Fundado em 28 de Setembro de 1998

15 de junho de 2021

Amarração: Edmar Monteiro Filho

 


Bateu palmas. Insistiu na demora. A mulher apareceu no corredor lateral da casa, enxugando as mãos no avental. Era consulta? Que entrasse, então. O moço não tivesse medo, que o vira-lata era manso. Nos fundos. Chão batido. Varal empinado com bambu, lotado de roupa branca. O tanque cheio. Fogão, geladeira azul, a pia, despensa, tudo no terraço de piso vermelhão. Entraram no cômodo atulhado, cortina de fita separando outro, decerto quarto. Ali, de tudo. A mesa desocupada sem cuidado. Não reparasse a bagunça, quem tem criança em casa. Que fosse avó, que era velha para ter criança sua. Ou então judiada. Ela tirou o avental. Ele que se acomodasse que ela ia vestir a saia. Voltou de pronto, em branco. Sentou-se. Perguntou há quanto tempo ele roía unha. Ele perguntou como a dona sabia. Era só olhar, ela disse. Ele levou a mão à boca, para acertar um cantinho. Ela quis saber quem tinha dado indicação. Uma colega da empresa, ele era vendedor. Ela dispôs as figurinhas de santo – seis – no canto da mesa. O baralho diante dela, o copo com água ao centro, com a pirâmide de acrílico. O terço ficou na mão, enrolado. Ele derramou a fala ensaiada, com a sinceridade de aflito. Ela ouviu, perguntou o que ele fazia, onde morava, se tinha carro. Era alugada, a casa? As mãos finas de vendedor apertadas na aspereza. Reza incompreensível. O baralho mexido com habilidade. Ele cortasse. Uma carta virada: o bobo. Mandou que ele apertasse a pirâmide na mão direita. Rezou um pai-nosso, uma ave-maria. Chorou um pouco. Ele era inocente, havia confiado demais em quem não devia. Verdade. Era passivo, não tomava atitude. Às vezes. Preferível arranjasse outro amor. Mas queria aquele mesmo? Era nervoso demais, sofria com culpa. Verdade. Sentia fraqueza. Nem uma fraqueza assim, por dentro, quando tinha que decidir? Isso sim. Diagnosticou: trabalho feito, poderoso, para causar dor e atrasar a vida. Quem? Ele voltasse dali dois dias para desfazer, dar jeito em tudo. Trazia o amor de volta, escrava. Não queria dinheiro, que consertar maldade assim e cobrar, Deus castigava. Ele trouxesse documento de tudo de seu, para fazer reza e proteção. Ele seguiu aflito, o sofrimento de espantar o sono não deu trégua. Voltou no dia marcado. A mulher chamou para dentro. Sentaram-se. Dessa vez, a mesa com toalha plástica branca, crucifixo, copo d’água, um santo só, buquê de ervas. Rezar outra vez. Concentração, ela pediu. Primeiro no amor, depois no patrão, um vizinho com alguma desavença, parente próximo. A mulher estremecendo toda, virando os olhos. Pediu os documentos: o carro, a casa. Mais algum bem que quisesse proteger? Tinha uma folha de cheque? Deixasse tudo lá. Confiava? Voltou em dois dias, ansioso. Bateu palmas até arderem as mãos. Abriu o portão, veio entrando. Apareceu um velho na porta: tomasse cuidado com o vira-lata, malvado feito um demônio.


Texto integrante do livro "Clube de Leitura Icaraí - Modo de Fazer"


12 de junho de 2021

Todos os Nomes: José Saramago




"Acho que, depois de 50 anos, o tecto, muito sério, lhe perguntou: "E agora, José, para onde?""

Não me lembro da resposta do Sr. José em “Todos os Nomes” além  do fato de ele achar muita petulância um tecto lhe ficar questionando as acções ou mesmo demonstrando solidariedade diante de suas hesitações. Isso porque não abordarei o Sr. José personagem da obra, mas o Sr. José que nasceu em mim a partir da leitura da obra, motivada pelo que postou uma Leitora, de que acha “notável quem entra com o personagem na obra e vive (a revelia do autor) os momentos como lhe convém; opina, discorda, sugere.”

A você, estimado visitante do nosso blog do clube de leitura, peço desculpas por não saber por que procedo dessa maneira absurda; “é por demais sabido que o espírito humano, muitas vezes, toma decisões cujas causas mostra não conhecer, sendo de supor que o faz depois de ter percorrido os caminhos da mente com tal velocidade que depois não é capaz de os reconhecer e muito menos reencontrar”. Assim, tais absurdos podem acontecer conosco, de forma semelhante ao horror das possíbilidades de ocorrências que Saramago revela em Todos os Nomes. 

