A data do próximo encontro se aproxima, então vou deixar aqui algumas palavras sobre essa obra que é uma das melhores de um dos maiores escritores que o mundo já conheceu. Peço desculpas pelos parcos comentários sobre o livro, há bem mais o que dizer sobre ele do que o que direi agora, mas muito do que se pode dizer, já foi ou ainda será dito pelos membros do nosso clube e alguns críticos. Mas, depois de tantos “quês” e “ditos”, toda contribuição é válida quando se pretende valorizar um bom livro e conversar sobre ele. Então, vamos ao que interesse.
Angústia é um nome perfeito para o romance de Graciliano Ramos, tanto pela forma como vive e sente o mundo o protagonista, como por nós leitores que nos vemos angustiados, senão durante todo o livro, pelo menos durante grande parte dele, graças à narrativa de Luís Pereira da Silva e suas queixas e considerações sobre o mundo e as pessoas que o rodeiam e rodearam, condicionada na forma e estilo da poética de Graciliano Ramos.
Num fluxo de consciência e monólogo interior, o texto é contado a partir do fim, de cerca de trinta dias depois de Luís da Silva ter acordado dos delírios de febre que lhe acometeram após o dia em que assassinou Julião Tavares. Desde esse momento, através de um flashback, passamos a conhecer o passado do protagonista, sua vida na fazenda com seu pai, seu avô, mãe, caboclos, cangaceiros e pistoleiros que rendiam respeito ao seu avô, além de sua história recente com Marina e seus amigos, e, em pequenas digressões, determinados casos que viveu na sua terrível passagem pelo Rio de Janeiro, dentre outras lembranças periféricas.
O flashback a que me referi acima é, na verdade, uma soma de flashbacks coordenados, por assim dizer, em três grupos de memória, ou como nomina Silviano Santiago, três processos, sendo dois de rememoração e o último, um processo interno. Chamo de três grupos por entender que o terceiro também é memória. São eles: a lembrança do passado distante de Luís — sua vida no campo quando criança —, a lembrança mais recente — aquela de seu momento atual, referindo-se a sua vida pouco antes de conhecer Marina, por quem se apaixona, até o enforcamento de Julião —, e a derradeira, a qual se refere Silviano Santiago como processo interno, que "produz uma quantidade apreciável de casulos de redundância no tecido narrativo” (SANTIAGO, 2011, p. 344, grifos do autor). Santiago se refere às repetições que ocorrem durante o texto, com a aparição e sumiço repentino de certos elementos e passagens, o que para alguns críticos foi entendido como um defeito de pleonasmo, mas que na verdade é parte da forma e do estilo adotado para o livro que muito contribui para nos dar a sensação de ansiedade, bagunça mental e angústia por que passa o protagonista.
Todas essas lembranças, esse passado, pareciam fazer de Luís da Silva inferior, ou pelo menos sentir-se inferior, só — profundamente só —, e desiludido com a vida. Deduções a que podemos chegar através das declarações de Luís, sempre assombradas e feridas, e que, por sinal, vêm sobrepostas, entrelaçadas, com idas e vindas de uma história a outra, do passado ao presente, numa forma anacrônica; declarações que surgem atropelando-se e substituindo-se sem aviso de mudança temporal. As lembranças de ocorrências antigas invadem relatos de coisas recentes como para justificar ou complementar o sentido do que se diz agora; ou invadem simplesmente porque o pensamento de Luís é vago, desconexo, demonstrando pouca saúde mental — talvez devido a resquícios da febre pela qual passou, ou ainda, e mais provável, demonstra-se pouco saudável pela soma de acontecimentos que permearam sua vida, antiga e recente.
A soma desses passados, revividos na sua lembrança, incomoda Luís da Silva, funciona como combustível e fermento que se unem aos tormentos últimos e inflama a ferida já há muito aberta e recentemente agravada com a presença de figuras detestáveis aos seus olhos como o rico Julião Tavares, esnobe, metido a culto e literato, enganador de meninas pobres, mau-caráter e que, como se não bastasse, seduziu e lhe tomou a noiva. Além deste, o incomodam os vizinhos fofoqueiros, o trabalho e a sua desventurosa paixão por Marina, menina linda, sedutora, invejosa da riqueza, da suposta boa vida e bem-aventurança alheia, bem como sedenta por luxo e esbanjamento, apesar de ser filha de pais pobres e malfadados, atributos de Marina que a tornam nada confiável. Enfim, tudo engrossa o caldeirão de situações, piorando o estado de ânimo de Luís, que ainda perdeu com seu noivado todas as economias acumuladas sofregamente.
