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22 de março de 2015

Aparição amorosa: Carlos Drummond de Andrade



Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.

Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.

Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto… o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.

Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.

Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?

O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.




18 de março de 2015

O enigma da esfinge: Jorge Carreira Maia


Francis Bacon - Sphinx



enigma da esfinge não reside na estranha questão que o monstro dirigia aos viandantes - que animal caminha com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à tarde e é mais fraco quando tem mais pernas? -, nem no facto de ele devorar quem não decifrasse o quebra-cabeças. Tão pouco reside na sagacidade de Édipo, o decifrador do mistério. O enigma da esfinge é o enigma do homem e centra-se na insuficiência do reconhecimento de si para saber quem se é.

A esfinge não é mais do que a projecção do homem. Quando Édipo chega a Tebas e é confrontado pelo monstro está a ser confrontado por si mesmo. A resposta que ela dá significa apenas que sim, que ele é um homem, que se reconheceu enquanto tal. A vitória de Édipo é muito semelhante àquela que, nas arenas de Espanha, os toureiros obtêm - quando a obtêm - sobre os touros. O toureiro ao matar o touro é a uma parte de si mesmo que mata. O touro é apenas a projecção dos instintos mais selvagens do homem que a arte deve dominar e vencer. Também a esfinge edipiana tem esse sentido, a projecção do mais tenebroso que há em cada um de nós. A sagacidade de Édipo, como a arte do toureiro, foi suficiente para o auto-reconhecimento. A resposta que Édipo dá à esfinge é a realização consumada do aforismo que estava inscrito no templo em Delfos: conhece-te a ti mesmo.

O desenrolar da tragédia de Édipo - o casamento com a mãe e a geração de filhos que são os seus próprios irmãos - torna evidente que essa sagacidade apolínea é insuficiente. Édipo sabe que é um homem, mas ainda não sabe de facto quem é. Ele compreendeu que se distingue da natureza selvagem, que pertence a uma outra ordem, na qual a natureza dá lugar à cultura e à vida civil. Cultura e civilização, porém, não são o fim último e nem sequer bastam para chegar à verdade de si mesmo. Édipo foi sagaz e ao mesmo tempo, apesar de ver, foi cego para a sua efectiva condição. Viu que pertencia ao campo da cultura e da vida cívica, não percebeu que, para além desse campo, se estende um vasto domínio que nem a mais apurada visão é suficiente para aperceber.

Só quando, no desenrolar da tragédia e na descoberta do involuntário incesto, Édipo se cega, é que começamos a compreender o enigma da esfinge. O reconhecimento de mim mesmo enquanto homem é ainda um falso e ilusório reconhecimento. Isso inscreve o self (o si mesmo) no domínio da cultura e da vida política e civil, mas fá-lo pela supressão de tudo o que rodeia a cultura, seja a tenebrosa natureza selvagem projectada na esfinge, seja o que poderíamos chamar sobrecultura ou sobrenatureza. O efectivo enigma da esfinge está na necessidade de oself se tornar cego para que possa ver, de precisar de se despojar do conteúdo que natureza e cultura põem dentro de si para se descobrir na sua verdadeira condição, na condição de pobre mendicante ao cimo da Terra. Esta condição é essencialmente diferente daquela que resulta da resposta dada à esfinge. Esta vem de um exercício sagaz da razão, mas a condição de indigente resulta de uma experiência real da condição humana.

O enigma da esfinge diz-nos então que só descobrimos aquilo que somos - o significado último de ser homem - não pela sagacidade racional, mas pela experiência directa da própria existência. Para saber o que é um homem não basta usar a razão, é preciso ir para além dela, para além da vida civilizada. O primeiro reconhecimento é, apesar de necessário, um exercício limitado e, se confinado a ele mesmo, ocioso. É preciso que o self se desconheça, que perca a crença em si mesmo, na sua existência e na sua condição. Só o desconhecimento abre caminho para a sabedoria e só aquele que superou a ignorância originária no reconhecimento e este no desconhecimento é não só sagaz mas verdadeiramente sábio.

15 de março de 2015

Personalidade: David Alfaro Siqueiros

Leituras relacionadas: 

  1. O homem que amava os cachorros: Leonardo Padura (grupo);
  2. Trótsky, exílio e assassinato de um revolucionário: Bertrand M. Patenaude (subgrupo);



Tropical América

David Alfaro Siqueira (Chihuaha29 de dezembro de 1896 - Cidade do México6 de janeiro de 1974) foi um dos maiores pintores mexicanos e um dos protagonistas do muralismo mexicano, juntamente com Rivera e Orozco.
Siqueiros fez pintura de cavalete, mas distinguiu-se principalmente pela pintura mural, onde foi um inovador em termos técnicos. Tinha uma grande preocupação em experimentar novos materiais e
novas técnicas, tendo a sua investigação nesta área sido uma importante contribuição para a pintura mural.
A grande temática da sua obra é a revolução mexicana e o povo mexicano, que ele representou como o protagonista da luta por uma sociedade melhor, a sociedade socialista utópica. A sua pintura é uma pintura de intervenção política, de crítica da sociedade capitalista e de defesa dos ideais comunistas, que em Siqueiros assumem uma dimensão monumental pela força e franqueza das suas convicções. Em 1966 foi-lhe atribuído o Prêmio Lênin da Paz.

