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13 de julho de 2023

O crime do cais do Valongo: Eliana Alves Cruz




Sexo, em muitas circunstâncias, é pecado em todas as religiões do "povo do livro".


Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá: Lima Barreto





Documentário sobre Lima Barreto, veja aqui.
MESTRES DA LITERATURA


Alguns locais citados no livro "Vida e Morte de Manuel Joaquim Gonzaga de Sá" de Lima Barreto

Paço Imperial


Gonzaga de Sá acreditava que com o desenvolvimento da viação urbana, o trajeto entre Méier e Botafogo que na época levava cerca de 2 horas de charrete ou de bonde, seria feito muito mais rapidamente. Mal sabia ele que hoje em dia deve estar demorando umas 4 horas apesar de todo o desenvolvimento realizado ao longo de um século inteiro. Ele não conhecia a maldição dos engarrafamentos.



Av. Central


Lima Barreto zeitgeist






Cais do Valongo
75 anos mais tarde, eu passaria por aqui quase diariamente pelos 35 anos seguintes, até agora.
Morro do Castelo



Rua do Ouvidor












"É a Rua do Ouvidor! Então é a vertigem; todas as almas e corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração, fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural. Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as heranças que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos bancos sangram..."
Baía da Guanabara par Marc Ferrez








"Por que não sou assim como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco, que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações? Longe de me confortar a educação que recebi, só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez despeitos! Por que ma deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria uma por uma as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise. Então, encher-me-ia de respeito por tudo e por todos, só sabendo que devia viver de qualquer modo..."
Praça Mauá

Bondinho de Santa Tereza - Arcos da Lapa

... Era uma preta retinta, de uma pele macia de veludo ... A gratidão devia ser grande. Aquele homem agora morto lhe dera as mais gratas satisfações de sua humilde vida. Casara com a filha, apoiara com seu prestígio de homem a sua fraqueza de condição de menina, arrebatara-a ao ambiente que cerca as raparigas de cor, dignificara-a, ela, a quem quase todo o conjunto da sociedade, sem excetuar os seus iguais, admitem que o seu destino natural é a prostituição e a mancebia. Do outro lado, lá estava o neto... Coitado! Nem o estudo lhe valeria, nem os livros, nem o valor, porque, quando o olhassem diriam lá para os infalíveis: aquilo lá pode ser nada!

     Tive uma pena infinita, imensa, afetuosa por aquela pobre alma órfã tantas vezes; eu tive uma imensa tristeza que aquela inteligência não se pudesse expandir livremente, segundo o próprio caminho que ela própria traçasse...



"Não se lê Lima Barreto para aprender português. Lê-se Lima Barreto para aprender a ser Brasileiro"



Estação de Trem da Piedade


Vinho Bucelas Branco





Leia o livro na íntegra






10 de julho de 2023

Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa


"Sertão, - se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem."




"Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é."

 "Pouco se vive, e muito se vê... – Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém..."

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou."


SOBRE O PRIMEIRO PARÁGRAFO DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

 

- Que nós rosianos leremos hoje em voz alta às 19 horas, para comemorar o 113o. aniversário de Mestre Guimarães Rosa 

 

Para ajudar a compreender, eis a minha interpretação desse parágrafo de abertura do livro: 

 