Saramago enfim criou um personagem cujo nome ele conhece, não lhe tendo sido outorgado por um outro, desconhecido, mas pelo próprio criador, por si mesmo, se faz algum sentido dizer algo parecido. No romance em que a primeira advertência que nos direciona é de que conhecemos o nome que nos deram, mas não conhecemos o nosso nome verdadeiro, o autor finalmente decide dar nome a um protagonista de um livro seu e o chama Sr. José. Esse deve ser, então, seu verdadeiro nome, não o que lhe foi dado por terceiros. Ele deve se aproximar da pessoa ficcional a que seu nome corresponde, esse é o desafio feito ao leitor pelo autor que costuma deixar seus personagens anônimos em seus livros. Os demais nomes, se houvesse, poderiam ser misturados à vontade que não faria diferença, como faz o velho que o Sr. José encontra no Cemitério Geral, que mistura o nome dos finados para que esses ganhassem orações gratuitas de desconhecidos, ou o diretor de Todos os Nomes que suprime os muros que separam os vivos dos mortos, ou o Conservador que mistura todos os nomes no Registo Geral. 



Houve quem comentasse no Clube de Leitura que o Sr. José teria ganho um nome por ser o único personagem que conseguiu despertar sua própria alma num mundo em que tantos vivem sem jamais despertarem a sua. Ou ao contrário, que o Sr. José seja mesmo um maluco de pedra que ainda assim procuramos uma razão para admirar seduzidos pela alma do autor, que lhe instila lógica e propósito. Disseram …  “o Sr. José então despertou uma fantasia, pra poder manter a alma adormecida (cada um se defende como pode ...).” Ainda bem que ele era sensato o suficiente para não dispensar o fio de Ariadne que sempre o traria de volta à realidade não obstante suas fantasias.


Bem, fugindo um pouco do conteúdo e abordando a forma, transcrevo o comentário de uma Leitora sobre a capa de Todos os Nome: “é um trabalho geométrico - são tramas e relevos onde Arthur Luiz Piza (o artista que fêz a obra) arruma e desarruma suas colagens, desenhos ou gravuras... é um pequeno formato, que aproxima o espectador que quer visualizar melhor a obra” … e que a faz  “acompanhar o autor nos momentos de euforia, de alegria, de cansaço, rebeldia, submissão ou letargia, assim é...” Todos os Nomes.


 

11 de junho de 2021

Nota nº 4 – Cronos e os dias: Everardo

Fui advertido pelo amigo-poeta do que já sabia, do que sempre soube, do que todo mundo sabe, mas não digo, ninguém diz e por não dizer se esquece, quase a mesma coisa que não saber. Que sei eu quando ando assim, tão esquecido? Mas fui advertido, também, pela sensibilidade bela e corrosiva desse poeta-amigo sobre o que não sei nem nunca soube, e talvez poucos saibam: quem há de escolher entre viver o tempo intensamente ou surpreender, apenas, a intangível delicadeza da vida? Os gregos tinham razão, dizia o amigo, Cronos tem lá suas estratégias para nos devorar com seu apetite de séculos. Costuma nos distrair com tarefas diárias, para não vermos o tempo passar. Tenho cumprido verdadeiras jornadas estelares. Ando bastante atarefado, pelos próximos séculos, talvez. Por favor, não insista, estou realmente ocupado. Tão distraído, nem sei, condenado a não ver o tempo passar... Ou não, a amizade redime, e Cronos há de regurgitar a data de aniversário do amigo, antes que esqueça?




Este e outros textos de Everardo na Antologia de 20 anos do Clube de Leitura

9 de junho de 2021

Felicidade suprema: Rita Magnago


    Luana pulou do sofá e rodopiou de alegria, gritando que a felicidade chegou para o mundo. Tudo isso porque leu no jornal que descobriram o Eclante, substância capaz de anular o poder engordativo dos açúcares e derivados e ainda com consumo liberado para diabéticos.

    — Que venha o leite condensado, o chocolate, os refris normais, as tortas, bolos, doces, sorvetes... meu Deus, que maravilha, comer sem culpa! Vamos comemorar.

    E colocou a música alta, cantarolando sozinha, girando até ficar tonta e parar às gargalhadas. Depois abriu o freezer, tirou um pote de sorvetes de passas ao rum e sentou-se no sofá, deliciando a iguaria com leite condensado cozido e dois biscoitos tipo wafer, de chocolate. Puxou o recamier, pegou o controle remoto e não quis nem que Deus ajudasse. Comeu e repetiu, chegando a fechar os olhos de prazer. Neste momento deslumbrante, chegou a mãe e foi logo pagando geral.

