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18 de agosto de 2023

Infâmia: Ana Maria Machado




Ana Maria Machado no CLIc em 1 de março para debater "Infâmia". 
Transmissão pela Web - ao vivo 
Imperdível!
Ana Maria Machado, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), desde 2003 ocupa a cadeira número 1 da ABL, e é considerada pela crítica uma das mais importantes escritoras brasileiras contemporâneas.
Em seu romance "Infâmia", Ana Maria Machado faz uma releitura de duas histórias bíblicas  na realidade brasileira atual: as infâmias sofridas pela casta Suzana e por José em terras do Egito. Ao contrário das edificantes histórias bíblicas protagonizadas pelo profeta Daniel e por José, filho de Jacó, as infâmias brasileiras acabam em tragédias: Custódio, funcionário público, um José moderno, tem sua honra destruída ao detectar indícios de corrupção na repartição onde trabalha. Cecília, a Suzana moderna, uma brasileira difamada pelo próprio marido e silenciada pelo formalismo protocolar das relações internacionais, torna-se vítima do que poderíamos chamar de um apedrejamento moral.
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Resumo da história de José: José foi vendido pelos próprios irmãos como escravo a mercadores e posteriormente adquirido por Potifar, comandante da guarda do faraó egípcio. José logo ganhou a confiança de Potifar, passando a ser responsável pelos negócios da casa deste. Foi então que José passou a sofrer o assédio da esposa do comandante, que convidou-o a deitar-se com ela. José recusa veementemente trair seu senhor pois este lhe confiara tudo em sua casa, menos a própria esposa. Continuou a mulher em suas tentativas até que, certo dia, estando sozinhos, ela mais uma vez insistiu. José fugiu, mas ela segurou-lhe a capa, que ficou em sua mão. A mulher então, gritando, fez vir a si os homens da casa e, apresentando a capa de José como prova, acusou-o de tentar levá-la para a cama. Quando Potifar chegou em sua casa, a esposa anônima repetiu-lhe a história engendrada e este encolerizou-se. José foi então enviado para a prisão.

Para conhecer a história da casta Suzana, leia postagem anterior do blog clicando aqui

Trecho da entrevista de Ana Maria Machado ao Conexão Roberto D'Ávila, exibido em 19 junho de 2011 pela TV Brasil (extraído do Especial de Ano Novo - Conexão Roberto D'Ávila - 2012):

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Opiniões dos Leitores:



WB:



Cês estão gostando de nossa leitura atual? Da Ana Maria Machado eu só havia lido Alice e Ulisses, e isso já faz tanto tempo que não lembro chongas. Estou apreciando Infâmia. O texto flui muito bem, com bastante naturalidade, não dá vontade de parar.



Um detalhe sobre a edição que eu tenho: apesar de as páginas serem meio escuras, não me parecem feitas com papel reciclado (a Rita havia dito que eram, acho), pois não vi nenhuma referência a isso nos dados sobre a publicação. Será  se a colega se equivocou ao nos dar a informação?

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Rose T

O que eu tenho a dizer é que estou amando Infâmia!!! Quase no final!!!!

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Rita:



Sobre Infâmia, eu achei que era papel reciclado sim, não só pela cor como também pela textura, e como no dia da votação eu já tinha comprado mas ainda não tinha lido, na ânsia de defender o voto falei até do cheiro, lembra? Foi mais no estilo brincadeira, mas se colar é bom, sabe como é? 

Agora, falando sério, o papel que importa do livro é a grande reflexão que ele nos leva a fazer sobre nossas atitudes, a crença absurda numa imprensa comprada e descompromissada com a verdade, as consequências de uma frase leviana para toda a vida de quem foi caluniado. Fico feliz que tenha defendido a proposta original da Cintia, uma excelente leitura.

... Nunca tinha parado para pensar nas respectivas primeiras-damas, mas talvez povoasse meu imaginário a ideia de uma vida boa, sem preocupações financeiras, um pouco de glamour. Ana Maria nos traz o outro lado, o casamento de aparências, o rigor do comportamento esperado, as regras que se aplicam ao marido e à mulher, bem diferentes, a opressão sofrida pela filha do embaixador, também ela casada com um embaixador, a depressão subsequente, a manipulação do marido, sua crueldade, a covardia de ambos, o medo da mulher, a falta de visão de alternativas, a opção derradeira. Muita sujeira por baixo do tapete.



