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16 de setembro de 2016

Clube do Conto - Abismo: Mr. EPA





Comunicado  Final - Estado Máximo de Alerta

12-11-2012 09:29


Objeto celeste identificado como Eugenia encontra-se a 145.165 km da Terra. Impacto direto com o planeta é esperado ocorrer em 17 de Novembro de 2012.


São os equívocos cometidos ao perseguir nossos objetivos que nos conduzem à realização dos anseios mais profundos e autênticos. O que parece muitas vezes tolices humanas é  reflexo do que emana das estrelas, de compulsões celestes. Porém, não são os astros no céu que nos governam, mas nós mesmos que viemos um dia das estrelas e que revelamos nosso destino aos que souberem decifrar o sinal que está visível na face de cada um.

Etevaldo era um jovem oficial do sistema de vigilância espacial das Nações Unidas, dividido entre dois mundos, e nada em sua fisionomia indicava o drama interior que afligia sua vida. Se por um lado sua prática profissional exigia uma disciplina metódica e empírica, com inquestionável capacidade de raciocínio lógico, por outro lado, tinha uma percepção quase metafísica de que a aparência das pessoas revela muito mais que a ordem local de proliferação humana no planeta Terra, além da genética e dos costumes. Pressupondo que os indivíduos são forjados em matrizes extraplanetárias, acreditava que quando encontramos duas pessoas parecidas na Terra, elas, ou seus antecedentes, provavelmente teriam vindo de um mesmo planeta. “A gente sabe quando elas têm uma origem comum quando vemos uma e nos lembramos prontamente da outra”, costumava dizer aos amigos. “Vieram do mesmo planeta”, era seu bordão preferido quando se referia à semelhança entre duas pessoas, sem suspeitar da igual possibilidade de verossimilhança interna das pessoas, ainda que a admitisse tanto no plano físico como espiritual. “Podemos encontrar seres de diversos planetas andando pela rua, cada qual com seu tempo característico, às vezes a mesma pessoa em tempo diferente de sua existência, ou personagens de sonhos próprios e alheios”. Acreditava que quando as pessoas são diferentes, mas existe afinidade entre elas, significa que elas viriam do mesmo sistema estelar, explicando porque se estabelece facilmente entre elas uma certa cumplicidade, simpatia instantânea. Se sentimos atração física por alguém, isso significa que originamos de uma mesma estrela, embora não necessariamente de um mesmo planeta. Quanto maior o número de estrelas de um sistema, maior a diversidade de atrações de seus nativos. No caso dos habitantes do sistema solar, por exemplo, acreditava que se vive numa espécie de ambiguidade existencial, pela invisibilidade da presuntiva estrela que formaria um par com o Sol, o que parece uma vulnerabilidade da tese de Etevaldo ao condicionar a caracterização dos seres ao conhecimento que se tem da sua situação de fato. Etevaldo saía do impasse afirmando que a natureza do universo é dual, e que muitos fenômenos físicos, principalmente na esfera do humano, só se realizam quando são compreendidos. E assim prosseguia o pseudocientista teorizando que os seres provenientes de sistemas duplos, ternários, etc., geralmente têm muita dificuldade de se aterem a relacionamentos amorosos com apenas um parceiro, havendo uma propensão a se relacionarem com tantas pessoas quantas forem as estrelas de seu sistema de origem. Muita tolice que não valeria a pena ser contada se algo de espantoso não tivesse  ocorrido naqueles dias finais, o que passo a contar como forma de compensar o descrédito de que eram alvo suas ideias.

Karina, nativa do planeta Gliese 51, onde habitantes eram fabricados  aos pares com destinos pré-estabelecidos, sonha que sua alma gêmea existe em outro planeta, NGS 549672, e vai em busca de seu sonho para mudar um destino que lhe parecia, a princípio, irrevogável. Engajada numa operação de resgate do ser desejado, Arturo, em um planeta distante do seu, encontra resistência por parte dele para segui-la, mas rapta-o e foge para Terra.  Entre experimentos sensoriais e entreveros intelectuais ao longo da viagem interplanetária, nada mais resta entre eles ao desembarcarem na Terra. Cada qual tomou seu rumo e quis o destino que ambos viessem morar em Niterói, uma zona franca repleta de alienígenas vizinha à cidade maravilhosa.