    — Mas não é possível, já está você aí pasmada comendo que nem uma vaca? Não chega dessa barriga, celulite por tudo que é poro? Você vai ficar ainda mais gorda, garota. É isso que quer? Como vai arrumar um marido assim?

    — Pode jogar seu veneno, que hoje nem te ligo. Ô desinformada, pega aí o jornal e lê. De vez em quando é bom exercitar outra coisa que não seja a língua, esbravejou no mesmo tom.

    A mãe pegou o jornal e foi folheando. Inflação deve ficar acima da expectativa... Governo adia reforma fiscal... Cinco mortos e 13 feridos em acidente na Dutra. Não podia ser nada daquilo. Até que no pé de página ela viu: Médico brasileiro descobre substância que inibe poder engordativo do açúcar e derivado. E ainda o sub-título: Revelação promete revolução na indústria e na estética. Devorou a matéria com a mesma voracidade que a filha engolia as colheradas de sorvete ao doce de leite. Ao final, duvidou.

    — Isso é o que eles dizem hoje. Mas aqui fala que ainda faltam meses para o produto ser comercializado e nem fala o preço nem nada. Daqui a pouco começam a surgir as contraindicações, efeitos colaterais e o produto pode ser proibido antes mesmo de ir para a farmácia.

    — Que farmácia, ô agourenta. Lê direito. Vai vender nos supermercados. Não é remédio, é uma enzima naturalmente produzida pelo organismo, mas não sintetizada na maioria dos obesos. É tipo uma pílula antigordura, sacou?

    — Sei, sei, vai sonhando. Mas olha, mesmo que seja, você ainda não está tomando nada, a não ser essa glicose na veia aí. Como é que é isso? Nem testou nem nada, já vai engordando mais?

    — É, isso é só pra comemorar. A pílula tem efeito retroativo, não leu não, mamãezinha? Quando eu começar a tomar, tudo que eu ingeri de gordura nos últimos três meses vai sair na urina.

    — Haja xixi, minha filha, haja xixi.

    E Luana seguiu feliz feito pinto no lixo, lambendo os dedos que recolhiam o pouco que restou no pote. Ligou para as amigas e contou tudo sobre o Eclante, tim-tim por tim-tim. Já estava na internet e tudo. Marcaram um jantar só de sobremesas, na verdade um luau no sábado seguinte, que era noite de lua cheia, sem previsão de chuva. Cada uma levaria um prato mais gostoso do que o outro. Adeus tirania do regime!

    Suzana, a colega chiquérrima, levaria profiteroles, receita da mãe dela que não fazia há anos. A Marilza, um bolo de sorvete que era uma loucura — a turma já conhecia porque no aniversário dela, foi o melhor da festa. A Marcela, sua melhor amiga, diabética, gordinha pra elogiar, tão radiante estava que confirmou duas sobremesas: quindim e cuscuz, afinal ela era baiana, não podia deixar por menos. Tinha uma recém chegada magrela que não se entusiasmou muito, disse que levaria uns brigadeiros porque era só o que ela sabia fazer. Ah sim, e a Luana. Ela preparava um bolo de cenoura com cobertura de chocolate de babar, mas não queria isso não, a ocasião merecia algo especial. Repassou todas as guloseimas maravilhosas que já havia provado: torta de limão, cocada mole, doces em calda com chantily, pudim surpresa, mousses de todos os tipos, nada parecia bom o bastante. Por fim optou pelo pavê de bombom porque chocolate era sua paixão. Cardápio resolvido, foram às compras.

    A mãe continuava com a mesma ladainha. Segundo ela, a notícia deveria ser falsa, só podia, onde se viu uma coisa dessas?

    — Se for verdade vai dar câncer, sentenciou, mas Luana nem aí, era puro contentamento. E assim ficou até o dia do luau.

    Armaram uma barraca branca bonita, coberta com fotos coloridas de sobremesas enlouquecedoras coladas sobre o tecido, uma técnica de retalhos que a Marilza aprendera em uma viagem ao exterior. Ao sabor do vento, a barraca destacava ora uma, ora outra sobremesa, um verdadeiro banquete aos olhos e ao estômago.

    Levaram o violão e começaram a dedilhar músicas que falavam de doces, para entrar no clima da noite. A primeira canção foi do Chico, Com Açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa... palmas e mais palmas, e a mulherada ria que só.