Talvez por Luís ter passado dias perdido em devaneios de febre, após o crime cometido, ele nos conta sua história como se turvado por sombras, como sonhos que ele mesmo parece não ter certeza se realmente aconteceram, ou se aconteceram como ele se lembra, segundo o próprio Luís da Silva deixa transparecer ainda no início do relato: “Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios” (RAMOS, 2011, p. 21).
As noites compridas a que se refere são as que começaram logo após cometer o crime, quando volta para casa e parece entrar numa espécie de transe, alvejado por lembranças confusas e disformes, surrealistas como os quadros de Salvador Dalí.
Febril, histórias se sobrepõem, imagens alucinadas invadem seus olhos suspendendo-o num mundo fantástico e terrível, possivelmente vitimado pela culpa do crime, à semelhança do célebre estudante de direito, Rodion Românovitch Raskólnikov, de Dostoiévski, em Crime e castigo (1866), quando esse comete o assassinato e sofre por ter que viver com a culpa e toda a carga moral e psicológica do ato, quase enlouquecendo, expondo ao leitor todas as cores do sofrimento que acarreta o sentimento de culpa sobre um homem.
E é também dessa forma que se alucina e sofre Luís da Silva, homem simples de origem, marcado em sua simplicidade no próprio sobrenome, comum, vulgar entre as famílias brasileiras, “um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer” (p. 35), como ele mesmo se define; porém consciente do mundo em que vive e dos seus atos. Como Raskólnikov no livro do russo. Semelhança que não pode nos causar estranhamento.
Entre Graciliano Ramos e os russos, sobretudo Dostoiévski, alguns pontos convergem: o estilo seco, duro, de traços naturalistas, sem pedantismo de linguagem ou mesmo maneirismo com o fim de suscitar esperanças românticas, e um forte apelo psicológico como, especificamente, ocorre em Angústia, à semelhança dos romances do autor de
Crime e Castigo (1866),
O idiota (1869) e
Irmãos Karamázov (1881) — parte da obra que foi objeto dos primeiros estudos de Freud sobre a psicologia humana, segundo este revelou, tamanha é a carga humana e psicológica dos personagens do russo. Assim, se Freud é o pai da psicanálise, Dostoiévski seria uma espécie de avô?
Mas nos atendo ao romance do Velho Graça, através dessa enxurrada psicológica que quase transborda pelos quatro cantos do texto, toda a vida de Luís parece ter sido uma maçada, um incômodo. Oprimido pela realidade social e por si mesmo, via o mundo distante como se não vivesse realmente nele por inteiro. Havia sempre entre ele e os outros uma distância, um fosso de desconfiança e ódio. Não se entregava, não confiava em ninguém, não era parte de nada verdadeiramente. Até mesmo sua paixão por Marina era desconfiada e se assemelhava à posse e paixão sexual, e não a amor.
Ouvindo os relatos de Luís — digo ouvindo e não lendo porque, dada a qualidade deles, na sua força expressiva, podemos ter a impressão de que ele está a nossa frente nos narrando tudo, como num depoimento policial —, mas enfim, ouvindo Luís percebemos vários traços de sua personalidade, como certo ar de demência ranzinza: um homem distante, frio muitas vezes, e com atitudes sovinas que iam além da necessidade de seu estado de pobreza, e das exigências descabidas de Marina, como quando, conversando com esta e sua mãe, d. Adélia, sobre o casamento, considera razoável dispensar até mesmo o véu da noiva, normalmente um sacrilégio para esta:
— Estávamos combinando, Marina. Quanto mais depressa melhor, foi o que eu disse a d. Adélia. Gente pobre não tem luxo.
— É preciso fazer as coisas com decência, opinou Marina.
— Claro. Mas com modéstia. Não é, d. Adélia? Dispensa-se o véu. Para quê véu? Eu por mim casava hoje (2011, p. 81-82, grifo nosso).