Muita gente pensa que "nonada" é uma palavra inventada por Rosa. Na verdade ela existe   e quer dizer "ninharia, insignificância". Aqui o narrador, cujo nome ainda não sabemos, conta ao doutor que o som de tiros que ele ouviu  não foram de "briga de homem", o que poderia redundar em mortes. Foi apenas o narrador fazendo treino de tiro, mirando em árvore, algo que ele pratica todos os dias "desde mal em minha mocidade". Com isso aprendemos que ele é um senhor de idade. Explica também ao interlocutor vindo da cidade, desacostumado com aquilo, que quando é tiro "de verdade", primeiro se ouvem os cachorros latindo e depois "se vai ver se deu mortos". Aqui o narrador já revela uma dupla intimidade com as armas: sabe utilizá-las e conhece bem o que resulta do seu uso, é um homem que em algum momento da vida lidou com isso. Aponta, portanto, um primeiro tema: a violência. Em seguida, o episódio do bezerro que "figurava rindo feito pessoa" traz uma questão central, que estará presente em todo o livro: a existência ou não do Diabo. Aqui, um fato excepcional, um animal com um aspecto não-animal e sim humano, é interpretado pelo povo como sendo uma manifestação demoníaca. Note que o narrador procura se diferenciar do "povo prascóvio", isto é, ignorante, tentando granjear a simpatia do doutor da cidade, que sem dúvida achava tudo aquilo uma bobagem. Diz inclusive que não tem "abusões", ou seja, que não é supersticioso, não tem crendices, o que é uma mentira deslavada, como veremos. Mas quando o doutor ri, o velho acha por bem repreendê-lo com delicadeza, alertando que o tema era importante: "O senhor ri certas risadas...". Embora o narrador diga não acreditar naquilo, o que veremos não ser exatamente verdade, ele mesmo dá um sinal claro do contrário: "eu não quis avistar". Por medo? De qualquer forma, é ele que empresta as armas. Ao afirmar para o doutor que aquilo é o sertão, que ali as coisas são assim, aparece mais um tema central: o sertão. Seus limites não estão claros, cada um tem uma opinião sobre onde ele começa. Mas essa opinião é relativa, literalmente, ao ponto de vista de cada pessoa. Para uns o local onde está a fazenda não seria sertão, que só começaria bem mais ao norte, nas terras altas do rio Urucuia. Já para os que vivem mais ao sul, em Corinto e Curvelo, ali é sertão sim. Aqui, disfarçadamente, ele apresenta a perspectiva relativista ("pão ou pães, é questão de opiniães"), muito importante no livro. Mesmo assim, há características inegáveis no sertão. A primeira é a escassez de habitantes, muito espelhados por um imenso território, onde alguém pode atravessar quase cem quilômetros "sem topar com casa de morador". A outra seria a ausência de uma autoridade firme, de uma presença efetiva da lei. Por isso, sertão é "onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade." Ou seja, é onde muitos criminosos vêm se refugiar fugindo da lei. Veremos que no sertão o que manda e comanda é a lei do mais forte. Por fim ele volta a falar no rio Urucuia, nas pastagens, culturas e florestas que lá existem. O Urucuia, como iremos ver, é um rio de predileção para Riobaldo. Em volta dele, correm os gerais "sem tamanho", os campos do planalto central cobertos de grama, vastos e pouco habitados. O fecho deste primeiro Passo é surpreendente: "O sertão está em toda a parte." É um salto do sertão real para o sertão metafísico. Ele nos diz que o sertão dele, embora descrito como o sertão realmente existente – e Rosa será incansável com os detalhes – é, na verdade o cenário para o debate de questões universais, presentes "em toda a parte". Voltando à palavra inicial, "nonada". Por trás da humildade mineira, esconde-se o propósito da criação, que inventa um mundo a partir do nada. Lembrando que a palavra fictio significa fabricar, criar, exatamente o que Guimarães Rosa vai fazer em sua obra. É preciso lembrar que o inventado não é sinônimo de falso, ele existe enquanto obra de arte. Como vai dizer o narrador mais adiante, acerca de um romance: "Nele achei outras verdades, muito extraordinárias." Em "A hora e vez de Augusto Matraga", uma novela maravilhosa que de certa forma antecipa Grande sertão: veredas, o narrador diz que determinado fato ocorreu exatamente como ele diz: "sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor." Portanto, se começamos no nada do papel em branco, agora tudo é possível.

