Yukio Mishima, aparte a grandeza de sua literatura, é uma figura complexa o bastante para nos interessar simplesmente a partir de sua biografia: nascido numa família extremamente conservadora, que desestimulou-o o quanto foi possível a seguir a carreira literária, Mishima acabou por tornar-se o paradigma do conservadorismo japonês. Na contramão dos movimentos literários japoneses no pós guerra, defendeu ardorosamente o retorno aos valores fundamentais da cultura japonesa sob o domínio samurai, rejeitando virulentamente a influência nefasta dos modismos europeus e estadunidenses. Hábil na arte milenar do kendo (a espada samurai), conhecedor e estudioso de táticas militares e seguidor de um rígido programa de boa forma física, Mishima era a antítese do que um escritor de ficção deveria ser aos olhos do mundo - boêmio, libertário e volátil. Tanta disciplina e idealismo, provavelmente, tiraram de suas mãos, em 1968, o prêmio Nobel de Literatura que, conta-se, estava "encomendado" para ele por mais que justas motivações literárias, e que acabou destinado ao seu amigo e mentor Yasunari Kawabata, seu amigo e mentor, este muito menos ideológico em seu discurso.
Em 1970, Mishima e um grupo de jovens seguidores que ele treinou pessoalmente como uma milícia paramilitar, os Tatenokai (algo como "sociedade do escudo") invadiram uma base militar em Tóquio. Lá, depois de fazer alguns reféns e dirigir um discurso inflamado aos soldados, que o repudiaram, praticou o harakiri, penetrando seu próprio ventre com sua espada, no que foi seguido pelos demais tatenokai (não sem que antes um deles o degolasse, como parte do ritual, conforme o código samurai).
Ele mesmo homossexual, Mishima retratou com crueza relações amorosas entre seus personagens masculinos, além de nunca ter se esquivado de abordar a complicada relação entre o desejo e o "amor espiritual". Sua literatura acabou por ser o alarme de uma profunda meditação a respeito do conflito interno de seu país e dos japoneses individualmente entre as demandas criadas com a invasão ocidental subsequente ao fim da II Guerra e a preservação de um orgulho imemorial que lutava para ter onde se alicerçar.
Que Mishima não seja um modelo pessoal, ao menos para mim, em nenhuma das formas pelas quais conduziu sua vida, não diminui em nada a grandeza de seu texto. Talvez seja justamente sua visão profundamente pessimista e obcecada pelo passado que o tenha tornado tão fascinante - e também o escritor japonês mais conhecido fora do Japão, seguido apenas, de uma certa distância, por Haruki Murakami.
Tal
como indicado no início do livro e percebido ao longo da leitura, a
obra de Clarice se aproxima do Mistério. A narrativa é puro
desencadeamento de pensamentos, que não se preocupam com o externo,
mas com a riqueza interna que cada personagem tem dentro de si. Por
isso é difícil de enquadrá-la como um romance tradicional, talvez
realmente se aproxime do que V. Wolf escreveu a respeito do futuro
do romance. E é isto que é o diferencial da obra de Clarice. Ela
conseguiu atingir o que V. Wolf já antevia. A literatura de
Clarice, ao meu ver se aproxima muito da “poesia” nesse sentido.
Poderíamos
enquadrá-la, talvez, como literatura do fantástico, tal como
observamos em Jorge Luis Borges, que chegou a mencionar, certa vez,
que utilizava muito do material de seus sonhos em sua obra. Torre de
Babel poderia ser um exemplo disto, mas ele se apropriava também da
vasta cultura que tinha.
Mas
falando especificamente da Paixão segundo G.H., vejo uma certa
proximidade com Kafka em Metamorfose, quando Gregor narra seus
pensamentos ao se ver transformado em um escaravelho. É meio
grotesco, tal como a barata de Clarice, mas é apaixonante observar a
riqueza da transformação interna dos personagens.
Acredito
que Clarice realmente tenha tinha “insights” ao observar fatos
corriqueiros; isto é recorrente em sua obra, tal como a partir de
um cego mascando chiclete na rua consegue perdoar Deus no conto ou
crônica “Perdoando Deus” (o qual recomendo a leitura). O olhar
do artista é de fato apurado. Simples acontecimentos do cotidiano
se transformam em obras de arte na mão destes. Admiro esse olhar
atento e ao mesmo tempo “desligado” de Clarice.
