Carlos Rosa Moreira |
Ângela terminou comigo. Me arrasou.
Caminho sem eira nem beira por essa calçada escura, circundando a praça cujas
grades me parecem lúgubres e ameaçadoras, claro aviso de perigo. Cá estou ao
léu, sujeito aos perigos que a grade mostra que a cidade tem. Pelo menos assim
me parece. Deve ser porque estou perdido, uma alma perdida.
Eu morava com Ângela. Ela gostou de
mim e me cedeu um espaço de seu pequeno apartamento no centro. Sou do interior,
pouco sabia do Rio, mas conheci Ângela na faculdade e acabamos juntos. Ângela
gostou de mim, mas não precisa de mim, é independente e forte. Tudo corria tão
bem... Ela soube que eu havia comido a Margarete. Alguém de olhar enviesado
contou a ela. Foi uma discussão sem tamanho. No fim, descabelada de tanto
falar, ela me mandou sair. Em plena noite do Rio. Um rapaz do interior, com o
coração prestes a explodir, sem dinheiro, andando pelo centro do Rio... Acho
até que foi má, poderia ter esperado o dia seguinte.
Vou andando sem direção ao longo
dessas grades que parecem não ter fim. Numa pequena praça ao lado, um mendigo
enraba outro. O enrabado está de quatro, com a cabeça apoiada num monumento; os
movimentos do seu colega empurram seu corpo para frente e, de vez em quando,
ele passa a mão na testa que bate contra o monumento. O que está enrabando faz
movimentos ligeiros. Olhando de longe, parece uma trepada de macacos que vi num
filme sobre a natureza. O comedor movimenta-se rápido, vira a cabeça de um lado
para outro e continua frenético na enrabação. Eu vou andando. Há um cheiro ruim
no ar, odores de fezes e de urina. Atravesso a rua. Passam alguns carros, a
maioria táxis e um ou outro ônibus. Existem poucas pessoas na noite. Alguns
retardatários retornam para casa após o trabalho, são pessoas diurnas, comuns,
que passam atentas e apressadas; os seres noturnos são identificados porque perambulam
feito predadores, vão mas voltam, esperam... Me preocupo com a mochila velha com minhas coisas, são meus únicos
bens. Ângela não precisava ter feito isso, eu não sou daqui, não conheço nada
direito... Toco em
frente. Próximo à Glória, um grupo de travestis alegra a
calçada. Tem um alto, muito branco, cabeleira negra, pernudo, bocão pintado,
parece-se com uma atriz da televisão. Veste um capotão escuro que abre para
cada carro que passa, exibindo a calcinha minúscula e os seios duros. Mais
adiante, um carro bacana está parado junto ao meio-fio. Um homem de cabelos
pintados está em pé ao lado da janela do motorista. Tem o pau para fora, um pau
enorme que brota da bermuda arrochada e adentra a janela do motorista. Eles
conversam e o motorista sorri e alisa o pau. Numa esquina, a viatura policial
me dá alívio. Há algo de sossegador no ar, dado pela presença da polícia e pela
luz de um carrinho de cachorro-quente. Lá atrás o sinal abriu; carros passam no
rumo sul. Eu também vou indo, adentrando a noite, seguindo no escuro. Adiante
parece haver somente a noite. Deixo para trás o que penso ser a última vida: um
travesti muito louro, encarapitado sobre uma lata de lixo. Usa um biquíni de
lantejoulas azuis e faz meneios, caras e bocas sobre a lata de lixo. Aquilo me
encheu de tristeza. Pobre dama da noite, pobre Marylin. Devia ter mexido com
ela, devia tê-la chamado de Marylin. A tristeza do que é Marylin soma-se à
minha, e a minha são duas: a de ter perdido Ângela e a de ser um coitado na
noite do Rio. Penso no interior, no cheiro noturno que desce das matas para a
cidade, um cheiro fresco de orvalho. Nessa noite do Rio, o cheiro é de poeira
preta de asfalto misturada às fezes de gente e de bicho. Não há ninguém onde
estou. Atravesso uma praça áspera, sem árvores, iluminada. Não sei se tenho
mais medo da luz ou do escuro. A luz mostra a solidão em que me encontro; no
escuro, pelo menos, há alguma expectativa, nem que seja de encontrar a luz! Vou
andando e passo em frente ao hotel onde comi Margarete. Penso naquele momento,
no corpo bonito de Margarete, nos seus gemidos. De repente, o rosto de Ângela
aparece. Ângela é magrinha, nervosinha, mas é dela que eu gosto. Dá vontade de
chorar quando penso que pode arrumar outro.