Transpondo para outras realidades, para as que conhecemos, inclusive a nossa, o que encontramos de comum? Esse é o cerne da questão que me interessa. O livro ratifica minha opinião de que não devemos compactuar com nada que nos traga infelicidade, não esconder os problemas, discuti-los, tentar uma solução que não maltrate o coração, mas se não der, partir para outra, sem a preocupação paralisante do que os outros vão pensar. Isso é um atraso que pode ser fatal e o tempo, sabemos, não para.



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Oi Rita


Essa possibilidade de ter uma ótica não imaginada é que nos engrandece e flexibiliza, que nos minimiza a chance de cometer infâmias. Clarice Lispector viveu esta situação como esposa de diplomata e nos deixou registrado sua angústia e desamparo. 

Quanto à sujeira por baixo do tapete, a sensação é de uma terrível impotência.  O verso que traduz o sentimento é do Quintana: "há tanta coisa para denunciar, mas a quem?".   Acredito que o Papa diria a mesma coisa...

Durante a leitura do livro, fiquei lembrando também da estratégia do Amós Oz: perceber a normalidade em meio à anormalidade, escrever sobre pessoas comuns e seu cotidiano em situações limites para que a poesia e a arte prevaleçam, para não dar vitória à opressão. Como é difícil adotar este olhar que busca a luz...  

Já acabei a leitura e estou preparando o bastão da fala...

Considerei o livro um compartilhar, uma denúncia, uma  crítica feroz, um reconhecimento do quanto estamos imersos em sistemas desumanos, que incapacitam o restabelecimento da vida e a dignidade perdidas.

O considerei um convite ao olhar mais sistêmico, ao questionamento socrático. Manoel de Barros como antídoto: “só dez por cento é mentira, o resto é invenção”; “as coisas jogadas fora tem grande importância, como um homem jogado fora...”; “é preciso desver o mundo, é preciso transver o mundo.”

As duas primeiras infâmias trazidas na narrativa foram desconstruídas com perguntas simples que tornavam óbvia a farsa e estancaram a fértil criatividade para o mal.

Uma das expressões que mais me impactaram foi a da “êxtase da santidade”: aquele estado que parece autorizar cada um a julgar o outro de forma hipócrita.

Agradeço à Cinthia pela indicação, perseverança e atitude ao convidar a autora.  Seu rico caminho literário transparece na escrita do livro, por exemplo, ao citar a lucidez da cegueira na literatura... como foi bom reler uma frase do Saramago: “A única coisa mais terrível que a cegueira é ser a única pessoa que consegue ver.” (p. 156).

Gostei da ênfase à importância do contexto: “A descontextualização é uma forma de desonestidade intelectual.” (p. 65). Fez-me lembrar de um trecho do “O lobo da estepe" de Hermann Hesse (1995, Vozes, p. 26):

“Um homem da Idade Média condenaria totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e bárbaro.  Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio estilo, têm sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e crueldades, aceitam certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente suas desgraças.”

Ainda desejo destacar outros pontos preciosos encontrados no livro, o que farei em breve.

Boa tarde a todos!

Cris


Casta Susana




Um dia, pela força do calor, e quando todos se haviam recolhido para a sesta, decidiu tomar um banho na ribeira que passava no pomar. Mandou fechar os portões da propriedade e pediu às servas que fossem a casa buscar óleos e unguentos. Mas os anciãos tinham ficado dentro do jardim, e espreitavam-na escondidos no arvoredo. Quando a sentiram sozinha abordaram-na exigindo que se lhes entregasse logo ali. Como ela recusasse, os juízes ameaçaram-na de contar ao povo que ela cometera adultério. Susana desatou em grande alarido e invocou a ajuda a Deus. Quando os criados acudiram, os perversos anciãos acusaram-na de atraiçoar seu marido com um jovem. Naquele tempo a lei condenava à morte a mulher casada que cometesse adultério e dessa forma começou a ser julgada pelo tribunal. Indignado com toda a injustiça que estava a acontecer, um jovem chamado Daniel resolveu intervir em ajuda de Susana. No tribunal pediu que os acusadores fossem interrogados em separado. Como os detalhes de cada um fossem discordantes, ficou provado que estavam a mentir e que Susana estava inocente. Foi absolvida e os infames juízes, por sua vez, condenados à morte. (Resumo de Daniel, 13, 1-64) (extraído do sítio de Nuno Barreto)