Agora
sobre ao que de fato ocorreu naquele quarto de GH, está claro para
mim que foi a morte de uma vida pautada no externo, a partir da
imagem que os outros e ela própria tinha dela, superficial, de
extrema humanidade, no sentido de atrelamento ao “ego”, o que
gera dor, pensamentos e sentimentos, para uma percepção totalmente
diversa da “realidade”. Aquela a qual sua vida estava
anteriormente atrelada era uma ilusão1,
esta nova está muito mais próxima das sensações, do sentir, mas
um sentir muito acima dos mero cinco sentidos que o humano usa para
viver neste mundo.
Consigo
observar isto em alguns trechos do livro quando GH “ vê
através de um copo cheio de verde” ou
quando fala de “som
vibrando surdo",
bem
como quando fala da falta
de tradução por palavras das sensações vivenciadas. Acredito que
nós não somos treinados para tanto; se nunca fomos “lá"
como poderemos reconhecer aquilo que ela relata. Tal como a própria
personagem fala a respeito de traduzirmos em palavras o que vimos
para um cego que nunca viu. Ou quando acrescenta “eu
não estava mais me vendo; estava vendo... diferentes modos que
significam “ver” : um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o
outro, um apenas estar num canto e outro estar ali também; a barata
não me via com os olhos mas com o corpo (o
corpo enxerga)...
"eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo”.
No
que se refere à “humanidade” retratada, GH diz que “Havia
humanizado demais a vida” . Faz
também uma separação entre os humanos e “não
humanos, este tendo como contraponto o eterno, que representa o
eterno2,
o neutro, o não-tempo, o aqui e agora. Esse processo de
desumanização vivenciado permeia todo o romance. A narrativa é
basicamente sobre isto, principalmente quando acrescenta que a
maior
descoberta é que o mundo não é humano e de que não somos humanos(talvez
nossa essência).
Outro
ponto fundamental a respeito da descoberta desse não humanos que
somos é a entrega ao momento presente, o instante, o momento já, o
agora em sua plenitude, o tempo inchado até os limites ou como ela
própria diz de um “passado
como contínuo presente e futuro”
ou, ainda acrescenta “a
hora de viver estava sendo tão já que eu encostava a boca na
matéria da vida”,
ou
quando equipara
o presente ao nada, ao insosso, ao neutro, à face hoje de Deus e
diz que o “o
reino dos ceús já é”. Mas
para se ter consciência deste agora é preciso estar consciente,
atento3.
O
presente, este não-tempo, é visto como o que há entre os números,
as notas musicais, o espaço entre dois grãos de areia,nos
interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e
fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do
mundo é aquela que ouvimos e chamamos de silêncio
.
E o quarto, ao meu ver, poderia ser a representação desse
não-tempo quando diz que “o
quarto era a alta monotonia de uma eternidade que existia” …
“O
quarto não tinha um ponto que se pudesse chamar de seu começo, nem
um ponto que pudesse ser considerado o fim. Era de um igual que o
tornava indelimitado.”
A
reminiscência é outro aspecto na linha de pensamento da personagem,
quando fala da vida pré-humana ou volta à origem da criação e diz
que “eu
já havia vivido com os primeiros bichos da terra” … “dois
minutos depois de nascer e eu já havia perdido minhas origens” .
Ou
quando afirma que começou
a marcha desde a pré-história caminhando sob o deserto, não tendo
guia, mas perdição. Acrescenta:
não sabia fazer a pergunta, mas a resposta já veio pronta assim que
nascera; como um cego que não sabe perguntar sobre aquilo que nunca
viu, sem saber perguntar sobre o que não sabia que existe.
O
deserto é outra palavra usada constantemente no texto, comparando
este ao “neutro”. Se resgatarmos o simbolismo da Bíblia tem-se
que o
deserto significa encontrar a nós mesmos, nossa essência. Isto
é retratado na narrativa quando menciona “o
deserto tem uma umidade que é preciso encontrar de novo”...