    Assim começaram o banquete. Uma música, uma sobremesa. A segunda foi Doce mel, que virou febre com a Xuxa: Doce, doce, doce / A vida é um doce, Vida é mel / Que escorre da boca / Feito um doce pedaço do céu. Relaxaram e liberaram a criança dentro delas.

    Em seguida foi a vez da Marisa Monte em Não é proibido: Jujuba, bananada, pipoca / Cocada, queijadinha, sorvete / Chiclete, sundae de chocolate / Paçoca, mariola, quindim / Frumelo, doce de abóbora com coco, bala. E acenderam um, porque a lua pedia. O clima esquentou.

    A próxima música foi Beijinho Doce, de José Augusto: Que beijinho doce / Que ele tem / Depois que eu beijei ele / Nunca mais amei ninguém. A mulherada já estava ligadaça. E uma começou a dar selinho na outra, para acompanhar a letra.

    A canção seguinte foi novamente do Chico, Sem Açúcar, imortalizada na voz da Betânia: Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de brisa / Dia útil ele me bate, dia santo ele me alisa / Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo / Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo. As meninas se animaram pra valer, e duas a duas começaram a alisar-se. Despiram-se, lamberam-se, apertaram-se, esfregaram-se em movimentos sincopados. Lânguidas, sussurraram indecências, confundiram membros, tornaram-se uma e outra ao mesmo tempo. Um gozo conjunto ecoou na Prainha às 22 horas. Exauridas, suadas, felizes e satisfeitas receberam o aplauso de uma multidão que a tudo assistia, perplexa e radiante.

    Passaram a noite no xadrez, enquadradas em ato obsceno, sem saber que às 22:20h o vídeo libertino já estava no youtube. Como explicar que tudo isso foi por causa do Eclante, elas ainda não sabiam.


8 de junho de 2021

Voto Consciente: Elenir

Caros Amigos,

Embora não sendo necessário justificar a alteração de meu voto para "Malagueta, Perus e Bacanaço", gostaria de esclarecer o porquê:


No Prosa e Verso, do sábado passado, dia 10, o jornalista André Luis Mansur, comentou em sua coluna, sob o título "Retrato irreverente e lírico de Luanda", o livro " Os Transparentes", de Ondjaki, escritor angolano, amigo de Agualusa, cuja obra admiro. Desse comentário, extraí a seguinte parte: "...Em alguns momentos, principalmente devido à linguagem cheia de ginga e detalhes pitorescos, lembra o nosso grande João Antônio, cujos personagens Malagueta, Perus e Bacanaço poderiam tranquilamente ser moradores do prédio do Largo da Maianga e transitar pelas mesas de sinuca dos "muquinfos" da capital de Angola". Ainda não adquiri o livro do Ondjaki, mas a referência  feita pelo colunista ao livro do João Antônio  atiçou minha curiosidade. Justificado?

Abraços.


Elenir incentivada a exercer sua real  escolha: "Malagueta, perus e bacanaço"


Tarde demais para cair na conversa na catedral desses e-leitores


Resultados das votações:

1º turno:

Conversa na catedral: Mario Vargas Llosa - 9 votos;
O deus das pequenas coisas: Arundhati Roy - 8 votos;
Malagueta, perus e bacanaço: João Antonio - 8 votos.

2º turno:

O deus das pequenas coisas: Arundhati Roy - 15 votos;
Conversa na catedral: Mario Vargas Llosa - 10 votos;


Essa turma do bacanaço não é mole!


7 de junho de 2021

Malagueta, Perus e Bacanaço: João Antônio





Os malandros estão chegando!


Vou mamujando a vida, meu companheiro. Vou marambaiando. Já que neste sistema fecal que nos rege sou tratado como um autêntico João. Enquanto aqui me roubam, me acusam, me desrespeitam, me caloteiam e até se impacientam, pois não pertenço a curriolas de nenhuma natureza, não aceito emprego público nem particular, não me escravizo a Klabins, a Malufs, a Niskiers, a Chagas e a outras porcarias. Xingo a direita de burra e sanguinolenta. Xingo a esquerda de bêbada e intolerante, de festeira e faladeira, de omissa e impopular. E enquanto a canalha babaquara e babujante acha que o realismo social é o único caminho, prego, defendo desbragadamente que o espaço cultural está aberto a todos os criadores [...]