Meras observações sobre "Desonra", de J.M. Coetzee*

Por William Lial


O livro do sul-africano J.M. Coetzee, Desonra (1999), escrito em linguagem direta, com um narrador em terceira pessoa, que muitas vezes se confunde com as ruminações e conjecturas do narrador, David Lurie, é um livro forte, sem grandes rodeios ou verborragias, apesar dos constantes vagares sonhadores de seu protagonista. Quanto a este, podemos dizer que sua história segue em dois estágios, duas frentes: a primeira, recheada de suas sensações perante a vida e, principalmente, perante o sexo, e os relacionamentos homem/mulher; a segunda quanto a sua estada com a filha, mais precisamente após a agressão sofrida por ambos, que muda todo o desenrolar da narrativa, causando uma guinada no texto, psicologicamente decrescente, para outro caminho. Digo decrescente porque tudo se torna mais difícil a partir daí, tanto para Lurie, o protagonista, que já passara por maus lençóis antes de lá chegar, quanto para Lucy, sua filha.

Já o livro, como um todo, divide-se em três frentes: as duas que já citamos, ambas relacionadas diretamente ao protagonista, mais uma terceira, a relação dos negros, autóctones da África do Sul, versus brancos; ou se preferir, negros, sob anos de exploração, versus brancos, exploradores – questão que somente surge na narrativa depois da chegada de Lurie à fazenda da filha.

Tendo essa separação como base para as ramificações do que se passa na narrativa, podemos seguir em frente, percorrendo os três estágios que propus.


Primeiro estágio

David Lurie é professor de pouco entusiasmo por dar aulas, mas profundamente dedicado à arte, à literatura, e sofre por não ver em seus alunos o interesse que gostaria que tivessem pelo que ensina (uma sina de muitos professores; senão de todos). É autor de alguns livros de crítica literária e se encontra imerso, no momento, na obra do poeta excêntrico e romântico Lord Byron.

Lurie é um homem que se mostra um tanto vazio, um solitário a viver de aventuras sexuais com prostitutas ou de casualidade. “No deserto da semana, a quinta-feira passou a ser um oásis de luxe et volupté” (p.8; grifo do autor), diz ele sobre o dia em que se encontra com Soraya, a prostituta. É escravo da própria lascívia e dos desejos que seriam incontroláveis, se desejasse os controlar, mas não deseja, sente-se livre para saciá-los e os sacia. As mulheres são um meio para o seu prazer e luxúria. Sobre Soraya, diz que “é perfeitamente satisfatória”, nada mais. Satisfatória apenas. É tudo, simples assim.

Como conquistador, procura sublimar a mulher, elevando a autoestima da “presa” com elogios que parecem medidos para a tentativa de seduzir: “a beleza de uma mulher não é só dela. É parte do dote que ela traz ao mundo. Ela tem o dever de repartir com os outros” (p.24), diz a uma de suas alunas quando, ao convidá-la a dormir com ele.

Contudo, uma questão bastante forte no livro, e em Lurie especificamente, é sua submissão às sensações, o que é diretamente exposto através de muitas passagens no livro, tais como: “Será que podem [os velhos] ser condenados por se agarrar até as últimas ao seu lugar no doce banquete dos sentidos?” (p. 32), pergunta-se, referindo-se aos velhos que continuam presos aos seus desejos ardentes, onde ele também se vê pertencendo em breve. Ou em: “Uma última chama dos sentidos, antes de se apagar” (p. 35), quanto a sua relação com Melanie Isaacs, a aluna em sua cama; o que vale outra observação: ele pensa isso quando perguntado por Melanie se pode passar uns dias em sua casa, ao que confirma que sim, mesmo pensando na possibilidade desse relacionamento ser um escândalo e sua última aventura, como fica claro na frase acima. O interessante é que é exatamente o que ocorre, como veremos.