Enquanto isso, na Terra, Rosa decide, enfim, concretizar a viagem de seus sonhos para esquecer uma antiga frustração amorosa que teve em viagem de trem a São Paulo. O destino cuida dos elementos da trama e leva Rosa à Itália onde, ao testemunhar um crime de rua, ela se depara com estranhas coincidências. De volta a sua cidade natal, Rosa encontra Arturo, alguém muito parecido com o assassino italiano. A semelhança exerce uma mórbida atração sobre Rosa, e desencadeia mudanças inesperadas em sua vida. Ao se envolver amorosamente com o misterioso personagem, Rosa acaba presa por agentes espaciais numa batida policial, e enviada equivocadamente para Gliese 51. Em vão debateu-se Rosa para provar que não era quem as autoridades pensavam que fosse. Todos os testes de identificação comprovavam que ela era uma alienígena ilegal no planeta e deveria ser extraditada.

Abandonada por Arturo ao chegar na Terra, Karina passou por muitos lugares: San Diego, El Paso, México, Quintana Roo, Maracaibo, São Luís, Salvador e, enfim... Niterói. Fez amigos por todos os lugares por onde passou enquanto mantinha em segredo sua verdadeira identidade alienígena. Viveu discretamente e ninguém suspeitou de nada. Todos a tinham por amiga, ninguém se importou em perguntar de onde ela viera. Assim foi vivendo sua vida até encontrar o que pensou, a princípio, ser Arturo. Mas não era. Seu encontro com Etevaldo a faz questionar sua história pessoal, seu sonho lhe vem a mente, seu engano original, e enfim compreende e se apaixona com a mesma intensidade da paixão que a fez cruzar 20 anos luzes do espaço sideral. Mas o destino lhe cobrou um preço elevado demais para realizar seus sonhos mais queridos.

Originando da Cabeleira de Berenice se avistava um pequeno foco do que parecia ser fragmentos de uma estrela que foi aos poucos se expandindo, em dezenas, centenas deles, como um radiante de estrelas cadentes de observação tão usual para Etevaldo. Foi amor à primeira vista. Não há muito o que dizer quando almas gêmeas se encontram. A quantidade de estrelas cadentes foi aumentando de uma forma inédita, e em pouco tempo o firmamento desabou sobre os dois.


11 de setembro de 2016

Clube do Conto - Desilusão: Rita Magnago



- Marcos, meu amor, já leu o jornal hoje?

- Acabei de acordar.

- O STF nos reconheceu, podemos ir ao cartório e sacramentar nossa união.

- Como assim?

- Agora as relações homoafetivas são aceitas no Brasil, eu estou tão feliz. Queria fazer uma festa pra celebrar nossa união. Nossas bodas de madeira estão quase chegando, né?

- Bodas de madeira, que é isso? Comemoração do pau?

- Ai seu doidinho, são cinco anos, não tem nada a ver com pau não. Para cada aniversário, os materiais são diferentes, vão dos mais frágeis aos mais fortes, conforme aumenta a resistência da relação.

- Mas você é sabida mesmo, hein. Esse negócio de comemorar, comigo, você sabe, é na cama, no chão, na parede, de costas, de frente, de quatro.

- Não fala isso que eu me excito toda e se o chefe entrar de repente me pega assim, louquinha da Silva.

- Ai porra, pra que que você me acordou então?

- Ué, pra falar da nossa união. Queria ir ao cartório contigo na hora do almoço.

- Pra que isso?

- Pra eu me sentir sua por inteiro. A gente vai poder ter um plano de saúde só, eu podia entrar como tua dependente, já que teu salário é maior, podemos declarar o Imposto de Renda juntos, ter direito à herança, tanta coisa.

- Olha aqui, na firma ninguém sabe que eu sou gay. Vamos deixar assim porque se não, não tenho chance de promoção. O pessoal aqui é muito careta.

- Mas como? Sempre que eu falava nisso, você concordava.

- Concordava porque discordar contigo é igual a discutir e eu quero é paz. Agora vou me arrumar que já está na minha hora. Mais tarde a gente conversa.

- Marcos, espera. (desligou)

Durante todo o dia Josivaldo passou pensativo, preocupado, encasquetado e ainda por cima tendo que simular alegria. Ele era assumido, em seu trabalho ser gay não era problema. Ouvia piadinhas, é certo, mas já estava habituado. Era amigo das meninas e frequentava o mesmo banheiro que elas até. O problema é que há mais de uma semana o assunto era a possibilidade de decretação dos mesmos direitos civis aos homossexuais e Josivaldo contou pra todo mundo que ele e seu marido seriam dos primeiros a celebrar a união. Já tinha até avisado da festa. Não contava com a recusa de Marcos, isso não estava nos planos. O que fazer agora?

