toda moral sub-edificante do filme, o que nos interessa de fato é o assassinato, o pânico garantido, a catarse pela vivência fantasiosa do Mal. Precisamos de tortura, desespero e sangue, e os cineastas do gênero sabem disso. Brincam, então, no limiar da amoralidade absoluta, presenteando-nos com toda uma estética da maldade, manipulando nosso desejo de sermos precisamente aquele tarado, aquele esquartejador, aquele demônio.



Quem é que hoje em dia debateria coisas tais como os perigos a que uma alma está exposta, os abismos de sedução do Mal, as implicações metafísicas da aceitação de violências rotineiras, as conseqüências da Grande Omissão? Vivemos numa civilização que namora cada vez mais a Morte, cultuando o risco da destruição total com um fascínio mal disfarçado pelos protestos de um humanismo débil. Os artistas, se grandes, limitam-se a detectar a ameaça com sensibilidades que já os fazem bastante desgraçados para poderem indignar-se ativamente. Não passam de agentes torturados do que mal podem definir. E a resposta que damos às suas inquietações é somente uma apreciação estética do Horror. Ou um culto fanático da sedução que transborda de suas obras, cegos às auto-imolações inomináveis que podem tê-las gerado.



Hitchcock conheceu muito bem as ambigüidades dessa situação. Aparecia em seu filme com a lepidez típica dos gordinhos, com ar de desdém e descompromisso perante a sua própria obra, um gnomo cheio de malícia e falsamente disposto a ser simpático. Obrigado a ceder ao comercialismo de Hollywood, usava-o como um artista fino, dando ao espectador-vampiro seu quinhão de morte e castigando-o sempre que possível. Seu cinema tinha um teor de revanche moral, mas era suficientemente sedutor para passar por espetáculo de massa puro e simples. Eles nos fazia compactuar com crimes e perversões, punindo-nos ou deixando-nos desamparados, feiticeiro displicente. "Lavava as mãos", de certo modo. "Dou o que vocês pediram, o que vocês merecem, portanto. Não tenho nada com isso. Mas, já que estou aqui, por quê não divertir-me, punindo-os um pouco também?". Esse gênio do humor negro talvez seja um dos artistas-chave do século. O cinismo era a sua forma de virar a mesa, de provocar inquietações morais.



Nunca me esqueço da figura de Norman Bates em Psicose. Dono de um motel fora de mão, órfão de pai, mãe, Deus e todo mundo, empalhava pássaros como passatempo. Esse taxidermista simboliza a solidão trágica de nosso tempo. Escravo de suas compulsões, filho involuntário das trevas, entrou para a galeria de monstros célebres do Cinema, e, como Nosferatu, tem uma aura arquetípica de humana e patética inumanidade. Desenhado como o típico "filhinho da mamãe", ele é tímido, gentil, gagueja, não pára de cometer "atos falhos", tropeçando em si mesmo continuamente. Procura ser solícito, encantador, mas é nervoso demais para isso. "O melhor amigo de um rapaz é a sua mãe, você não acha?", pergunta a Marion Crane (Janet Leigh), mais afirmando com hostilidade que perguntando.








Há nele uma homossexualidade de que Hitch só nos dá um sinal irônico — e penalizante: é quando o vemos subindo uma escada com uma espécie de rebolado involuntário, entre a comicidade e o desespero. Mas, Édipo para além da morte, ele resolve seu homossexualismo matando mulheres. Matar Marion Crane para ele é matar o fascínio perverso que a fêmea (incesto, tabu) exerce sobre sua sexualidade distorcida. O passatempo de taxidermista desnuda esse gosto necrófilo, essa incapacidade de amar a vida sem reduzi-la a uma coisa inanimada. Para a sua psicose, a mobilidade é uma perturbação, a liberdade do Outro, uma fonte de desespero e inveja. Morta, Marion Crane estará possuída, exorcizada, não mais causará transtorno em sua rotina de solidão necessária.  O crime do box do banheiro, tão célebre, pode ser visto como um ato de amor.