Tem uma mendiga em pé dentro de um
jardinzinho na calçada. Está fazendo cocô sem ter tirado a saia molambenta. O
cocô desce meio mole pelas pernas ou cai em pelotas sobre a grama do
jardinzinho. Fiquei com um nojo danado. Pobre mendiga. Pobre mulher. Na minha
opinião deveria ser lei: “Não negarás ao semelhante a possibilidade de conhecer
as coisas mais finas e bonitas; todo ser humano terá direito de viver a vida
com as lindezas que a vida tem; a toda pessoa será oferecida a oportunidade de
livrar-se do embrutecimento, pois a vida é só agora, quem não viveu, não tem
mais”.
Tadinha... Podia estar limpinha, vaidosa, com as unhas pintadas, cheia de sonhos e desejos, mas tá aí, fazendo cocô... Será que algum dia ela fez cocô numa privada, dentro de um banheiro bonito como aquele do hotel onde comi Margarete? Tomara que tenha feito, meu Deus, tomara! Sou um simplório, estou muito sensível e me vem lágrimas por causa daquele ser humano, aquela irmã transformadaem zumbi. Será que nunca
a vi? O que faz a perda de um amor...
Tadinha... Podia estar limpinha, vaidosa, com as unhas pintadas, cheia de sonhos e desejos, mas tá aí, fazendo cocô... Será que algum dia ela fez cocô numa privada, dentro de um banheiro bonito como aquele do hotel onde comi Margarete? Tomara que tenha feito, meu Deus, tomara! Sou um simplório, estou muito sensível e me vem lágrimas por causa daquele ser humano, aquela irmã transformada
Atinjo luzes e me sinto bem com o
movimento da rua. Vou olhando, pois é bom ver se há algum canto para dormir;
uma marquise, um banco de praça... Lá na frente é o Catete. Catete de Rubem
Braga. Eu não conheço nada aqui, só sei do Rubem Braga e do que ele escreveu
sobre o Catete. Paro numa esquina, estou perdido, quero Ângela. Me dá um
desespero danado imaginar que estou aqui no Catete! A polícia prende um
moleque. É um pretinho miúdo e magrelo. O policial dá-lhe uns safanões e planta
a mão que estala no coquinho crespo. O moleque sai aos trambolhões e cai aos
pés de uma pilastra. Há uma debandada nervosa de pequenos seres escuros, magros
e ligeiros, que se acalmam quando se põem a segura distância. O camburão parte,
atingindo a noite com a sirene perturbadora. Meninos e meninas voltam a se
agrupar como se fossem um cardume após a partida do predador. Começo a ter um
pensamento positivo; começo a pensar em Margarete. Foi bom
comer Margarete. Ela mora em Copacabana, e eu aqui, durango kid no Largo do
Machado. Vou para Copacabana. Margarete só tem celular e não me lembro do
número. O jeito é ir andando, ver o que pode dar. E vou andando, varando ruas,
túneis, me borrando na noite do Rio de Janeiro.
Uma vez, vi um filme sobre o fundo
do mar à noite. Todo mundo devora todo mundo. Muitas criaturinhas lindas,
coloridas, aparentemente pacíficas, são predadores vorazes que, por sua vez,
tornam-se presas de outros predadores. O Rio à noite parece com o fundo do mar
que vi no filme. Se essa comparação é certa, eu deveria estar num grupo como os
peixes num cardume. É assim que os fracos se protegem, escorando-se uns aos
outros e cada um rezando para não ser o primeiro. Ainda bem que eu penso. E
tenho em que pensar e o que comparar.
Acabei de chegar a Copacabana. O
edifício de Margarete é bem no começo. Tomara que ela queira, tomara que pinte.
Vai ser bom demais... Tomara, tomara...
Toco o interfone. O coração soca meu
peito.
‒ Er... Oi, sou eu, desculpe chegar
assim... Quis telefonar, mas não deu, estava passando... Sei que posso ter
chegado em má hora...
‒ Sobe.
‒ Posso?
‒ Vem.