 

(Marcos Alvito)





E se...Guimarães Rosa tivesse escrito A metamorfose?
.
Nonada. Um vivente acorda com uma estranhez e o que vige é travessia. Antenas? Barata dentro do homem logo de manhãzim, bafo de baygon: coisa do demo, o que era são, vem a mão. Haja-o. As perninhas num faz-e-mexe. Nenhuma reprimenda fora do quarto, o sinhô seu pai e a irmã e-vém, não? Praga! O cuscuz, mire, ou o leite, mire-e-veja, já na mesa e o serzinho já nesse encosto de inseto, embaratamento e tontez. Diz o ditado: quem amanhece no chinelo ou é sonso ou é samsa. Samsamente sonso. (...)
.
[Trecho de A hora e a vez de Augusto Barata]





“O SERTÃO ESTÁ DENTRO DA GENTE,
O SERTÃO ESTÁ EM TODA PARTE”






17/08/2017
19:00h

Varanda do Teatro da UFF







“Diadorim levantou o braço, bateu mão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope, para logo alcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo f’losofou: refugou baixo e refugou alto, se puxando para a beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orêlhas dele. Do vento. Do vento que  vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe – a briga de ventos. O quando um esbarra com o outro, e se enrolam, o dôido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo,
esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. – “Redemunho!” – o Caçanje falou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga da banda do mar…” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, no meio do redemunho…Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor não deve nunca de renovar. Mas, me escute. A gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e o Diadorim se riram também. Aí, tocamos.” (p.262)


NONADA!

O alemão Berthold Zilly foi o tradutor da última versão de Grande Sertão para o alemão. Quando estava em processo de tradução, o "Jornal Cândido", da Biblioteca Pública do Paraná, publicou uma entrevista com ele, que já havia traduzido para o alemão "Lavoura Arcaica", Os sertões e "O triste fim de Policarpo Quaresma. Deixo aqui a pergunta sobre a questão da palavra "nonada": 

- A primeira palavra de Grande sertão: veredas é “nonada”, um termo que tem um significado enigmático na boca de Riobaldo. O senhor poderia explicar como verterá ao alemão esse tipo de palavra, que, ao longo das mais de seiscentas páginas do livro, se prolifera?


- “Nonada” realmente é uma palavra-chave, com seis ocorrências no total em Grande sertão: veredas, a primeira abrindo o romance e a última, de certa maneira, fechando-o, já que ocorre na penúltima linha da última página. Esta palavra constitui, além disso, o antônimo ao último sinal gráfico do livro, que é o símbolo do infinito. Assim, o movimento da trama e das ideias de certa maneira vai do quase nada ao infinito. Assim como muitas outras palavras e frases do livro, esta é por um lado coloquial e quase banal, tão banal quanto o sentido dela, ou seja: “coisa sem importância, um quase nada”, sendo por outro lado palavra estranha, rara, enigmática, principalmente no início, sendo esclarecida depois, parcialmente, pelo contexto. Esta tensão entre o corriqueiro, o popular, o cotidiano por um lado e o estranho, o enigmático, o hermético, por outro lado, é também uma característica do romance todo. Aliás, diferentemente de muitas outras palavras do livro, esta não é um neologismo rosiano, pois é uma palavra popular e meio antiquada, caída em desuso hoje, que se encontra em vários autores do século XIX e do início do século XX, inclusive em Os sertões, de Euclides da Cunha. Como vou traduzi-la? Ainda não sei, estou procurando uma expressão mais ou menos equivalente que também seja curta e concisa, popular, meio datada, e que tenha, no plano sonoro, pelo menos um elemento repetitivo, já que “nonada” tem até dois fonemas repetidos, o “n” e o “a”. Infelizmente, em alemão não temos uma palavra equivalente em termos semânticos, estilísticos e fonéticos, diferentemente do italiano, que tem “nonnulla”, ou o francês, que tem “que nenni”, e também não posso fazer o que fizeram os tradutores para o espanhol, que simplesmente mantêm “nonada”, que é neologismo em espanhol, mas que funciona nesse idioma, já que tem aí uma qualidade auto-explicativa. Em quatro das seis ocorrências, a palavra “nonada” constitui uma frase, o que não facilita a tarefa do tradutor. Estou cogitando diversas soluções, mas nenhuma me agrada muito. Antes de tomar uma decisão sobre a tradução desta palavra introdutória do livro todo, tenho que ver como os possíveis equivalentes funcionam nas outras cinco ocorrências de “nonada”. Pois quando a gente traduz uma palavra-chave com várias ocorrências, a gente deve tentar manter essa isotopia, ou seja, a igualdade do meio expressivo em todas as suas ocorrências, para que ele possa ser identificado pelo leitor do texto-alvo como elemento estruturador e orientador, função que tem no texto de partida e que o tradutor precisa respeitar. Em outras palavras: é desejável traduzir “nonada”, nas suas seis ocorrências, sempre de modo idêntico.