E a casa de Norman, conjugada ao motel? Um estereótipo de mansão de filme de horror, do qual o mestre extrai uma dignidade de autêntica morada dos Usher. Obrigado a excitar platéias cada vez mais insensíveis, peritas em truques e imprevistos, Hitch não só fez um filme de grande sucesso comercial na linha do susto garantido, mas uma tragédia contemporânea, tão forte e seminal que todos os filmes de suspense posteriores lhe rendem tributo de maneira direta ou indireta. Sem, contudo, captar o essencial desse e de outros filmes de Hitch: uma atmosfera peculiaríssima de degradação, perversidade, elegância e ironia, em que transparece a consciência atormentada de um moralista católico, para quem tudo nesse mundo é apenas reflexo da batalha entre Bem e Mal, travada lá longe, lá no fundo, muito além das aparências.



O roubo


Marion Crane rouba um milionário texano arrogante e corrupto que todos nós, espectadores, gostaríamos de sacanear. Toda a parte do roubo e da fuga que lhe segue constitui uma das mais perfeitas e amarradas seqüências de cinema que se conhece. O prazer de transgredir, de cometer uma imoralidade (o que o espectador procura) é aí sintetizado à perfeição. Mas, como bom católico, Hitch não deixaria a pecadora sem castigo e, desde o momento em que Marion se apossa do maço de notas, está determinado que isso acabará mal, pois ela cedeu a uma tentação e atraiu contra si os ventos da Morte, embora pareça haver uma enorme desproporção entre o ato cometido e o rigor da punição. Acontece, porém, que o ato não envolveu apenas o prazer do roubo, mas toda uma metafísica da desobediência, como Adão comendo o fruto. É notável como Hitch fetichiza ao máximo as notas, ampliando em significado esse signo que, às vezes, ocupa a tela toda. Esse maço de notas é sexo, significa a possibilidade concreta de união física total entre a ladra e seu amante. Mordido o fruto, só resta a expulsão do Paraíso. E vem a jornada em que Marion, ao volante, parece ir mergulhando progressivamente, detalhe por detalhe, no Inferno, seu rosto lutando com as sombras da noite, dividido entre a excitação e o medo, a culpa e o júbilo da transgressão.


A lei usa óculos escuros


Enquanto ruma para a morte, Marion é — ou supõe ser — perseguida por um policial de óculos. Esse policial é outro dos inúmeros achados que fazem a maestria do diretor. Simbolizando a consciência pesada da ladra, ele é como que onisciente e onipresente; a todo momento, ela se depara com sua figura imóvel, vigilante, sinistra em sua impassibilidade acusadora, sem poder ler o olhar que a lê, devido ao obstáculo dos óculos escuros. Quando ele enfia a cabeça carro adentro pedindo-lhe os documentos, o rosto é profundamente duro, frio e hostil, e os óculos simbolizam tanto a cegueira quanto a insondabilidade da lei.



E simbolizam também o charme dúbio da interdição, da autoridade, prato feito para a sexualidade masoquista, que não faz senão flertar com encarnações erotizadas da restrição, da punição, da Morte. A aproximação do policial ao carro onde ela se abrigou parece uma estranha devassa de pecados, de intenções que Marion não ousaria confessar a si mesma.



Participamos da ansiedade dessa anti-heroína e vemos claramente como a consciência culpada alucina a percepção das coisas. Passamos instantes de paranóia pura suando frio, temendo por uma ladra, cúmplices de um roubo. Mas o policial não suspeitava de nada anormal e apenas realizava uma inspeção de rotina. Isso é Cinema: o que aconteceu foi mínimo, mas o talento do diretor é de tal magnitude que as imagens tiveram uma eloqüência capaz de nos levar para muito mais longe do que poderíamos supor. Suspiramos de alívio ao vermos Marion liberada, retomando a estrada. Exatamente como ela. E a seqüência mal continha diálogos.



Pactos e aversões: os homossexuais em Hitch

Não tenho a pretensão de escrever ensaios acadêmicos, não sou nenhum "scholar" de cinema, mas vi tantos Hitchcocks, e com tal freqüência e repetição, que posso pelo menos arriscar visões mais generalizantes de sua obra. O homossexualismo, por exemplo, está em boa parte dela, seja em forma sublimada, com um toque de poesia perversa, seja com certo distanciamento irônico do diretor.



Não fosse por todo o resto, Pacto sinistro (produção de 1952) valeria por oferecer uma lição de como abordar um assunto ingrato (e impensável para a década de 50, no contexto do cinema comercial de Hollywood) sem uma só menção explícita, sem uma apelação sequer. Quem quer que tenha dúvidas do talento de Hitchcock para manipular imagens que conseguem sugerir mundos e fundos sem perder a superfície elegante, a narrativa fluente e aparentemente empenhada apenas em entreter, seduzir, assustar, precisa ver este filme.