Em suas observações e deduções há um grande apelo sinestésico que muitas vezes se aproxima de uma aula de estética. Em certo momento do livro, numa de suas aulas, tenta atrair a atenção de seus alunos procurando fazê-los entender e, quem sabe, gostar do que leem. O assunto é uma das obras do poeta da natureza William Wordsworth e sua poesia sensorial, tão sensorial quanto ele, Lurie. Nesse momento, as sensações são um forte atributo para a sua aula, que muito tem de estética.

A forma como apresenta a poesia em questão segue o caminho estético das sensações, do sensorial, da sinestesia e da cinestesia. Falando sobre a imaginação, busca desnudar o poema e sua mensagem. Diz ele aos alunos: “Os grandes arquétipos da mente, as ideias puras, veem-se usurpadas pelas meras imagens dos sentidos” (p. 29). E sua busca (busca do poeta inglês) é como fazer as duas, imaginação pura e realidade, coexistirem. Então segue no mundo dos sentidos versus imagem visual, concluído que em Wordsworth o equilíbrio está na imagem sensorial funcionando como um meio de “ativar a ideia que está enterrada mais fundo no solo da memória” (p. 30), nossa memória. E provoca – aqui o professor revelando toda a sua preocupação com os sentidos, toda a sua visão de mundo baseada nas sensações –: “Agora, você quer mesmo”, pergunta aos alunos, “ver a amada com a fria claridade do aparelho visual? Talvez seja melhor deixar um véu sobre o olhar, para conservar viva a forma arquetípica, divina, da amada” (p. 30). Visão conflitante em Lurie que tanto ver a mulher com quem se deita como um objeto do desejo quanto com um ser dotado de beleza divina que merece ser admirada e consumida.

Enfim, a realidade dura não o atrai, o desejo é uma forma de sensação que ele aplaca com seu consumo de sexo, com luxúria. E esse afastamento da realidade só começa a ser quebrado quando o grande evento catastrófico acontece na fazenda de sua filha. 

Outro ponto bastante interessante em Lurie é a mistura de sua vida à literatura. Enterrado no trabalho de professor e crítico literário, além de ultimamente estar se dedicando a escrever uma opera sobre os dias de Lord Byron na Itália, constantemente compara suas ideias e situações que vivencia a livros que leu, a instantes e citações como quando acaba de se deitar com a jovem aluna e observa os traços revelados na sala do ato – calcinha enrolada no chão, as calças dele nos tornozelos – e conclui: “Depois da tempestade”, ele pensa: direto das páginas de George Grosz” (p. 27).

A saber, (Georg) George Grosz (1893 – 1959) foi um pintor alemão expressionista e dadaísta. Seus quadros expõem o mundo alemão de forma torpe, com desenhos grotescos numa crítica à sociedade alemã da época, como na sua famosa obra “Os pilares da sociedade”, onde todos são retratados de forma autoritária e esnobe, um deles com a suástica na gravata. Enfim, a sua arte degenerada, como interpretavam os alemães, quando a Alemanha nazista estava no seu auge, e suas formas simplistas e torpes tem muito a ver com o ato sexual entre Lurie e a garota – ato que mais parece um estupro –, bem com a desarrumação que se encontra depois na sala: uma tempestade dos sentidos, um caos na imagem e no ambiente. Mas também, os quadros de Grosz têm muito da própria vida de Lurie.