“enlamaria a poeira até que nascesse umidade daquele deserto” ,
ou seja, a vida. Adiciona:
“eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama era lama, e nem
sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama
onde se remexiam com lentidão insuportável
as raízes de minha identidade”.
No
que se refere a equiparar o viver (= desumanização4)
ao sobrenatural, GH deixa isto bem claro quando diz “Essa
coisa sobre natural que é viver”
e relata seu encontro com o que chama de Deus ou Amor, por meio do
reconhecimento da carência inerente a todos nós (talvez essa falta
do útero, em que passamos a vinda inteira inconscientemente voltar).
Traz ainda Deus como sinônimo de natureza – tal como o Criador é
sinônimo de Natureza na cabala – ao dizer que “eu
sabia que se atravessasse os portões que estão sempre abertos
entraria no seio da natureza”,
ou
seja, entraria
na ”unidade"
a que liga todos nós e que convencionou-se chamar de “Deus”. E
complementa “Eu
talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria
diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem
aos olhos do que é Deus.”
A
personagem ainda confessa que a arte nos aproxima desse Mistério, ou
porque trabalha com o inexpressivo – visto como “demoníaco”
-ou por trazer uma calma quase sem alegria, quando trabalhava com
escultura. Via o Mistério, ainda, como imanente ao ser humano
quando, por exemplo, olhava
sua fotografia e esta lhe revelava um silêncio no sorriso; um
silêncio e um destino que a escapavam; “via O Mistério” ; ela
era imagem do que não era. Tal
como um dia veria no “outro”, que é parte dela mesma e do todo,
quando afirma “vou
te dizer que te amo”
.
Para
se viver realmente é
preciso ter coragem ao assumir a carência,
que se fosse revelada assustaria
aos outros por ter saído dos regulamentos. E
se
“der o grito de alerta de estar viva, poderá ser arrastada por ter
saído para fora do mundo possível.” .
A
revelação do que se é e do que é o mundo depende de admitirmos
essa carência. Aquilo
que eu fizer do pedido e da carência esta será a vida que terei
feito de minha vida (tenho que admitir internamente esta carência e
de que dependo Dele). Para
tanto, tem-se que
aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência (e
o pedido é ser o mundo tal como Deus; simplesmente ser tudo ao mesmo
tempo, ser a imagem e a semelhança Dele). Reafirma isto ao
acrescentar que Deus
queria que me igualasse a ele por um amor de que não sou capaz...
Ele queria que eu fosse como ele o mundo -
porque ele é tudo - ele
queria minha divindade humana - santidade
humana que não é a dos santos-
em vez de sermos o Deus - assim como os outros seres O são,
inclusive a barata que se entrega a ele e sua vida é um contínuo
infinito - queríamos vê-lo.
Acrescenta
que sua carência surgira de quando fora expulsa do paraíso e
perdera o lado inumano.
Afirma
quea
solidão
é apenas destino humano; é não precisar; não precisar deixa o
homem muito só. Mas
a carência é o nosso destino maior, falta apenas o golpe da graça
que se chama paixão.
Essa
paixão é na maior parte das vezes adiada quando
se inventa o futuro e esperança, justamente porque tinha pouca fé;
adiava a atualidade como promessa de futuro... prescindir da
esperança significa ação (é
viver o agora)...a
esperança machuca (gera
expectativas que podem ser frustradas).
Não
aguentamos essa luz sempre atual e a prometemos para depois.
A
paixão pode muitas vezes vir sob a forma de violência somos
felizes porque não há uma única forma de entrarmos em contato com
a vida, inclusive, a dor, enquanto acordados. Deus sempre esteve,
quem esteve pouco fui eu...podemos abrir caminho para ele por meio da
violência... Ele nos escolhe e nos violenta ...minha pobreza
extrema será uma grande vontade... tenho que me violentar até não
ter nada e precisar de tudo.
Pelo
o que parece, esta paixão não é afeta a todos, visto que se
sabemos pouco de Deus é que precisamos pouco dele - muitas
pessoas se bastam com sua vidas e são “felizes. A
nostalgia é sabermos que não somos o bastante - para
atingir esse grau de “alegria”que a personagem relata. Sofremos
na realidade por ter tão pouca fome de Deus - ...a partir do momento
que passamos a ter fome e querer Ele acima de tudo ficamos abaixo ou
acima da dor- ...quanto mais precisaremos mais Deus existe.