Além disso, essa pressa para casar, “Quanto mais depressa melhor” e “Eu por mim casava hoje” mostram o medo da perda, a necessidade de se ver logo tudo decidido, irremediável, definido entre ele e a noiva, buscando com isso evitar um novo malogro na sua vida, uma nova decepção e tristeza; o que não consegue evitar, como sabemos.
Contudo, outros traços de sua personalidade nos surgem, como seu complexo de inferioridade; mas um complexo, por assim dizer, que não o reduz a zero, o diminui, mas o colocando dentro da sociedade, com certo valor, porém um valor baixo, o que indica que sofre, no entanto, não está de todo ausente de esperança ou algum amor próprio. Diz ele: “Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim, valor” (p. 50).
Possivelmente se considerava miúdo porque, vindo do mato para a cidade grande, primeiro sofre no Rio de Janeiro, passa fome, depois em Maceió, vive essa vida subjugada pelos boçais como Julião Tavares e pelos trabalhos que realiza para sobreviver — funcionário público e redator de textos políticos tendenciosos em troca de dinheiro, uma espécie de ghost writer. Enfim, um homem que se encolhe, como faz no café: “A mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. [...] passo ali uma hora, encolhido junto à porta, distraindo-me” (2011, p. 35), e completa na página seguinte: “Uma criaturinha insignificante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem” (2011, p. 37).
Como uma das consequências, tudo isso o deixa mais distante do mundo. E essa distância é mais sentida quando nos deparamos com seu relato sobre a morte e o velório do pai, quando Luís tenta chorar, mas não consegue; o pai é outro, distante dele, não lhe comove realmente, portanto, ele nada sente. Sua distância é marcada pela ausência de sentimentos, de lágrimas pelo pai; na verdade, todo aquele clima incomoda-lhe:
Penso na morte do meu pai. [...] Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. [...] Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia (2011, p. 31).
E quando chorou, não foi pelo pai: “Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos” (2011, p. 33). Rosenda havia acordado Luís com um café no dia do enterro.
Já sua desilusão com a vida era fruto de uma forma de determinismo:
Estudava-me ao espelho, via, por entre as linhas dos anúncios, os beiços franzidos, os dentes acavalados, os olhos sem brilho, a testa enrugada. Procurava os vestígios das duas raças infelizes. Foram elas que me tornaram a vida amarga e me fizeram rolar por este mundo, faminto, esmolambado e cheio de sonhos (2011, p. 164).
Referia-se, quando falava das duas raças, ao avô negro chicoteado pelo feitor há 200 anos e ao avô caboclo, emboscado pelos brancos. Mas ainda sobre o determinismo, Jean-Paul Sartre dizia que, “[...] qualquer que seja o nosso ser, é escolha; e depende de nós escolhermos como ‘ilustres’ e ‘nobres’, ou ‘inferiores’ e ‘humilhados’” (SARTRE, 2001, p. 581). Ao contrário disso, o protagonista de Graciliano Ramos se vê escolhido.
Assim vive Luís da Silva, tomado pelo passado e pela fúria com o presente opressor. Sua angústia é a de Kierkegaard, que alega que a angústia surge da impossibilidade de realização de algo. Há a possibilidade, mas esta não se transforma em algo real, não se executa, daí a angústia pelo nada, pois essa realidade existe apenas como possibilidade e não como realidade, feito o que acontece com Luís da Silva que quer um mundo novo, diferente da dor em que vive, mas isso não acontece, e esse não acontecer o angustia. A falta de uma família feliz, de um amor verdadeiro, de amigos verdadeiros, tudo se mostra como a irrealização da possibilidade, ficando apenas na realidade do seu espírito. Nas palavras de Kierkegaard:
[...] A realidade do espírito mostra-se continuamente como uma forma que atrai sua possibilidade, todavia ela desaparece, tão logo que essa a agarra; é um nada, que nada pode, a não ser, angustiar. Mais ela não pode, enquanto ela meramente se mostra (KIERKEGAARD, 1952, p. 39).