É preciso dizer tudo aparentando dizer nada, ou dizendo muito pouco, apenas o suficiente para seduzir o público, que depois poderá decidir do que viu. Mero entertainment? Não, é a condição para um mergulho nas águas de um realismo superior à "realidade".



A história é uma sublimação em crime de um sufocado amor entre homens. Criss-cross, "um pelo outro", propõe o mais ousado deles.



Ele é Bruno Anthony, milionário desocupado, e o outro, Guy Haines, tenista em ascensão que está para casar-se com a filha de um senador. Unidos por acaso no vagão de um trem de luxo, eles falam de suas dificuldades, Bruno com o pai, Guy com a ex-esposa, que não quer lhe dar o divórcio. Insinuante, Bruno propõe um pacto: matará a ex-esposa, que estorva seus planos de ascensão social e, em troca, Guy deverá matar-lhe o pai. Argumenta: em ambos os casos, seria o crime perfeito pois, cometido por estranhos, estaria privado de um elemento essencial: a motivação.


Desde o início, filmando os pares de sapatos que procedem de pontos diferentes e esbarram-se no vagão, propiciando o encontro, Hitch deu a este um caráter de necessidade, de fatalismo. Guy vê Bruno apenas como um desses maçantes que às vezes nos abordam em viagens, como um maluco inofensivo, e finge aceitar a idéia para livrar-se do incômodo e um pouco também porque fora bastante adulado. Esta pequena concordância íntima, contudo, detonará conseqüências trágicas, na linha tradicional do Mestre, que pune leviandades com catástrofes. O cineasta parece estar sempre repetindo que, para enredarmo-nos no Horror, não é necessário mais que um pequeno e frívolo sopro do Acaso, um pequeno descuido de consciência lassa.



A obra transpira ambigüidade. Bruno é, obviamente, um duplo negativo de Guy, representa a materialização de seus desejos inconfessáveis, seus devaneios de violência postos em prática. Depois de brigar com a ex-esposa em Metcalf, onde o trem o deixara, o tenista diz à namorada Anna, no telefone, que seria capaz de matar, estrangular essa mulher que não concorda com o divórcio. Nesse exato momento, o trem que leva Bruno passa ruidosamente pela cabine de onde fala e, a seguir, aparecem as mãos de Bruno contorcendo-se na avidez de estrangular, exercitando-se para o crime concreto que acontecerá num parque de diversões.



Um crime antológico: começa por um processo de sedução, pois Bruno sabe que a ex-mulher de Guy é pouco séria e é muito seguro de seu charme, e termina num estrangulamento que se consuma como se fosse um desejo partilhado pelo assassino e sua vítima. Temos pena da mulher — ela deseja esse homem que a segue e que é um bonitão — mas estamos preparados para achar "bem feito" que ela acabe tão mal. Bruno leva seus óculos a Guy para provar a façanha e efetuar a cobrança. Criss-cross. Apavorado, o tenista hesita entre ficar ao lado do maníaco ou chamar a polícia, e a cena em que passa para o lado de Bruno no portão, a fim de se esconder de uma viatura, é uma ilustração perfeita dessa relutância. Parte vital de seu ser está com esse homem doente; a cena do portão tem o frenesi de um beijo proibido que não se consuma, que está no rosto debochado de  Bruno; ele assedia Guy de uma maneira oferecida, coquete, idólatra, procurando aliciá-lo de qualquer modo. O prodígio da elegância de Hitch é que isso nunca é vulgar. Pois é evidente que a cumplicidade que Bruno exige é de natureza sexual, o "um pelo outro" do trato consuma-se na multiplicação dos signos de cumplicidade: isqueiro com raquetes de tênis cruzadas, cruzamento ferroviário, sapatos que se tocam, grade de portão que veda e aproxima. O "troca-troca" sonhado é denunciado por todos esses signos pouco inocentes.


Noturno, ubíquo, imprevisível, Bruno é um credor implacável e velado, um indício exterior da consciência culpada de Guy, e aí fica patente a conexão misteriosa, erótica, que existe entre Bem e Mal, entre o lado da claridade e o lado das sombras, desejosos um do outro.