E
precisar Dele depende da
prece verdadeira ...O que é Deus estava mais no barulho neutro das
folhas ao vento (intenção)
que na minha antiga prece humana (falação,
sequência de palavras).
A menos que eu pudesse fazer a prece verdadeira, e que aos outros e
a mim mesma parecia a cabala de uma magia negra, um murmúrio neutro.
Essa prece neutra seria apenas ser.
Para
GH a desistência
é a revelação... desistir do que chamávamos de “vida”... eu
não alcançaria jamais a minha raiz, mas tinha a confiança de que
ela existia. Para
tanto, há a necessidade de despersonalizar-se -
o que me caracteriza, como sou vista pelos outros e como sou
superficialmente reconhecida em mim-visto
que a vida é vista como
missão secreta de despersonalizar-se (retirar
as grilhões do ego) e buscar o
indivisível ,
o que
só poderá ser me dado através do fracasso de minha
linguagem...inútil encurtar o caminho, pois a trajetória somos nós
mesmos.
Deus
não é bonito e não é uma conclusão O mundo não tem intenção
de beleza (nem
tampouco perfeição)...
Deus é o que existe e todos os contraditórios estão dentro de
Deus. GH
encontrou um
Deus que é indiferente , pois não é bom ou mal (é
o neutro – a linha do meio). Para ela a
vida não tem sentido apenas no humano... é muito maior...
entregar-se com confiança de pertencer ao desconhecido...estava tão
maior que não se via mais (quando
não se vê mais, acredito que se apazigua o ego e passa-se a
enxergar o outro, visto que quem
atinge a personalização atinge ao outro sem qualquer disfarce.
No
que se refere a chegar próximo do outro, GH fala de uma bondade
diferente daquela dos santos, Basta
viver, e por si mesmo isto resulta na grande bondade. Quem vive
totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria
largueza está fazendo uma dádiva. Em
outro ponto acrescenta que O
pecado renovadamente original é este: tenho que cumprir a minha lei
que ignoro – conhecer-se e conhecer ao mundo é a lei que, mesmo
inalcançável não pode ser infringida com o pecado original
perdemos a máscara com que nos cumpriríamos.
O estado de graça é inerente a todos nós.. a questão é se arriscar
a conhecer isso em si... existe permanentemente. E
conclui GH que só
dependemos de nós para realizarmos nosso destino final.
Notas:
1 Quando
fala na esperança da vida anterior como ilusão e questiona quem
garante que a vida anterior também não foi inventada. Ou,
mais a frente quando diz ”
Mas se inventei o que ontem me aconteceu – quem não me garante
que inventei toda a minha vida anterior a ontem?
2 ...de
nascer até eu morrer é o que eu me chamo de humana... eu nunca
propriamente morrerei...eu sempre estivera em vida
3“...Estava
atenta, eu estava todo atenta....- quem sabe aquela atenção era
minha própria vida”. (…) Mais que atenção ã via, era o
próprio processo de vida dentro de mim”.
Palestra de Cristiana Seixas e sarau com lançamentos de diversos autores aconteceu em 22/11/2014.
A psicóloga e escritora Cristiana Seixas ofereceu a palestra “Biblioterapia: práticas do cuidado através da literatura” e lançou seu livro “Vivências em biblioterapia”. Após a palestra, houve um sarau com lançamento coletivo de livros de vários autores de Niterói, além de Cristiana. São eles:
Carlos Rosa Moreira, com os livros “A água estava clara”, “A montanha, o mar, a cidade” e “Histórias da noite”;
Dília Gouveia, com os livros “Nas malhas do devaneio: o dia em que Fernando Pessoa nos reinventou”, “Movidos pelo desejo: Emma Bovary e Dr. Fausto – a danação da viagem”, “Do assombro e do provável: Clarice Lispector e Hamlet – o labirinto da consciência” e “Do esplendoroso caos: Dom Quixote e Nietzsche – a metamorfose do humano”;
Henrique Chaudon, com “Poemas”;
Gracinda Rosa, com “Pequenos amores”, “Cabine individual”, “Olhando para trás” e “Fui professora”;
Ilnea País de Miranda, com “Sonetos, trovas e outros devaneios” e “Eu, menina toda prosa e alguma poesia”;
Inês Drummond, com “Caminhos e descaminhos”;
Newton Novaes Barra, com “Letras rebeldes, fluidos insensatos”;
Renata Cândido, com “Sob a pele”;
Renato Carvalho, com “…haja, ainda, partículas de sol”;
Rita Magnago, com “Porque a vida pulsa” e “Travessia do verso”;
Além de vários escritores, com o livro “Clube de leitura de Icaraí – 15 anos entre livros” .