É possível, ao homem de talento e trabalho, tecer como as aranhas uma obra-prima sobre a sombra da parede, sobre o arco-íris do céu ou sobre os massacrados trabalhadores do metrô. Viva a tolerância total! Viva a miscigenação, os malungos, os pingentes, os marginalizados, a mestiçagem completa e viva até à democracia (esse perigoso ardil dos "ismos" políticos), já que estamos longe, mui longe da anarquia lírico-criativa-sensual-desbragada-tropical-transcendente, modelo brasileiro único, incomparável e irrepetível, nosso, sem nenhuma importação ou impostação! Mas, abaixo também todo e qualquer tipo de nacionalismo, essa estupidez que gera Hitlers, Mussolinis e Perons. (ANTÔNIO apud MILLARCH, 1979)



João Antônio fala ao jornal Informação com propriedade da relação com o seu tema: 

Um antro de ladrões, prostitutas, cafetões. Assim, eu mesmo vivi muitas aventuras de meus livros. O que conto em Malagueta Perus e Bacanaço, foi experimentado por mim. Eu também estava junto com Malagueta, com Perus, com Bacanaço percorrendo as mesas de sinuca atrás de dinheiro. Esse é um negócio que precisa ficar bem claro. Por causa disso, não acho que minha literatura seja paternalista. Ocorre que tenho uma profunda admiração por homens que colocados na “marginalia” se portam como se portam. “Lá” é um ambiente onde não pode haver frescura, meio tom, meia palavra. A coisa é ou não é. (JOÃO... 30 set. 1976)


Fernanda, Mariana e Daniela estão lendo 
Malagueta, Perus e Bacanaço 
de João Antônio
Fonte

Luzes se apagaram nas ruas. Uma palpitação diferente, um movimento que acorda ia-se arrumando em Pinheiros.

Primeiros pardais passavam. Perus acompanhava os dois, mas olhava o céu como um menino num quieto demorado e com aquela coisa esquisita arranhando o peito. E que o menino Perus não dizia a ninguém. Contava muitas coisas a outros vagabundos. Até a intimidade de outras coisas suas. Mas aquela não contava. Aquele sentir, àquela hora, dia querendo nascer, era de um esquisito que arrepiava. E até julgava pela força estranha, que aquele sentimento não era coisa máscula, de homem.

Perus olhava. Agora a lua, só meia-lua e muito branca, bem no meio do céu. Marchava para o seu fim. Mas à direita, aparecia um toque sanguíneo. Era de um rosado impreciso, embaçado, inquieto, que entre duas cores se enlaçava e dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza e o branco do céu, buscava um tom definido, revolvia aqueles lados, pesadamente. Parecia um movimento doloroso, coisa querendo arrebentar, livre, forte, gritando de cor naquele céu.

Entrou no salão, mal reparou nas coisas, foi para a janela. Uma vontade besta. Não queria perder o instante do nascimento daquele vermelho. E não podia explicar aquele sentir aos companheiros. Seria zombado, Malagueta faria caretas, Bacanaço talvez lacrasse:

— Mas deixe de frescura, rapaz!

Foi para a janela, encostou-se ao peitoril, apoiou a cara nas mãos espalmadas, botou os olhos no céu e esperou, amorosamente.

Veio o vermelho. E se fez, enfim, vermelho como só ele no céu. E gritou, feriu, nascendo.

Já era um dia. O instante bulia nos pêlos do braço, doía na alma, passava uma doçura naquele menino, àquela janela, grudado.




Perus olhava. Agora a lua, só meia-lua e muito branca, bem no meio do céu.


Marchava para o seu fim. Mas à direita, aparecia um toque sanguíneo. Era de um rosado impreciso, embaçado, inquieto, que entre duas cores se enlaçava e dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza e o branco do céu, buscava um tom definido, revolvia aqueles lados, pesadamente.

Parecia um movimento doloroso, coisa querendo arrebentar, livre, forte, gritando de cor naquele céu.

[...]

Veio o vermelho. E se fez, enfim, vermelho como só ele no céu. E gritou, feriu, nascendo.








"Osso quebrado, nervo torcido, carne rendida, assim mesmo eu te cozo. Sai de mim, azar do capeta!"