Há cenas perfeitas: numa partida de tênis, sentado na arquibancada, Bruno está completamente imóvel e vigilante; enquanto os espectadores todos se movem acompanhando o ir e vir da bola com a cabeça, ele tem a perigosa rigidez dos que possuem uma idéia fixa. Nunca essa verdade teve uma tradução cinematográfica tão simples e brilhante.



Bruno aparece como uma silhueta negra contra a brancura do Pentágono. Só age à noite, e como o Rusk do Frenesi de 1972, é outro edipiano trágico, ostentando, tal como este, um monograma que denuncia seu narcisismo. Sua mãe, uma ociosa que quer ser pintora, aparece numa cena que consegue ser tragicômica, hilariante e assustadora, mostrando ao filho um quadro de que ele debocha vigorosamente, dobrando-se de rir. Sempre mães, sempre filhos para os quais os pais é um rival perigoso, uma ausência, um estorvo concreto ou imaginado. O horrível quadro que a mãe pintou, na tentativa de fazer um São Francisco, é, para Bruno, uma reprodução exata do "velho".



Por precisar de um outro modelo masculino, de uma paternidade mais de acordo com seus desejos amorosos e hostis, aproximou-se de Guy e matou a mulher do tenista, querendo como que substituí-la; por isso, tem a filha do senador como inimiga. Signos ambíguos, que não param de fundir-se e desdobrar-se na dinâmica da narrativa. Bruno é trágico, Guy é apenas um arrivista medíocre, covarde. Ao fim, depois de uma tensa partida de tênis, jogada contra o relógio, seguido pela polícia, Guy tem de se livrar de seu demônio por um ato de audácia extrema, auxiliado pela noiva e a futura cunhada (bem sintomático: é a guerra entre as hostes femininas e masculinas dentro do herói). Buscando impedir que Bruno o incrimine, colocando um isqueiro seu no parque de diversões onde a ex-mulher foi estrangulada, ele vive um momento tão crítico quanto um pequeno Juízo Final. Símbolo do pacto e da inversão, o isqueiro é o trunfo de Bruno: simboliza a capitulação involuntária de Guy, é a prova da existência de um «eu» clandestino. Para recuperá-lo, neutralizar seu potencial de acusação (em mais de um sentido), é necessário que Guy lute com Bruno num carrossel descontrolado, luta que se parece um pouco com um engalfinhamento sexual. O demônio morre, mas até o último suspiro quer incriminar Guy junto à polícia, e só expirando é que sua mão, vencida pela morte, se abre para deixar aparecer o isqueiro, agora prova da inocência do tenista. O que era denúncia vira libertação, numa dessas operações geniais de transmutação de símbolos das quais Hitch tinha o segredo. E Guy pode retornar aos braços de Anne. 



Para que se estabeleça um pacto com o Mal, não é preciso uma aceitação formal: o próprio desejo, ainda que reprimido, pode consumá-lo. O pecado é profundo, pensa Hitch, e nossas almas são potencialmente más, bastando muito pouco para que nossa malignidade (Pecado Original) tome forma. Bruno é antagônico de Guy, para quem quiser ver no filme apenas um thriller bem feito, mas, na verdade, é o próprio Guy subterrâneo agindo em obediência a uma verdade oculta.



Ele nunca aceitou sua parte no pacto, repeliu o que Bruno lhe propôs (a eliminação do pai) como uma idéia impensável, demente. Mas, decidido a contar ao «velho» de Bruno que o filho é louco e deve ser internado, vai à casa dele com um revólver. Por quê? Sobe para um quarto à espera de encontrar o homem, mas, na cama, é o próprio Bruno que dorme, usurpando o lugar do pai e fazendo ali o papel da mãe que espera por Guy, pai substituto e idealizado. O revólver significa que Guy tanto podia estar pensando em defender-se de Bruno quanto em executar sua parte no pacto.



Essas almas que duelam em claro-escuro são uma só alma, um só desejo, um só destino quebrado em partes que se espelham, se buscam e se repelem, ansiosas de um Absoluto afetivo contra o qual a ordem social se insurge.