Há ainda outros autores que enriquecem a personalidade do professor como William Wordsworth (1770 – 1850), que já citei acima, e que é um de seus preferidos. “Wordsworth é um dos meus mestres” (p. 20), diz ele à jovem Melanie, em sua casa. William Wordsworth  foi um autor inglês do romantismo, voltado para a natureza e para a relação do homem com esta, bem como ligado ao próprio tema da poesia, defendendo uma escrita mais coloquial que aproximasse o homem do texto, tema constante no longo poema em prosa autobiográfico e filosófico The prelude, ou Crescimento da mente de um poeta, obra marcante para o professor: “Desde que se conhece por gente, as harmonias do Prelude ressoam dentro dele” (p. 20), diz o narrador sobre a ligação de Lurie com o poeta inglês. Trata-se de um poema que seria uma introdução a The recluse, nunca terminado. The prelude é uma obra extremamente pessoal e reveladora sobre os detalhes da vida de Wordsworth. O trabalho é uma reflexão poética sobre o próprio sentido de sua poética e vocação, e como estas se desenvolveram ao longo de sua vida; além disso, é considerada por muitos como a maior obra-prima de Wordsworth, uma vez que incorpora o espírito do romantismo tão bem.

Outras duas proximidades ainda se dão entre Lurie e Wordsworth. A primeira: o poeta inglês também foi casado e teve amantes. A segunda: a filha de Lurie tem o mesmo nome do poema Lucy de Wordsworth. Trata-se de uma série de cinco poemas com ideais abstratos de beleza, natureza, amor, desejo e morte. Vale ressaltar que nos poemas de Lucy, o poeta se relaciona com a moça mais como um espírito da natureza do que como um ser humano; o que nos remete ao projeto musical de Lurie que, de forma invertida – nele a mulher é que se relaciona com o espírito do amado –, Tereza, viúva do poeta Byron, relaciona-se não com o homem, mas com o espírito de Byron.

E este, Lord Byron (1788 – 1824), é outro literato constante no livro. Um grande poeta britânico, e um dos mais influentes do romantismo. Sua semelhança com Lurie se dá em vários caminhos: no pessimismo romântico, que parece se voltar contra os outros e contra a sociedade, na rebeldia contra as convenções morais e religiosas, no charme cínico de seus protagonistas, como Don Juan (à semelhança do próprio Byron e um modelo para Lurie) e na vida extravagante povoada de amantes e separações.

Há também referência aos irmãos Marx, comediantes americanos filhos de imigrantes judeus, que alcançaram grande sucesso nos Estados Unidos, citados pela diretora da peça teatral na qual a aluna/amante de Lurie atua. “Um clima mais irmãos Marx” (p. 32), pede a diretora à Melanie. Donos de um bizarro senso de humor, satirizando instituições como a alta sociedade e a hipocrisia humana, os temas dos irmãos Marx, de certa forma, se enquadram na visão que o próprio Lurie tem do mundo.

Partindo para o enredo, nos primeiros momentos do livro, o professor David Lurie está envolvido com a prostituta Soraya; um enlace que dura pouco na narrativa. Logo o professor encontra a aluna Melanie Isaacs e seu foco muda de direção.

Com sua jovem aluna de 20 anos o professor sofre seu primeiro grande baque no livro: o escândalo público e acadêmico e a demissão forçada. Contudo, não havia qualquer resquício de amor entre os dois. Ela, uma moça fria e distante, mesmo no sexo, ele se saciando. Quando se deitam ela não resiste às investidas dele, mas não o deseja, desvia-se dos seus beijos e olhos, até “deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris” (p. 33); porém, o ato, mesmo que não seja estupro é “profundamente indesejado” (p. 33), sem sua participação, “Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava” (p. 33; grifo meu).

O termo “aquilo” coloca o sexo com Lurie na posição de algo abjeto para a moça ou, no mínimo, um incômodo tolerado, que ela aceitava distante, de forma impessoal, “De forma que tudo o que lhe fosse feito, fosse feito, por assim dizer, de longe” (p. 33). E tudo acontece como se a jovem estivesse em transe, num estado de sonambulismo: após o ato ela entra na banheira “de olhos fechados como uma sonâmbula” (p. 34), diz o texto.

Por esse envolvimento esdrúxulo e sem sal, sofre processo, visita de namorado que mais parece um marginal, visita do pai da moça revoltado, sofre vergonha e desonra. E acaba se refugiando na fazenda da filha, o que reconheço como seu segundo estágio.