Viver - não é? - é negócio muito perigoso!


9 de julho de 2023

Reflexões sobre "A Estrada" de Cormac McCarthy: Rafael

"(...)Havia momentos quando ele ficava sentado observando o menino dormir em que soluçava incontrolavelmente mas não era por causa da morte. Ele não tinha certeza do motivo mas achava que era por causa da beleza ou da *bondade* . (...)"
A Estrada pag. 90

A crise de valores éticos e morais na sociedade contemporânea atinge pessoas de todas as idades, segundo MacIntyre (2001), que atribui à troca da racionalidade pela emoção, o que o filósofo denomina *Emotivismo* . Essa doutrina se refere à primazia das expressões de preferência, emoção e prazer sobre os paradigmas morais.

Conforme von Hildebrand (1988) uma das virtudes que se destaca e tem grande importância na vida de cada pessoa é a *Bondade*

*Emotivismo* é a doutrina segundo a qual todos os juízos valorativos e, mais especificamente, todos os juízos morais não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes, na medida em que são de caráter moral ou valorativo. (MACINTYRE A. 2001, p.30)

A criança cresce afastada dos princípios éticos, afetando seu desenvolvimento emocional, social e moral. De acordo com Piaget (1994) a criança não nasce sabendo sobre regras, sendo necessário que um adulto a conduza a este conhecimento. Mostra-se necessário que sejam ensinados aos meninos valores e
virtudes que compõem a Educação Moral, e isto pode ocorrer por meio das diversas disciplinas escolares. A crise moral contemporânea é visível e ultrapassa os limites da individualidade. Será?


Monica Ozório no CLIc

 

Minha História, Pachinko e Judas


A Estrada


Tudo é rio


A distância entre nós


Que eu seja a última


A cabeça do santo


O crime do cais do Valongo


Sobre bondade de Benito Petraglia


Cisnes selvagens


A casa amarela


Imperatriz de ferro



Psicóloga, Escritora 
e, sobretudo, Leitora.