 

À espera do castigo: o desejo furtivo e a palmatória


Naturalmente, não se poderá entender com clareza a obra de Hitchcock se não considerarmos o lastro católico do diretor — e, embora muito já se tenha escrito sobre isso, a obra é tão rica que estará permitindo sempre novas releituras. Tampouco se poderá deixar Freud de lado, de tal modo as idéias freudianas parecem ser perfeitamente ilustradas por esse cinema. Quem aqui escreve não é um estudioso de Psicanálise, apesar do farto uso do vocabulário psicanalítico. Quem escreve é um crítico de cinema, um escritor, um esteta, que acredita ter lido Freud como um grande escritor, um fino e atormentado leitor dos problemas da cultura, não como o criador de uma ciência, uma disciplina cuja progressiva implantação no mundo leigo rendeu tantas polêmicas, e ainda renderá.



O Hitchcock católico, que, jovem, foi mantido no colégio jesuíta Saint Ignatius, em Londres, ao falar com François Truffaut no célebre Hitchcock/TruffautEntrevistas (editora Brasiliense, São Paulo, 1986), diz, à página 23: "Foi provavelmente ao longo de minha passagem entre os jesuítas que o medo se fortificou em mim. Medo moral, aquele de ser associado a tudo que é mau. Sempre me mantive à distância. Por quê? Por medo físico, talvez. Tinha horror aos castigos corporais. Ora, havia a palmatória. Creio que os jesuítas ainda a empregam. Era de borracha muito dura. Não era administrada de qualquer jeito, não, era uma sentença que se executava. Diziam-lhe para passar por um padre no final do dia. Esse padre escrevia solenemente o seu nome num registro com a menção do castigo a ser sofrido e, durante todo o dia, você vivia nessa espera".



Não importa a quantidade de palmatórias e as esperas ansiosas (que já poderiam definir um dos traços de gênese do gênero "suspense") para esse fim do dia em que ficaria claro o castigo que o infrator das leis católicas receberia — com o Desejo, castigo ou proibição algum pode ter uma eficiência mais que passageira.



A homossexualidade no cinema de Hitchcock se inscreve no capítulo das taras, perversões e anátemas que a religião católica aponta nesse mundo fervilhante do Desejo, que nunca lhe foi possível controlar e dominar. Já estava lá em Murder, de 1930, no artista de circo que mata uma mulher para que esta não revele à noiva que ele tem uma vida homossexual — e, aliás, ele, avô de Norman Bates, já pratica o travesti. Vai fazer vários reaparecimentos ao longo de sua obra — no primeiro passo que dá na América, com Rebecca, a mulher inesquecível (1940), está lá, na relação da governanta Mrs. Danvers com a mulher que morreu e que continua viva dentro dela, como paixão para lá de obsessiva, e tem uma espécie de ápice retorcido em Festim diabólico(1948), em que dois rapazes matam um terceiro, amigo deles, por um motivo tão vago como a teoria de um professor que lhes fala da superioridade da inteligência sobre a moral convencional e porque o tal amigo estaria gostando de uma mulher, escondendo o cadáver dentro de um baú sobre o qual improvisarão uma mesa de jantar.



A associação da homossexualidade com a vilania e o crime faz todo o sentido dentro da lógica da repressão católica que Hitchcock sofreu. Lógica que não impedia seu cinema de, penetrando na alma do "desviado", mostrá-lo como uma denúncia viva da perversão do processo — obrigado a calar o seu desejo, só pode manifestá-lo de forma distorcida, vingativa, "doentia", meio como se buscasse torná-lo um ato de satisfação substitutiva pelo fato de a maldade constituir um alívio provisório e uma acusação a um mundo de regras que submeteram sua alma a um deserto sem a menor esperança de água ou brisa. O crime é uma tentativa de acerto, de diálogo com essas forças que o deixaram perdido num inumano palco interior de ânsias e sinais trocados.



Já a história da relação do cinema de Hitchcock com a Psicanálise é contraditória, porque quanto mais seus filmes são assumidos no sentido psicanalítico, mais óbvios, convencionais e fracos eles ficam. Isso começa claramente com Quando fala o coração, de 1945. O filme mal resiste a uma revisão, tão ridículo é, em seu ABC freudiano. Ainda no tópico do psiquiatra com sua fala ridiculamente explicativa ao final de Psicose, Marnie — Confissões de uma ladra (1964), de resto uma das obras-primas menos valorizadas do Mestre, há uma queda na redundância mais rasa toda vez que tenta se explicar o comportamento da anti-heroína. Hitchcock é melhor simplesmente como artista, e é como artista que teria muito a ensinar a Freud. Mais radicalmente que as teorias deste, o seu cinema faz a defesa do Desejo e o associa, em sua perseguição da finalidade total, com a Morte, mas como uma distinção criativa da espécie humana, como uma aspiração legítima que o meio social tentará disciplinar ou circunscrever, não desanimando em sua rigidez normativa da mesma forma como ele, contrariado, não desanimará de expressar-se, de procurar satisfação, de um modo ou de outro. Evidente que, como artista preocupado com a bilheteria que era, como homem de educação católica, Hitchcock faria sempre, conscientemente, objeções irônicas a esse tipo de análise. Mas, mais artista do que gostaria de admitir, é na sua obra que vamos encontrar as provas de emotividade que se situam além de toda explicação racionalizada.