Segundo estágio

Na casa da filha é bem recebido, contudo com reservas. Sua relação com ela não é das mais amorosas. Ele não aprova suas escolhas na vida, ex-hippie, amante de animais e da natureza vivendo uma vida “cheia de tolices new age” (p.102) como seus amigos tratadores de animais. Para ele, alguém sair da cidade e de suas possibilidades culturais para viver no campo comete um retrocesso. Apesar disso, vão vivendo, entre uma discussão e outra. Mas eis que a tragédia acontece. A casa da filha é assaltada, ela é estuprada e ele queimado.

Aqui alguns sintomas se fazem presentes, algumas alegorias que representam a realidade da África: um branco vivendo na África do Sul, dono de terras, e um negro, autóctone, que vê suas terras nas mãos dos conquistadores. Uma das partes mais ricas do livro, devido aos conflitos existências e morais, devido à angústia e aos valores históricos, aos bens e à selvageria.

Quanto a Lurie, o ocorrido o deixa “profundamente chocado. [...] Largado numa cadeira de plástico, em meio ao fedor das penas de galinha e maçãs podres, ele sente o seu interesse pelo mundo escoando de dentro dele, gota a gota” (p. 127). O fedor que se encontra ao seu redor, onde está “largado”, dá o tom de seu estado, da miséria onde se vê, “É uma carga para a qual ele não estava preparado” (p. 128).

Com o ocorrido, sua relação com a filha piora, esse acontecimento afasta ainda mais os dois. E a situação toda se torna absurda. Os estupradores são ligados ao caseiro e vizinho de Lucy, Petrus, que defende “sua gente”. Tudo parece ter sido armado para tirar Lucy da terra ou lhe aplicar uma lição. Segundo ela, sentiu a raiva, o ódio nos seus agressores enquanto a violentavam. Tudo indica que, como se costuma dizer, ela criou uma cobra em casa, e a cobra era Petrus.

Mas o absurdo não para por aí. Enquanto David Lurie tenta arrancar a filha daquele lugar e entregar um dos culpados à polícia – cunhado, ou filho, de Petrus –, Lucy não, prefere a vergonha, seguir numa vida miserável de submissão aos seus agressores como se com isso expurgasse a culpa de seus antepassados por todas as desgraças provocadas pela invasão dos brancos naquelas terras. Alegando que não quer se render nem se dar por vencida, na verdade, é exatamente isso o que faz. Entrega sua propriedade àquele que, possivelmente, tramou contra ela e se torna um inquilina em sua própria terra, acreditando que está, de alguma forma, enfrentando o problema, casando-se com o criminoso e fazendo parte da sua família: “E se... e se esse for o preço que é preciso pagar para continuar?”, ela diz, “Talvez eles entendam assim; talvez eu entenda assim também. Eles acham que eu devo alguma coisa. Se consideram cobradores de um débito, cobradores de imposto. Por que eu poderia viver aqui sem pagar? Talvez seja isso que eles dizem a si mesmos.” (p. 186; grifo do autor).

Sua culpa pelos crimes do passado, crimes que parece ter se dado conta com o choque que sofreu, não pelo estupro, mas pela ira dos estupradores, como se nela vingassem toda uma história de escravidão, esses crimes, ela toma como seus, e assim se rende, se submete numa determinação surreal.

Enquanto isso, alguma coisa muda em seu pai. A atividade de Lurie com os cachorros, ajudando a matá-los, e sua proximidade com um deles, um deficiente – além, claro, do que passou na agressão –, parecem em conflito dentro de si: “Curioso que um homem tão egoísta como ele possa estar se oferecendo para servir a cachorros mortos” (p. 172), diz o narrador reproduzindo o que se passa na cabeça de Lurie.

Mas ainda assim ele vê-se derrotado. E sua derrota pessoal, como homem, garanhão, exemplifica-se na sua relação com Bev Shaw, a tratadora de cães, que sempre achou feia e disforme. Após transarem, conclui: “Depois da carne doce e jovem de Melanie Isaacs é isto o que me resta. É com isto que tenho de me acostumar, isto e até menos que isto” (p. 177; grifo meu). No emprego do “isto” sua velha forma de ser duro e desprezível. Bev é para ele um “isto”, longe da mulher ideal, das mulheres de sua vida, um “isto” que somente um homem “em fim de carreira” como ele possuiria. Um “isto” também é a situação, a desonra de deitar-se com uma mulher indesejável.