Noite de sábado. Lapa, local excelente para jogar com apostas.... quando se tem dinheiro. Mas os 3 estavam quebrados. As pessoas chegam, a rua muda seu visual. Qual a vantagem disso sem dinheiro? Poderiam "arrancar" a grana dos mais bobinhos - se estes tivessem aceitado. Tava tudo pronto: Bacanaço seria o chefe, Malagueta e Perus fariam as jogadas e os 3 dividiriam a grana.... que era o que faltava para começar? ... Bacanaço tem uma idéia: vendeu seu relógio, arranjou a grana e vamos para o mundo! Na Água Branca, um joguinho fácil, o Vida (cada 1 tem uma bola, devendo derrubar as outras sem ter a sua derrubada). Com um pequenino esforço, Malagueta e Perus entram na partida. A grana cada vez mais alta. Malagueta arma as jogadas, que Perus arremata. Simples, alta fatura, se Lima, velho policial aposentado e inspetor do jogo não tivesse percebido. Mesmo pouco, dividem a grana. Continuam andando. A falta de jogo começa a deixar os 3 perturbados. Era sábado, eram malandros. Mas não em Barra Funda, bairro de rico. Malagueta sonhava com o dinheiro, que faria a vida dele e sua amante melhorar, ao menos um pouco... e ele deixar de ser como um cachorro, caçando o que comer. Continuaram andando. A cidade era dos que ganham a vida a noite ... O dia já estava raiando. Nenhum jogo, salão vazio. Iam começar a se desafiar quando Robertinho apareceu. Malandro na sinuca, começa perdendo para tirar até as calças. Perus sabia, mas não podia fazer nada. Malagueta e Perus se jogam no jogo. Perdem todo o dinheiro da noitada, pareciam não acreditar. Saíram, os 3, cabisbaixos. Sem grana até para o café. (Fonte: Wikipedia)


Tema:  

Dificuldade de sobrevivência (o texto é um ciclo de uma noite). Vida de malandro não é fácil (mas se segue por falta de opção). 

Malagueta: velho trapaceiro, bebum. A decadência do malandro. Nome, por conta da pimenta.
 

Perus: jovem, com passado meio complicado. Mostra que, para sonhar com futuro melhor, meninos do subúrbio devem entrar na malandragem. O principiante. Nome por conta do bairro em que vive.
 

Bacanaço: o auge. Seu nome é por ser bonitão.
 

Lima: inspetor aposentado. Ele é apresentado por mostrar que a policia gosta de agir com malandros e tenta persuadi-los.
 

Robertinho: malandro mor, bom jogador. Mostra também o código de fidelidade a sinuca (que não pode ser quebrado). Sabe também que o malandro pode ser pego por um malandro maior.
 

Marli: prostituta que morava com Bacanaço, tratada mal (ele batia nela, sempre brigava com ela, explorava, trancava quando ele era desobedecido à mostra que nesse mundo de malandragem, a violência e o medo é uma maneira de manter as relações entre as pessoas). (Fonte: Wikipedia)





Maior Dramaticidade:  

momento que se unem para ganhar, momento que estão perdendo. Os 3 resolvem andar porque fazia parte da vida deles (malandro tem um mundo invertido: dorme de dia, trabalha a noite, sem leis, etc.). Terminam na Lapa, pedindo café fiado; Eles começam o livro sem grana, tentando arranja-la (pra consegui-la, Bacanaço vende seu Movado). Silverinha ganha dinheiro do Bacanaço porque este (policial) estava ameaçando Perus, cobrando um pedágio (para continuar o jogo). Tal parte indica que os 2 tinham grande proximidade (grande malandro X policial corrupto). As 1º vitórias, na mesa do Lima, foram com trapaça à Malagueta defendia Perus, que atacava o resto: metáfora da vida - às vezes a gente se defende, às vezes a gente ataca. Um dos elementos simbólicos: na vida, as coisas são assim: ataque/defesa/vitória/perda. Bacanaço não joga por ser o chefe. Perus não jogou contra Robertinho pois pensaram que Robertinho era "franco" no taco. Eles não desistem do jogo por honra. A sinuca era vida/sobrevivência dos personagens. Perus foi tratado por Silverinha com ameaças, pisadas e esmagadas (com o taco) no pé. Joana Darc, o dia tá amanhecendo. Perus se sente meio angustiado, sem poder falar nada (malandro não pode sentir, afinal é frescura, etc.). Eles atuavam nos bares, comiam P.F. (mostrando o quanto a vida era difícil). Assobiavam garufa quando estavam bem. Calois: jogador que ficou jogado: ele bebeu demais, se viciou, perdeu a boa atuação, (mesmo malandro tem que manter algo, uma certa normalidade, ter dedicação para ser bom). Perus e Malagueta tão jogando com Lima, tendo sua tramóia percebida porque fica evidente que ele está defendendo. As prostitutas vivem mal também e para suportar se drogam. (Fonte: Wikipedia)






Resumo da obra

4 de junho de 2021

Segunda experiência de criação literária de membros do CLIc



Com a participação de oito integrantes do CLIc e de outros clubes de leitura, tivemos a segunda experiência de produção literária.

Utilizamos como ponto de partida as primeiras linhas do conto “Verde lagarto amarelo”, de Lygia Fagundes Telles, que transcrevo a seguir:

“Ele entrou com seu passo macio, não chegava a ser felino: apenas um andar discreto. Polido.”