“Stephen faz o que Aristóteles não fez, e
agora segue suas definições de piedade e terror com a delimitação estrita do
termo 'trágico'. As pessoas morrem em acidentes de trânsito, mas não podemos, tal como os repórteres de jornais, chamar adequadamente essas mortes de trágicas: a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o
terror e para a piedade, pois que ambos são faces dela. Veja que uso a palavra deter. (Tanto o terror quanto a piedade, ele disse antes, detêm a mente 'na presença daquilo que é grave e constante no sofrimento humano.') Quero com isso
significar que a emoção trágica é estática. Joyce está de fato definindo o tipo de arte que faz,
arte adequada. As artes que excitam o desejo ou a repugnância são inadequadas, cinéticas: são pornográficas ou didáticas. Com a emoção estética 'estática' - que não podemos sentir em relação aos sentimentos da vida real - a mente é detida e elevada acima do desejo e da repugnância. É por isso, claro, que arte adequada
não pode ser popular, e que Ulysses e Finnegans Wake foram recebidos com
fúria e indiferença. Sua lista de mais-vendidos sempre inclui o pornográfico (excitadores do desejo) e o didático (livros que lhe dizem o que fazer). Combine o didático e o pornográfico, como em alguns manuais de sexo hindus, e você tem o melhor mais-vendido. A emoção estética não é em geral mais procurada do que o estado místico. O leitor médio não quer ficar do lado de fora da vida, vê-la de maneira distanciada e com indiferença; ele requer a ilusão de estar profundamente envolvido nela.” (p.63)
Stephen enfim sabe que a literatura é sua vocação, sacerdotal o bastante, já que sua função é a transmutação de acidentes inferiores em essência divina. Por intermédio da arte ele consegue lidar com os conteúdos baixos da vida material:
O tênue e ácido fedor de verduras podres chegou até ele vindo dos jardins de fundo de cozinha no terreno que se eleva sobre o rio. Ele sorriu ao pensar que era esta desordem, o desgoverno e a confusão da casa do pai, e a estagnação da vida vegetal, que em sua alma traria a vitória.
Se ele...
Oh!
Hã?
Não... não.
Não, não. Não acredito. Ele não faria isso, faria?
Não, não.
INTROIBO AD ALTARE DEI
Estou convencido de que muitos leitores procuram num livro não apenas a história mas também a cumplicidade do contador da história - querem um amigo com um conhecimento do mundo relativamente maior que o deles, alguém que conheça os clubes, um bom charuto, 'Niterói' ou Cingapura, que talvez tenha se divertido com uma mulher invulgar e lido livros esquisitos, mas que permaneça amigável, sorridente, tolerante mas indignado, sempre acessível mas sempre imparcial.
É mais fácil justificar a estranheza num poeta do que num romancista. O comércio do poeta é com as palavras, um comércio estranho de qualquer modo, e ele tem que as dispor de maneira estranha para chamar a atenção para o mistério da linguagem (um mistério que é uma distração no mercado). Mas o comércio do romancista é menos com as palavras do que com as pessoas, lugares e ações. A maioria dos leitores quer chegar ao conteúdo de um romance sem a mediação de um tipo de escrita que parece obstruir, rivalizando com a trama ao reivindicar atenção.
...
Se não nos pode oferecer ação, então nos dê inventário.
...
A visão geral é a seguinte: é um erro do romance ser literatura. O romance popular nunca foi literatura, e daí ser popular: a linguagem é transparente, uma janela que se abre para as situações gerais e para as personagens gerais. Os romances de Joyce são todos muito literários, a linguagem extremamente opaca.