Porém, enquanto tudo isso ocorre, ele ainda consegue viver um novo momento: a composição, um tanto esfacelada, da sua obra musical, da sua ópera, que tenta compor e que canta diariamente na sua casa, encontrada saqueada quando a ela regressa para uma curta temporada, ou no canil, ao lado dos cães e da sujeira.

Chega a se empolgar com tudo, sonha com o sucesso, mas de forma pessimista, sabendo que não passa de um exercício de esperança, de uma fuga das últimas torturas. Por meio da música parece viver em transe com o espírito de Byron e as lamentações da viúva Teresa, “Assim será daí por diante: Teresa dando voz ao seu amante, e ele, homem dentro da casa saqueada, dando voz a Teresa. O roto ajudando o rasgado, por falta de coisa melhor” (p. 214), ele diz. Na ópera, Teresa conversa com Byron, pergunta e responde, assumindo também a voz do poeta, já que se encontra morto.

Sobre o cachorro doente, com o qual Lurie se sensibiliza, e que mencionei alguns parágrafos atrás, e sobre a sala onde trabalha ajudando e dando fim aos cães, podemos traçar um paralelo, encontrar uma semelhança com o próprio David Lurie e sua vida. Se voltarmos ao que este disse antes sobre como se encontrava – largado, fraco, entregando-se a mulheres que jamais desejou –, o estado do cachorro, sua deficiência, arrastando o traseiro no chão para andar, e sua fragilidade não são tão diferentes do professor conquistador que se arrasta derrotado pela vida. E quanto à sala onde tudo ocorre, onde se tira a vida dos cães, esta se assemelha ao mundo onde Lurie sente viver. Se observarmos a sua descrição do que ocorre na sala e de como os cães partem para a morte, encontraremos o professor se vendo partir, derrotado e ludibriado ao entrar no mundo como os cães entram na sala:

O que o cachorro não entenderá nunca (nem num mês inteiro de domingos!, ele pensa), o que seu focinho nunca lhe dirá, é que se pode entrar numa sala absolutamente comum e nunca mais sair. Algo acontece naquela sala, algo não mencionável: ali a alma é arrancada do corpo; paira brevemente no ar, se torcendo e contorcendo; depois é sugada para longe e desaparece. Será incompreensível para ele essa sala que não é uma sala, mas um buraco por onde se escorre para fora da existência (p. 255)

E não é assim que ele se sente, David Lurie, com sua alma secando? “Pode levar semanas, pode levar meses até secar inteiramente, mas está secando”, seu interesse pelo mundo. “Quando isso terminar”, continua, “ele [seu corpo] será como uma casca de mosca numa teia de aranha, quebradiço ao contato, mais leve que uma casca de arroz, pronto para sair flutuando” (p. 127-128). E não ficam assim os cães depois de mortos – secos, sem alma, cascas vazias e quebradiças que, ao serem incineradas tornam-se leves como arroz e podem sair flutuando? “Seu prazer de viver expirou. [...]. O sangue da vida está abandonando seu corpo” (p. 128). Assim como expira a vida dos animais naquela sala, a dele também está seguindo o mesmo caminho. Lurie é o cão doente que logo estará vazio, quebradiço e que se transformará em pó, pronto para sair flutuando. 

Diante disso, como já parece ter resolvido e se definido, no final do livro, na última página, ele entrega o cão doente à Bev Shaw para a morte: “‘Achei que ia deixar esse para a semana que vem’ diz Bev Shaw. ‘Vai desistir dele?’ ‘É. Vou desistir.’” (p. 256), sentencia. Desiste de manter o animal vivo, de esperar, de protelar por mais uma semana o inevitável, o fim, a morte que sem dúvida virá para ambos, ele e o cão.