Cada funcionário que entrava na boutique ia parabenizando Josie, como preferia ser chamada, e já cobrando a festa. Alguns clientes mais chegados também. Até que finalmente entrou o chefe, todo animado, com uma garrafa de champagne e foi logo estourando. Chamou todo mundo e anunciou:

- Atenção, pessoal. Em homenagem à nossa querida Josie, e pra mostrar que nossa loja é de vanguarda e apóia incondicionalmente os homoafetivos, a festa da primeira união gay de nossa rede é por minha conta. Vamos enviar convites aos clientes Vips, todo mundo leva sua família, amigos, não tem limite de pessoas. Cedo minha casa de Angra com prazer, aliás, com muito prazer, não é Josie? (risos, aplausos, assovios).

Josie ficou vermelha, tremeu, disse estar muito emocionada para falar, só agradeceu e ficou de confirmar a data. Estava ansiosa pela noite, tinha que convencer Marcos, custasse o que custasse.

Chegando em casa, tomou banho, perfumou-se, usou sua lingerie mais provocante, pôs vinho pra gelar, partiu queijos, colocou um CD romântico e sentou-se esperando. Deu sete, oito, nove horas, e nada do Marcos. O celular só dava fora da área de cobertura. Josie inquietou-se, bebeu o vinho todo. Quase às dez horas chegou o Marcos, todo desleixado, fedendo a cerveja e cigarro. Nem quis saber de conversar, deitou na cama, acabado. Mas Josie não podia mais esperar. Estava decidida, era hoje que o assunto tinha que ser resolvido, afinal, amanhã ela precisava confirmar a data da festa.

Lavou o rosto, passou um café e começou a despir Marcos, que nem se apercebia de nada. Tentou acordá-lo com beijos e carinhos, mas não funcionou. Apelou então para a água gelada e jogou várias gotas do alto, sobre seu rosto e o peito depilado, sem resultado. Pegou então um punhado de sal, abriu a boca de Marcos e lambuzou toda a língua.

Nossa, o cara levantou de um susto só, tossindo, cuspindo, praguejando. Josie fez o que pôde para acalmá-lo, mas ele estava muito puto, enfurecido. Foi jogando as coisas de Josie pela janela do apartamento e dizendo que naquela casa ela não entrava nunca mais, que tinha acabado, que ele já estava cheio dela há tempos, que era um sacrifício fazer o pau subir olhando para bunda caída dela, que ele estava repensando esse negócio de gay porque agora ficava excitado com a Carolina, do trabalho.

Foi a gota d´água. Com o rosto encharcado, Josie pegou a arma que guardava na terceira gaveta do armário e deu um tiro certeiro na cabeça de Marcos. Depois pegou o membro dele, ainda morno, abriu a boca o mais que pôde, enfiou tudo, pau e cano do revólver e, por um milésimo de segundo, sentiu como sêmen na sua garganta o sangue que escorria da pica, da língua, de tudo.


7 de setembro de 2016

Vida breve: Hélio Penna


Mary Zaidan Noblat

            O corpo da jovem estava de cara para o chão, no barro do subúrbio, desde as primeiras horas da madrugada. Quando os moradores começaram a circular em direção ao trabalho, o cadáver foi avistado por uma mulher, que soltou um grito de pavor, cortando a penumbra: “Meu Deus!” Ela benzeu-se e seguiu adiante.

            O dia clareou, e só então a vizinhança rodeou o corpo, que foi coberto com uma toalha de mesa. A mortalha era curta e deixava os pés à mostra. Ninguém a conhecia. “A gente ouviu uns tiros de madrugada...”. “Isso aqui tá ficando um perigo...”. “Vai ver tava devendo à boca e desovaram aqui”. “A bandidagem não perdoa”.

Crianças passavam a caminho do colégio. Queriam espiar, as mães não deixavam. “Eu não quero vocês na rua à noite! Ouviram? Me obedeçam, pelo amor de Deus!”. Puxavam os pequenos pelas mãos.

            O bar-mercearia iniciou o atendimento. Depois foi a vez da Igreja Redentores de Jesus Engrandecido levantar as portas de aço. A pastora pendurou a placa no poste próximo ao corpo: SEGUNDA FEIRA: DIA DA SALVAÇÃO E REDENÇÃO DOS PECADOS. “Isto é obra do Diabo! A salvação está em Jesus! Vamos glorificar o Senhor!”. Conclamou num grito, para que todos escutassem.