Essa é a realidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade, ou seja, o indivíduo tem na angústia uma forma de liberdade, porém, cativa, liberdade que só existe na possibilidade, que vive na angústia, e a angústia é a liberdade presa ali:
[...] a possibilidade da liberdade não é poder escolher entre o bem e o mal. [...] A possibilidade é o poder. Num sistema lógico é bem cômodo dizer que a possibilidade transforma-se na realidade. Na realidade, isso não é assim tão fácil e precisa-se de uma determinação intermediária. Essa determinação intermediária é a angústia, que tampouco explica o salto qualitativo como o justifica eticamente. A angústia não é nenhuma determinação da necessidade, mas também nenhuma da liberdade, ela é uma liberdade cativa, onde a liberdade em si mesma não é livre, mas sim cativa, não na necessidade, mas sim em si mesma (KIERKEGAARD, 1952, p. 47-48).
Aqui Luís da Silva aproxima-se ainda mais de Kierkegaard, essa angústia provoca uma ação, um salto para um novo estágio; estágio que, em Luís da Silva o leva ao assassinato, como uma busca pela liberdade de tudo o que o aflige. E na tentativa de realizar essa liberdade que, como eu disse, está apenas na possibilidade, presa na angústia, ele percebe que, após a morte, a liberdade seria impossível; daí vem a culpa, das consequências da ação que a angústia o levou a cometer.
A angústia para Kierkegaard permite que o homem descubra a diferença entre o bem e o mal; contudo, esse conhecimento também o angustia, pois percebe que não pode ser livre porque vive numa realidade de pecado. Dessa forma, a angústia é inerente ao homem, ela nos proporciona saltos, evoluções, faz-nos procurar ir adiante, e nos acompanha a vida inteira.
Outro ponto onde a angústia de Kierkegaard encontra a do protagonista de Graciliano Ramos é quando o filósofo afirma que não é possível angustiar-se do passado. E aí vocês me perguntam: mas no livro do Velho Graça não é também o passado que angustia o anti-herói? Sim, é. Por isso Kierkegaard diz que não é possível angustiar-se do passado, a não ser que haja uma relação de futuro com o indivíduo, ou seja, o que ocorreu no passado tem, no sentimento de culpa por ele, ou simplesmente na crença do indivíduo, a possibilidade de se repetir:
O passado, do qual eu devo me angustiar, precisa estar numa relação de possibilidade comigo. Se me angustio de uma desgraça passada, então, neste caso, não é que ela é passada, mas sim que ela pode, neste caso, se repetir, i. é, tornar-se futura. [...] Se ela é mesmo [realmente] passada, então não posso me angustiar, mas somente me arrepender. Se eu não o faço, então eu me permiti antes fazer minha relação com ela dialética, mas com isso, a infração se tornou ela mesma uma possibilidade e não algo passado. Se me angustio diante do castigo, então este é posto somente, tão logo, numa relação dialética com a infração (caso contrário, carrego meu castigo) e, então, eu me angustio diante da possibilidade e diante do futuro (KIERKEGAARD, 1952, p. 93).
E assim é Luís da Silva, constantemente relembrando o passado, a solidão, a tristeza, os dias de miséria, a falta de amor familiar e sua inadaptação ao mundo, fatos que ele teme se repetirem indefinidamente no futuro. O medo desse futuro ser um eterno moto-contínuo, a se repetir como um feitiço do tempo, quando os dias renascem iguais e a vítima desses dias revive tudo outra vez do mesmo jeito, provoca sua angústia. Daí, nesse sentido, o passado angustia e Luís da Silva encontra Kierkegaard.
Mas a angústia desse Silva também é a de Heidegger,
A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. [...]. O mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública (1986, §40, p.254).
A angústia do anti-herói de Graciliano Ramos é fruto do embate com a realidade, da sua presença nela, da sua existência em um mundo que não pode oferecer-lhe nada, ou pelo menos o que ele almeja. O ser-no-mundo de Heidegger, em Luís da Silva é a falta de compreensão com o outro, do seu papel, ou o que julgaria merecer, é a incompreensão da injustiça que julga sofrer. Angustia-se por não se realizar como ser-aí, que não vai a lugar nenhum.
Mas deixando a filosofia de lado e nos dirigido ao texto como estrutura, como construção. Para alcançar todo esse campo magnético de sombra e angústia, Graciliano Ramos não fez uso apenas de conhecimentos filosóficos, ou mesmo de suas próprias concepções do terror humano; uma boa dose de preocupação estilística foi usada em metáforas, em termos pesados, em declarações sufocantes, repetições que soam como redundâncias para alguns, mas que na verdade são formas de alcançar uma expressão que dê ao texto e, sobretudo à figura do anti-herói, a densidade necessária para ele ser quem é e para dar aos leitores a verossimilhança exigida que nos fará acreditar na história e no estado de ânimo de Luís, assim como no mundo existente no livro.