É com esse intratável, irredutível a regras, normatizações e socializações, que o cinema de Hitchcock lidará, e ele pode ser o mesmo cerne irredutível ao processo civilizado, livre e selvagem demais, que Freud apontava como a inextirpável fonte de irracionalidade humana. O mestre vienense desanimava de acreditar na Civilização devido a isso. Mas, é em parte devido a isso mesmo, que devemos ter fé em a Civilização não conseguir eliminar — ou só o fazer parcialmente, sem muito sucesso — o que podemos ter de mais criativo e insubornável.





Um tio e uma sobrinha




O que talvez me agrade em Hitchcock é que, sendo ele o cineasta de quem vi o maior número de filmes, seja a certeza de uma organicidade, de uma obra cujos sinais se repetem e evoluem de forma bem nítida. Perseguindo a ex-mulher de Guy no parque de diversões de Metcalf, Bruno explode, com um cigarro e uma displicência demoníaca, a bexiga de um menininho, que chora. É cruel e engraçado. Bexigas são perfuradas pelos pássaros de muito tempo depois, na festinha de aniversário da menina Cathy em Os pássaros. Essas pequeninas repetições me encantam infinitamente, parecem sugerir significados inesgotáveis e é por causa delas que é preciso rever os filmes, sempre com novo prazer.



Um vilão da estirpe trágica de Bruno é o tio Charlie de À sombra de uma dúvida. É um estrangulador de viúvas procurado em todos os EUA. Para camuflar-se, fugindo da polícia, ele vai para uma cidadezinha, Santa Rosa, onde tem uma irmã casada, que o admira muito e para quem ele é a própria encarnação do sucesso, o melhor em mundanidade que um homem pode alcançar. O homem tem uma sobrinha que, como ele, se chama Charlie. O elo necessário e misterioso entre a sobrinha e o tio se estabelece desde o início; quando ele viaja para o interior, ela já tinha lhe mandado um telegrama, chamando-o. Ingênua, é claro que ignora a verdadeira identidade do tio. Mas acaba suspeitando da verdade, e a sua curiosidade vai levá-la à descoberta.



Nessa operação de descoberta se instala o núcleo de tensão e poesia do filme: ela se apavora e se excita com a verdade que vai sendo desvendada, indecisa entre o charme e a repugnância do Mal, como todos nós. À tentação ela opõe uma resistência débil, ainda mais enfraquecida pela curiosidade. Está sempre flertando com seu demônio, e o fato de saber a verdade a torna cúmplice dos crimes do tio sedutor, fá-la participar, com perigosa intimidade, do segredo do Mal. Ou seja, é puro sexo, pois até sua mãe tem pelo irmão uma admiração que não está longe de ser incestuosa.



Ambivalência é movimento. Nada é definitivo, nada pode ser julgado e a câmara ágil esquadrinha a dúvida e a ambigüidade incessantes. A sobrinha é uma jovenzinha típica do interior americano na década de 40, sonhadora, romântica, com uma tendência inocente à idolatria. Virgem, o tio obviamente lhe representa o encanto do mundo masculino adulto, de cujos perigos está no limiar. A conivência erótica com o crime, com o assassinato, é uma obsessão do diretor já bem patente nessa fase ainda meio tateante de seu cinema na América.



Tipo acabado do narcisista maldoso, o tio é um sedutor cínico que sabe de seu poder e abusa de seu charme — este lhe autoriza a prepotência e mascara a sua provável impotência sexual. Prova da impotência: tomada em primeiro plano de sua mão à janela, quando contempla a sobrinha lá fora. A mão treme e se contorce no desejo incontido de estrangular, quase uma representação metafórica da impossível ereção. Amar, para esse grande solitário, significa estrangular.