A estrada: Monica Ozório

A Estrada não é um livro com pretensão de descrever um mundo pós-apocalíptico com bandidos terríveis e heróis capazes de refazer a humanidade. É a história de uma família, onde a esposa está grávida quando ocorre o holocausto e o filhinho nasce imerso nesse caos. Tampouco os horrores são mostrados cruamente. O escritor passa de forma relativamente sutil (deixa claro que somos capazes de canibalismo, roubo, assassinato para roubo, etc, mas não é nenhum filme de terror), mesmo Evandro não concordando, pelos humanos que se degeneraram moralmente na busca de sua sobrevivência e os que ainda seguem com dignidade. Aliás, são pouquíssimos personagens. Tudo se desenrola entre pai e filho. O restante é periferia passando rápido.
Bem, os pais discutiram exaustivamente morrer ou viver. A mãe fez sua opção, saindo do livro e deixando pai criando o filho sozinho (vemos isso apenas nas lembranças do homem) e tentando chegar ao sul do país para fugirem de um inverno que seria mortal. Qual a história aqui? Esse pai ama profundamente o filho e tenta lhe ensinar que há o bem e o mal no mundo. Homens bons e homens maus, e que a escolha deles dois seria sempre o bem. Ele é humano e dá uma escorregadinha num ou dois momentos, mas achei perfeitamente coerente. Pai e filho são adoráveis e como sempre vieram viver aqui em casa enquanto o livro estava aberto. Sou íntima agora.
É uma dureza ver aquela arma inicialmente com duas únicas balas e o pai se debatendo se teria coragem de matar o filho se a situação ficasse insustentável. Ou quando só tem uma bala e o pai deixa com o filho quando tem que se afastar em busca de víveres, para que o filho possa se matar se for necessário. É doloroso vê-los com frio e fome. E o autor escreve de uma forma inusitada. Não temos nomes de personagens, nem travessões ou aspas para indicar os diálogos, nem idade, país, etc. Ele está pouco se lixando em dizer a causa do apocalipse. Ele só quer mostrar o amor desses dois seres, sua jornada em busca de um lugar seguro, e os curtos diálogos sobre o bem e o bom. A construção de uma confiança mútua. Não é um livro de finalzinho feliz, sem lágrimas, com um mundo reestruturado nem nada disso. Mas achei interessante que o pai escolheu conhecer o filho, ainda que num mundo duro, do que a saída mais fácil (?), como a esposa, o suicídio. E digo que ela não foi covarde. É sabido através da História que a mulher sempre acaba prisioneira, escrava sexual e etc. E ela tinha esse mesmo medo pelo filho. A pedofilia é real. Ela discutiu longamente com o marido sobre isso e fez sua escolha pela morte. Não condeno nenhum dos personagens. Ele quis viver e ver crescer seu filho. Eu mesma provavelmente seguiria a escolha dela e teria levado meu filho comigo, desculpem desaponta-los. Me debato que poderia estar tirando do mundo um ser que faria alguma diferença para a humanidade. Mas de qualquer maneira, pensar que vamos fazer é diferente de fazer.

O livro não tem o perfil do grupo. E acho absolutamente impossível transforma-lo em filme, já é é muito introspectivo por parte do pai, suas decisões, suas lembranças e seus temores pelo filho. É um "livro" entre eles. Os poucos diálogos que tem são curtos, porém importantes, pq é esse menino que ajuda a manter o pai no rumo do bem que ele prega. São pequenos diálogos, muitas vezes com duas, três palavras entre eles, tratando do medo do entorno e do medo de o pai e a criança sucumbirem às necessidades básicas/selvagens de sobrevivência.


São diálogos curtos. Neles são testadas a credibilidade entre os dois. E qdo o menino cobra do pai que não farão o que ele viu outros fazerem e aos prantos chora quando o pai "escorrega" um cadinho, é que vemos como o filho ajuda a manter a civilidade do adulto/pai.

* * * 

Quanto ao espeto esturricado do bebê sem cabeça


Eu imaginei que vc ficou mal nessa parte. Foi a pior, acho. até pior que o porão. Inclusive achei desnecessário por parte do escritor. Ele já havia deixado claro a que nível podemos chegar para sobreviver.

Mas vc percebeu que tudo isso foi para o menino entender seu entorno, e reforçar os conceitos do bom e bem de seu pai? Não que eu ache que o homem sucumbiria a esse nível. Acredito realmente que a maioria de nós não sucumbiria.

Esse livro inclusive me reforçou a crença de que a maioria de nós não sucumbiria aos desejos abjetos. Creio que a maioria manteria não só o que pudesse de sua dignidade, mas principalmente, não se tornaria escravo de desejos e luxúrias abjetas.