A partir desse trecho, os leitores colocaram no papel o que ele os inspirou.

Agradecemos a participação de todos. O resultado vem a seguir:

 ****

 

"Ela reparou logo naquele homem que não era bonito nem feio, mas tinha uma elegância natural, uma energia diferente, um jeito que a agradava. 

Sabia que aquele congresso exigiria muito dela, foco e presença. Mas sentiu algo que não sabia definir, uma atração, vontade de tentar uma aproximação, mas ao mesmo tempo, tinha receio." (Claudia Fonseca)

 

***** 

"E foi dessa maneira que ele entrou na vida dela. Sem alarde, silenciosamente. Quando percebeu estava apaixonada." (Rosemary Timpone)

 

***** 

"Seus gestos eram sempre muito discretos. Era homem de poucas palavras. Vestia-se devagar todas as manhãs. Em cada cômodo da casa havia partes das suas roupas, cuidadosamente penduradas em diferentes armários. Mantinha as camisas enfileiradas impecavelmente engomadas. Todas em tons claros e penduradas na ordem de cores. A coleção de gravatas era organizada de acordo com a textura, cor e estampas. Os fatos eram guardados no último quarto, onde Odete, sua "mulher a dias" mantinha sempre aberta a tábua de engomar a ferro. Só no final, ele calçava os sapatos para que nesse vai e vem não causasse infalíveis ruídos naquele piso de madeira impecavelmente encerado por sua mulher que ainda dormia, sem perceber aquele ritual de todas as manhãs. Polidamente, ele envergava-se até sua mulher ainda sonolenta para o primeiro beijo do dia e, já perfumado, descia as escadas do quarto andar apressadíssimo para mais um dia e trabalho como jurista do ministério da educação."  (Lilian Silva)


*****

 "Ela ouviu a leveza desses passos e se assustou.

Uma imensa angústia tomou conta de si. Sua respiração ficou lenta, o coração disparou.

Havia algo estranho nesse silêncio. Pressentiu más notícias...em regra ele era diferente, pulsional, expressava sempre uma alegria incontida.

Já há muito percebia fatos, atitudes não comuns ...Sentia-o mais calado, suspirando. Sim, algo não ia bem.

Numa certa ocasião, encontrou-o com os olhos molhados, lágrimas escondidas, choro contido, que disfarçou com uma enorme gargalhada.

Mas ela sabia que era um disfarce.

Fez-lhe perguntas, convidou-o a conversar.

Nada...

Ele se aproxima e lhe entrega uma carta...Debruça-se para pegar uma pequena valise, gira seu corpo e vai em direção à porta, apenas dizendo...

- Leia a carta...Adeus!

Ela quase paralisada, sem ar, nada expressa a não ser um grito, quase um sussurro  ... fala: Por quê? Cai ao chão e chora copiosamente... Então era verdade.!"  (Ceci Lohmann)

 

***** 

Embora discreto e de poucas palavras, seus olhos falavam, e muito!

Com eles, fitou-me dizendo: "A partir de hoje, senhorita, serei o diretor desta empresa, e, certamente, irei contar com sua valiosa ajuda, como secretária.     

As referências que ouvi a seu respeito, levam-me a esta convicção."

Procurando não demonstrar meu nervosismo, respondi-lhe: agradeço-lhe, Doutor, a confiança em mim depositada e  tudo farei para não o decepcionar. Intimamente, porém,  perguntava-me: como permanecer oito horas diárias, ao seu lado, sem apaixonar-me por este homem? Com certeza, estou sentindo "amor à primeira vista", por esta voz, por estes olhos, por seu jeito discreto e fala mansa.   (Elenir Teixeira)

 

 *****

"De atitudes comedidas e fala mansa, aproximou-se do grupo que programava o evento. Ouviram seus argumentos e permaneceram calados, por um tempo." (Mariney Klecz)

 

 *****

"E nunca ela escutou tão alto um silêncio. Talvez fosse seu coração gritando, pois pressentia a força do impacto daquela suavidade sobre ela. Ele estava entrando assim, macio, discreta e polidamente, na sua vida para ficar." (Consuelo Ramos)

 

 *****

Usava um velho tênis com o tecido verde musgo puído, jeans rasgado, contrastando com o blazer chique e bem talhado.