            Passavam agora estudantes do Ensino Médio. As moças se encolhiam, os rapazes iam averiguar e retornavam comentando: “É uma garota”.  “Tiro na cabeça”. “Não é da área”.  E seguiam alheios aos riscos que rondam os jovens negros da periferia.

            A polícia militar chegou ao local. O carro oficial entrou vagarosamente na rua. Um sargento ao volante, acompanhado de um cabo, que carregava o fuzil com a ponta para fora da janela. As pessoas afastaram-se. Os policiais deixaram o veículo. O cabo ficou em guarda, com seu fuzil e olhar ameaçador.  O sargento aproximou-se do corpo e levantou o manto. Depois deu ordens para não permitir a aproximação de mais ninguém.  Voltou à viatura e dirigiu-se à Delegacia de Homicídios, para o registro do caso.  

            Entardecia. A morta já não despertava tanta atenção. O que mais se comentava era a demora da perícia e a remoção do cadáver.

- Se fosse na Zona Sul, o rabecão já teria chegado.

- Já viu algum defunto largado no Leblon?

- Nunca!

            Quase anoitecendo, a perícia chegou. Reuniram-se novamente alguns moradores para verem o trabalho dos peritos e anotarem a placa dos automóveis para o jogo do bicho no dia seguinte.

            Os peritos realizaram o seu trabalho e identificaram a morta. Maria Alice da Silva era o seu nome.

...


            Quando Maria Alice se arrumava para o baile de domingo a mãe teve um mau pressentimento e pediu-lhe que desta vez ela não fosse. Mas a filha insistiu e saiu. Na rua, Maria Alice encontrou seus amigos. O grupo tinha pouco dinheiro; combinaram então que voltariam a pé.

            O baile estava animado, e o grupo divertiu-se até a meia-noite. Deixaram o local e deram início à longa caminhada.

            Retornavam alegres. Brincavam uns com os outros Riam. Falavam alto. Contavam os acontecimentos da noite.

O grupo encurtava caminho por ruas desertas e escuras, até que avistaram uma equipe de soldados da polícia militar. Um medo atávico e terrível percorreu a pele, o sangue, os ossos e os nervos dos rapazes e moças. Passaram pelos policiais no mais profundo silêncio, quando escutaram a voz de comando: “PARA! PARA! MÃO NA CABEÇA!” Mas eles correram.

                                    

Revisão: Professor Luiz Antônio de Barros

2 de setembro de 2016

Perplexidades & Similitudes, contos de Cyana Leahy

Olá queridos!

Estou postando o texto que publiquei no meu blog Mar de Variedade.

Tive a oportunidade de ler esse livro de contos da integrante do Clube de Leitura Icaraí, Cyana Leahy.

Para quem não a conhece, ela é Professora universitária, escritora, tradutora, editora e pianista; é phD em Educação Literária, Mestra em Educação, graduada e licenciada em Letras, graduada em Música, Palestrante em congressos e simpósios e autora de 18 livros. 

O prefácio desse livro foi escrito por ninguém menos do que o saudoso escritor Moacyr Scliar, autor de "A Mulher que escreveu a bíblia", entre outros.


Trata-se de uma coletânea de contos e minicontos. 
Alguns me agradaram mais que outros, como em qualquer livro de contos. A gente acaba se identificando mais com alguns específicos. 
Achei que a sua escrita passa uma verossimilhança das situações. 
Seus contos falam de amor, sexo, amizade, viagens, situações do dia a dia...
O meu conto favorito dessa coletânea é "Perplexidades e Similitudes" que dá nome a essa obra.

O Moacyr Scliar assim falou desse conto:
"No conto Perplexidades & Similitudes, o impacto e o desafio estão já na frase inicial: 'Pedro foi o primeiro caso de amor que não tive.' Este amor que podia ter sido e que não foi gera uma pungente narrativa que nos emociona e nos faz pensar. (...)"

O conto demonstra muita sensibilidade ao descrever os sentimentos de duas pessoas que se amam, mas que, por alguns percalços da vida, não podem ficar juntas.

"Naquele tempo eu não sabia reconhecer o que sentia. Negava, ignorava, não queria saber. Naquele tempo eu não queria conhecer a mulher que eu era, tanto era o medo de ser diferente. Havia um modelo a seguir, havia normas e leis e sempre fui obediente. (,,,)" (p.55)

"E quando pude então parar, juntei o quebra-cabeças em cem pedaços de indícios, juntei gestos e palavras soltas, juntei Pedro e todo aquele amor em um abraço de Natal." (p.56)

Enfim, são histórias para serem lidas e saboreadas aos poucos.

Recomendo!