Alguns exemplos deixam clara essa intenção de intensificar o sentido do texto, como quando Luís da Silva está num bonde e este segue cruzando a cidade. Observando o tempo lá fora ele vê “os focos de iluminação pública, espaçados. Cochilando, piongos, tão piongos como luzes de cemitério” (2011, p. 26). Observação que dá vida a esses postes, na sua visão interior; vida bastante para cochilarem melancólicos (piongos), de uma tristeza tão profunda que se assemelham a “luzes de cemitério” — expressão que, assim como “cochilando” e “piongos”, remetem-nos à tristeza, a pesar; sensações presentes no ânimo de Luís, e imagens difíceis de serem lidas sem nos submeter à densidade do estado de espírito do personagem e do mundo segundo seus olhos.
Densidade que também recai sobre a chuva que envolvia Luís nos seus dias de inverno na serra: “Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de
água em pó” (2011, p. 28, grifo meu). A cena traz solidão e desolação, vendo a rua sumir no véu da chuva, chuva que Luís descreve como “lençol branco de água em pó”. A densidade está na água que se assemelha a pó, embota a visão, turva, encobre e pesa. A água é quase sólida, é pó, e representa a vida de Luís, assombrada, sem limpidez. Por isso, seus olhos tristes já sofrem tendenciosos quanto a tudo o que presencia. Cada visão é distorcida para a sua dor da existência. No seu modo de ver, nada é claro e puro, nem mesmo a água que cai do céu.
Em outro momento, Luís da Silva nos descreve sua visão sobre si mesmo; um ponto de vista depreciativo e bastante significativo para que entendamos como ele mesmo se via e como queria que nós o víssemos, numa espécie de tentativa de nos causar empatia reversa, ou contraditória, como se buscasse nos impingir repulsa pelo seu estado miserável e pelo estado do mundo que o cerca, mas também nos causar pena, dó e sentimento de afeição e piedade pelo que ele tem se tornado. Seu mundo e sua vida claustrofóbica pela empatia, desejada ou imposta, causa-nos também claustrofobia. Acompanhamos sua história sempre com a sensação de que as paredes se fecham sobre nós, e a imagem de Luís pode nos dar pena ou repulsa. Enfim, diz ele sobre si: “Não sou o que era naquele tempo [da infância]. Falta-me tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou” (2011, p. 34, grifo meu). A cidade não o salvou do passado, ela potencializou seu estado de miséria.
Usei essas passagens, todas ainda do começo do texto, para mostrar que o narrador/personagem nos quer fazer entender sua condição desde o início do seu relato. Seu flashback vai gradualmente, e por intermédio de imagens fortes e histórias tensas de solidão e angústia, apresentando-nos seu mundo e o que construiu, o que pavimentou o caminho até este desembocar no assassinato.
Em suma, a vida de Luís da Silva é miserável como tudo o que ele descreve. O mundo parece acabar-se aos poucos, perder o sentido — se é que já teve um algum dia —, a depravação domina o mundo e a natureza de todos — menos a dele que, apesar de se esfregar com Marina no quintal, não se identifica como um depravado também, apenas como um infortunado miserável vítima das circunstâncias de sua vida passada e presente. Enquanto isso, a sombra que lhe embaçou os delírios na febre é a sombra que lhe embaçou toda a vida, mantendo-o sempre longe e distante da vida pulsante, deixando-lhe na eterna modorra, quebrada apenas pela agitação mental do romance com Marina e pelo crime que vem a cometer, em parte por ela, mas ainda mais por vingança contra toda a miséria que o subjugou, contra todos os folgados e inúteis Julião Tavares que lhe cruzaram o caminho, tomando seu lugar, empurrando-o para a mesa do canto do café.
BIBLIOGRAFIA
KIERKEGAARD, Søren A. Der Begriff Angst, Vorworte. Düsseldorf: Eugen Diederichs Verlag, 1952. [Trad. Iuri Andréas Reblin. In: Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 16, mai.-ago. de 2008]
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti Schuback. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011. Edição comemorativa.
SANTIAGO. Silviano. “Posfácio”. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011. Edição comemorativa.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.