Fonte: Wikipedia

Retrato da burguesia


2 de março de 2015

A Sabinada – A guerra pela separação da Bahia

Por Wagner Medeiros Junior


Representação dos conflitos entre os farrapos e as tropas imperiais.

Mal começou a desfraldar a bandeira alvianil que substituíra o pavilhão do Império no Forte de São Pedro, iniciou-se o êxodo de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, capital da província da Bahia. Primeiro foram as autoridades civis e militares leais à Coroa. Logo depois os moradores contrários à separação da Bahia do Império do Brasil. Cada um que emigrava levava tudo o que podia carregar, inclusive os estoques de víveres, aproveitando-se da inação do novo governo, que esperava a sublevação do interior para consolidar o movimento.
A força restauradora do Império, por sua vez, prontamente se organizava: Um governo provisório foi instalado em Cachoeira e a Guarda Nacional recrutada, com o apoio logístico e financeiro da aristocracia rural do Recôncavo. Assim, cada um dos levantes que iam surgindo fora da capital acabava por ser imediatamente sufocado, a começar pelo da Ilha de Itaparica, o que fez com que os separatistas ficassem imperativamente isolados. E para dificultar-lhes ainda mais a situação, a capital foi sitiada através de um bloqueio por terra e mar. 
A estratégia de sitiar a capital fora bem sucedida durante a expulsão dos holandeses de Salvador e na guerra de adesão da Bahia à Independência do Brasil, quando o exército português foi posto em retirada. Naquelas ocasiões os inimigos foram levados à exaustão pelo cansaço e pela fome.
No dia 30 de novembro de 1837 as forças separatistas fizeram a primeira incursão para tentar romper o bloqueio, com 800 homens em duas frentes de guerra, uma na Campina e a outra no Cabrito. Em ambos os lados, entretanto, os separatistas foram rechaçados pelas tropas leais ao Rio de Janeiro. Então, para reforçar o exército "libertador", os líderes da revolta deliberaram pela libertação dos escravos nascidos no Brasil, mediante a indenização dos proprietários. Formou-se, assim, um batalhão composto exclusivamente por negros, nominado batalhão dos “Libertos da Pátria”.
O revés da derrota dos separatistas se daria no início de dezembro, quando a Guarda Nacional é rechaçada na tentativa de desembarcar em Itapagipe. No dia 14 de janeiro de 1838, entretanto, os separatistas voltam a ser derrotados ao tentar desalojar a Guarda Nacional acampada em Itapoã. Logo depois da derrota começam a sentir os efeitos do cerco e da fome, razão pela qual resolvem investir ferozmente contra os comerciantes portugueses que permaneciam em Salvador, saqueando-os. 
Outro combate sangrento aconteceu entre os dias 17 e 18 de fevereiro. Pelos dados oficiais mais de 600 baixas dos separatistas foram contabilizadas, entre mortos e feridos, contra apenas 100 das forças restauradoras.
A batalha derradeira, todavia, aconteceu na noite de 12 de março. Segundo Argolo Ferrão, comandante da 2ª Brigada, o inimigo sofreu grande mortandade na tomada de suas primeiras posições, os campos estavam cheio de sangue, assim como as estradas de cadáveres. O fogo cessou à tarde do dia 15, quando os separatistas acuados no Forte São Pedro brandiram a bandeira branca.
À noite desse mesmo dia, como narra Paulo César de Souza, em seu livro “A Sabinada: A revolta separatista da Bahia”, incêndios clareavam vários pontos da cidade. O fogo consumia cerca de 70 sobrados, a maioria em Conceição da Praia – provocado pelos vencidos, em desespero e embriaguez, e pelos vencedores, para desentocar inimigos. Soldados rebeldes foram atirados às chamas... O colapso nas normas de conduta, tão comum nos tempos de guerra, manifestou-se em saques, estupros, assassínios. E a cidade de Salvador amanheceu destruída.
Somente na noite do dia 22 de março que Francisco Sabino foi encontrado. Segundo Gonçalves Martins, chefe da polícia, ele estava dentro de um armário “coberto de roupa suja, em camisa e descalço”. À noite desse mesmo dia o presidente da República aniquilada, João Carneiro, também é feito prisioneiro. Ao final seriam contados 2989 separatistas capturados. Os mortos somaram: 1258 entre os separatistas; 594 entre os restauradores - cifras expressivas para a população de Salvador na ápoca da Sabinada.
No dia 1º de abril a cidade de Salvador comemorou a vitória. Este feito também seria festejado no Rio de Janeiro e em outras localidades, pela manutenção da integridade do território nacional. No extremo sul do Brasil, entretanto, os farroupilhas continuavam a impingir ao Império pesadas derrotas. 

Visite o Blog:  Preto no Branco por Wagner Medeiros Junior

1 de março de 2015

Revivendo leituras passadas - Versos Satânicos: Salman Rushdie


Karime Amaral Hauaji


Nikah

Satã, confinado assim à instável condição de vagabundo, sem rumo, não possui morada certa; pois embora tenha, como conseqüência de sua natureza angélica, uma espécie de império na vastidão líquida ou no ar, decerto faz parte de seu castigo não ter [...] um lugar em que possa pousar a sola do pé.

Daniel Defoe, The History of the Devil



A História nos pergunta: que tipo de causa somos nós? Somos intransigentes, absolutos, fortes, ou vamos nos revelar oportunistas, que transigem, se acomodam, cedem?