No fundo, é um homem completamente desiludido. Na mesa de um restaurante diz à sobrinha que ele é uma tola, que nada sabe da lama e do desespero que as boas aparências encobrem, mencionando o nojo que sente das viúvas ricas que seduz, rouba e mata. Como um exibicionista, mostra à sobrinha sua perícia em estrangular usando um simples guardanapo, insinuando sexo, poder e orgulho de sua condição de demônio (a cena é magistral porque estabelece um contraponto visual entre o que ele diz e o que ele realmente é; a imagem torna o discurso vazio, ironiza-o). Tudo isso não passa de uma demonstração tão patética quanto a dos pobres diabos que abrem as braguilhas para crianças e mulheres mundo afora. Um orgulho infantil do pênis, uma procura de reconhecimento para uma verdade solitária e anti-social.



A sobrinha se divide entre um policial insípido (o Bem, ou seja: a Repressão) e o tio, ficando entre esses fogos e se dilacerando entre dever e desejo, ordem e transgressão. Tentando matá-la, o tio brinca com sua sedução e realiza a sua vocação desesperadora de só poder amar através do crime. A luta final no trem, quando a sobrinha vence (apenas fisicamente) o seu demônio, é mais uma metáfora do coito frustrado que um duelo de vida e morte propriamente.



O criminoso: tortuosa poesia


Só a morte pode satisfazer esses amorosos trágicos — Norman Bates, Bruno, tio Charlie? O Mestre do Suspense parece ser dos poucos que vêem assassinos psicóticos e anormais em geral com a mesma visão algo compassiva de um Dostoievsky — decaídos que não podem ser julgados com tanto rigor, visto que seus juízes, pelo menos na lógica dos filmes, ao menos na intenção, situam-se no mesmo plano, e talvez sejam até mais desprezíveis, visto que não têm coragem de ir às últimas conseqüências de seu desejo e a sociedade legitima que frustrem os que querem fazê-lo — portanto, obedecem mais a uma pulsão sádica que a um imperativo moral. As pessoas "sãs" raramente são tão sãs quanto querem crer ou parecer nos filmes de Hitch. Dizem X, mas seu comportamento, suas pulsões, sugerem Y. E a arte do diretor é das mais eficazes e profundas na demonstração de que nossos desejos reinam supremos sob nossos discursos polidos, nossa hipócrita civilidade corroída por recalques, desesperos e sonhos proibidos.



Perdedor contínuo do Paraíso, o ser humano está situado num mundo de corrupção inata e só tem escolha entre a maldade e a hipocrisia. O criminoso se aproxima do ídolo, pois sua transgressão materializa fantasias e traz à tona nossos mais reprimidos desejos. Com tudo o que tem de apavorante, o tio Charlie é, no entanto, mais interessante que o policial com cara de futuro marido que a sobrinha tem como protetor. O verdadeiro amor, então, está mais próximo do perigo mortal do que da segurança sem poesia. Afinal, o criminoso é, à sua maneira, um poeta, e tem a oferecer o pão da fantasia, da emoção. O tio satânico não pode ocultar a que veio, o Mal tem a orgulhosa ingenuidade de revelar-se, o criminoso tem a paixão de confessar o crime, que o eleva aos próprios olhos, lhe propicia uma excitação ímpar (a confissão pode ser uma forma sublimada de exibicionismo) e a vaidade o leva à perdição.



Ao fim, no funeral do tio, o monstro assassino de viúvas é louvado como um benfeitor da comunidade. O benfeitor e o criminoso, nessa América dos anos 40 vista por Hitch, são, no fundo, a mesma coisa: estrelas de uma sociedade secretamente devotada ao crime e apaixonada não pela normalidade, mas pela exceção.



Através do crime algum afeto tortuoso, algum ressentimento compreensível, alguma poesia estranha e perturbadora, canhestramente se exprime. Para esses solitários nunca foi possível amar senão torturando, esfaqueando, estrangulando, para obrigar o mundo opaco e hostil a abrir-se numa receptividade tão necessária, tão vital, que não há outro meio senão o mais cego, o mais absurdo e inaceitável: o de comprá-la a sangue.





dezembro, 2007


(Publicado originalmente na revista germina de literatura & arte)




Chico Lopes é autor do romance "O estranho no corredor", debatido no clube de leitura em 3/5/2013