6 de julho de 2023

Mar azul de Paloma Vidal, por Eloisa e Adélia

 





Mar azul: Paloma Vidal


Revertere ad locum tuum


Assista a "Livros 47: Mar Azul - Paloma Vidal" no YouTube


Até Papai Noel foi ver o mar azul... 








"cozinhar corre o risco de se tornar um dos modos da memória. Por sorte o tipo de concentração que a tarefa exige deixa pouco lugar para que a mente fuja. No máximo são voos curtos que têm como motivação sentidos mais fugazes como o que desperta um cheiro ou uma urdidura."




"O café da manhã, o maiô, a camiseta, o short, os chinelos, o pátio, a rua e um passo depois do outro. Essa ordem poderia ter levado o dia para que a noite me dissesse se a visão inusitada de horas atrás havia sido uma ocasião nova ou uma interrupção na sequência de sempre.
...
Ele imaginava as palavras como ventosas que se grudariam às coisas para salvá-lo do que o esperava."



"As mantas, os lençóis, as almofadas, uns sobre os outros, numa desordem calculada para criar um terreno próprio, macio, abafado, como o corpo de um bicho sobre mim, me protegendo do mundo. Esse espaço em outra época foi uma forma de estar longe do alcance dos meus pensamentos. Não é esse um ideal, simplesmente estar no mundo, como o ar?"







"... quando chegamos ao nosso destino havia no para-choque um pequeno pássaro morto. Nós o tínhamos atropelado. Ele estava grudado na lataria do carro. Me surpreendeu tanto sua posição rígida, com as asas e as patas muito abertas, que demorei a assimilar que ele estava sem vida.
...mas que havia uma vida que continuava. Não uma vida depois da morte, mas a vida mesma, que não me pertence, como o mar não é dos peixes."




Ainda assim na minha memória há lugar para sua generosidade. Afinal nesse silêncio ele me deixava livre. Havia um espaço de visão que era meu e tudo o que um pai poderia ter me ensinado não se equivaleria ao que virtualmente me era oferecido quando ele preferia não dizer nada. 




Solitária numa cidade estrangeira, uma mulher no começo da velhice se dedica a tarefas corriqueiras. Observa o voo dos pombos no pátio, frequenta a piscina, marca consultas médicas que considera cada vez mais urgentes. Mas, dentro de casa, empreende uma atividade peculiar, quase clandestina: lê os diários de seu pai. E escreve suas próprias linhas nos versos das páginas. O contato entre as duas grafias vai desvelando as pistas de uma história sempre incompleta.

Mar azul retoma alguns dos elementos que consagraram Paloma Vidal como uma das vozes mais marcantes da prosa brasileira contemporânea. A memória – zona opaca de elipses e de impasses – é pedra de toque para uma trama que nunca se deixa ver por inteiro. No compasso melancólico de um cotidiano marcado pelo exílio, o passado ressurge em fiapos, peças de um quebra-cabeça naturalmente movediço, no qual os nomes de personagens e cidades, a cronologia ou os fatos não exigem evidência; em geral, não passam de insinuações.

A ausência e o luto, a distância e o esquecimento pairam sobre Mar azul. Apenas a água, o oceano e as lembranças de uma viagem à praia parecem um norte possível, alento para a dificuldade de fixar afetos e decifrar as próprias dores. A solidão – fruto do hábito paterno de estar sempre de partida – aproxima a protagonista de Vicky, que se tornará sua melhor amiga. É a experiência desse convívio que abre o livro, cujas primeiras páginas são tomadas por fragmentos de diálogos entre as duas, ainda adolescentes.

São diálogos forjados pelo constante jogo de revelar e esconder, inquirir e insinuar, contornar o perigo e as ameaças secretas com um jeito ora titubeante, ora luminoso. Nesse jogo, perseguem a dúvida como elemento precioso e aflito da intimidade, enquanto refletem a identidade, marcada simultaneamente por vertigens de silêncio e ímpetos de violência, de quem foi jovem na América Latina, em algumas décadas do século passado.