 Antes de entrar no prédio da Câmara dos Vereadores do Rio, ficou rodando pela Cinelândia, mas não saindo de perto das escadarias, sempre olhando o relógio. Olhava em volta sem parar, como se estivesse aguardando alguém. Ao entrar, colocou o artefato que não usava há dois meses: a máscara azul PFF2. Aquela peça foi utilizada por ele até julho de 2022, mesmo tendo passado seis meses desde que a Prefeitura decidiu que não era mais obrigatório seu uso.

 A calma com que entrou na Câmara praticamente junto com um grupo de políticos e seus aspones o deixou quase invisível a quase todos, inclusive aos seguranças.

 Visível ele ficou apenas para Maria, que parou de olhar para um busto de um antigo político ao perceber sua entrada. A máscara deixava de fora aqueles olhos tristes que ela reconheceria em qualquer lugar. Salvador fora o único que a defendeu do forte bullying que sofria na escola estadual dez anos antes. Sim, é ele mesmo, suspirou ela, o jovem zelador que depois teve que ser transferido, devido às ameaças do grupo que a atacara. Nunca mais teve notícias daquele anjo.

 Ela passou a segui-lo com olhos de interesse. Ele estava bem diferente agora, com andar mais confiante. Não era só seu herói de outrora. Parecia decidido, firme. 

Salvador subiu as escadas para a galeria. Maria o seguiu pouco depois. A galeria estava repleta de professores com faixas de protesto num lado e de um grupo menor de apoiadores de um dos políticos no outro lado.

 Toca uma sineta, indicando que a sessão iria começar. 

 Salvador mete a mão dentro da bolsa de couro, mas interrompe seu ato ao perceber o olhar de Maria para ele. Ele tentava lembrar de onde a conhecia. Segundos depois, lembrou. Ela poderia ter aparecido seis anos antes, quando ainda não tinha conhecido e se apaixonado por Selena. Por que foi surgir justamente agora que está viúvo e decidido a cumprir sua vingança contra aqueles filhos da puta, responsáveis por sua desgraça?

 Mas o olhar de Maria o incomoda. Não que fosse um olhar acusativo – pelo contrário, era doce – mas não consegue mexer seu braço.

- Vamos dar início à sessão de hoje ....

Salvador não consegue escutar nada, as falas do presidente da Câmara, nem as vaias, aplausos e palavras de ordem na galeria.

- Silêncio na galeria ou teremos que expulsar todos!

Maria vai em direção a ele, que fica totalmente paralisado. Ela sorri e isso parece desarmar completamente Salvador, que se postava na primeira fileira de poltronas. Maria vai se desviando dos outros. Me dá licença, por favor. Licença. Licença – ela avançava e a distância diminuía. Estava agora a quase 3 metros. Salvador estava prestes a esboçar um sorriso. De repente, uma voz sobressai no alto falante. Acabou se acostumando a ouvir o dono da voz nesses quase quatro últimos anos, e há exatamente um ano, quando Selena morreu, a voz passou a machucar bastante seu peito, causando-lhe muita raiva. Aquele tom de deboche na voz e na gargalhada era inconfundivelmente incômodo para ele e detonou um gatilho em sua memória, fazendo-o lembrar o porquê de estar ali. Então, meteu novamente a mão dentro da bolsa e puxou um revólver de cano longo.

- ENFIA  A (inaudível) NO RABO, FILHO DA PUTA! – berrou ele.

A gritaria da plateia não nos permitiu identificar o que Salvador mandou enfiar no orifício anal. Após o grito, deu cinco tirambaços. Todos certeiros. Nenhum foi desperdiçado.

Esclareço que, quando souberam que eu relataria esses fatos, me orientaram a não dizer quem era o citado filho da puta. Disseram que identificá-lo poderia me causar problemas e eu poderia receber visitas indesejáveis de pessoas que já foram premiados com medalhas honoríficas da Câmara e Assembleia. O não identificado dono do cu que deveria receber o que Salvador gritou, foi atingido pelos dois primeiros petardos no meio da testa. Outro tiro certeiro atingiu um vereador que mexia no seu iPhone. Quem encontrou seu celular, disse que a página do whatsapp que estava aberta era identificada por “Priminho”. O quarto tiro acertou uma pessoa não identificada que rachava uma caixa de bombom bem chique com seus assessores. O último petardo atingiu um deputado de alta estatura que gargalhava de alguma piada preconceituosa daquele que estava a sua frente e recebeu os primeiros tiros.

Salvador olhou então novamente para Maria e, com um sorriso confiante nos olhos, em um segundo subiu na sacada e saltou para sua liberdade. Antes de estatelar nas cadeiras abaixo da sacada, conseguiu gritar:

- SELENA, FIZ POR VOCÊ!  

(Carlos Benites)