Mas também podemos ler a questão com outra perspectiva. Lurie não está vazio apenas porque se aproxima da morte, mas porque sua vida, como era antes, acabou, esvaziou-se. São dois motivos para a sua derrota: a morte que lhe virá e a vida que segue desvalorizada por tudo o que ocorreu, por como ele sempre a viveu. Então, por que lutar pelo cão, por que se enganar se tudo dará em nada? Ainda vivo, ele, Lurie, já está perdido, acabado, desistiu não só de não morrer e de resistir à morte, mas de viver, de lutar por algo, e assim entrega-se ao vazio do momento, ao fracasso, ao simplório de uma vida que nunca quis para si, mas que para ela se encontrou jogado (ou teria se jogado ele mesmo?) e subjugado. Ou ainda, numa terceira perspectiva, quem sabe apenas aceite os fatos da vida e siga com o que tem. Entregar o cão é entregar a si mesmo.

Apesar de tudo, nesse ínterim, vislumbramos um novo começo entre ele e a filha, mesmo com todo o absurdo e o inimaginável da situação. Afastado da fazenda de Lucy, e vivendo num apartamento alugado, faz nova visita e é recebido pela filha com um sorriso. Ao chegar à fazenda, por traz dela, a observa, fala seu nome baixinho, depois o repete mais alto e “‘Lucy endireita o corpo, se vira ligeiramente, sorri. ‘Oi’, diz. ‘Não vi você chegar’”. A filha está diferente, não mais com a cara destruída de antes, agora parece “a imagem da saúde” (p.254). E os dois parecem prontos para recomeçar, “uma nova base, um novo começo” (p. 254).

No sorriso de Lucy, na recepção, está a semente dessa esboçada possibilidade de recomeço. Mas lembro que isso, esse momento de possível esperança de um final feliz, ocorre antes da cena da entrega do cachorro deficiente, por Lurie, à morte.


Terceiro estágio

Agora vamos ao último estágio: o racismo e a colonização num país onde, apesar de ser a casa, origem dos colonizados, “os cães são criados para rosnar ao menor cheiro de um negro” (p. 131).

Com a violência sofrida, nos termos que comentamos anteriormente, Lucy se vê devedora na África, e aceita se sujeitar, submeter-se aos agressores como para realizar um equilíbrio e uma compensação, ou parte de uma, pelos horrores gravados na história e na memória dos filhos daquele país. Lucy se submete, como já comentei antes, disposta a pagar por um crime que não cometeu; a história por traz da história, uma sequência de atrocidades cometidas contra aquele povo. Suas terras foram invadidas, suas mulheres abusadas, seus filhos mortos, os brancos se apossaram sem piedade e impuseram suas regras, sua cultura, sua língua, maior representante de uma nação e de sua cultura.

O ataque não é uma simples selvageria (mas selvageria não deixa de ser), é uma demonstração de força, uma vingança, um controle, uma demarcação de território como fazem os cães. Com a agressão, forçam a branca a se render, a se submeter a eles, como antes foram forçados e submetidos. Querem o que é seu de volta ou o domínio daqueles que vivem sobre suas terras.

Dessa forma, aquele que começou na história como um simples empregado, um caseiro que cuidava dos cachorros e que se autointitulava cachorreiro, o dissimulado Petrus, torna-se senhor da terra, submetendo a mulher branca, invasora, ao seu poder, como senhoril. E talvez assim as coisas assumam o seu lugar certo na história, tudo volte para onde deveria estar, nas suas mãos, nas mãos dos filhos legítimos da terra.

Concluindo

Além desses estágios, ainda há os bichos, comparados aos homens, mas estão no texto mais como paralelos destes do que como protagonistas da história. Por isso, deixo-os apenas como os citei na comparação com Lurie.

Quanto ao título do livro, Disgrace, em inglês, quer dizer desgraça, vexame, vergonha e desonra (nome dado ao livro em português), tudo o que se passou na história. A desonra está nas mulheres que Lurie parece dominar e usar, no que sofre a sua filha, na vida que Lucy e ele passam a viver, na situação dos negros no seu próprio país, na demissão da universidade e sua exposição pública, na situação dos animais, na sua relação com sua aluna, na situação da aluna e no que ela e sua família lhe impõem, enfim, z desonra está em todo lugar.

Por fim, dentro de toda essa complexidade, o livro expõe alguns graus de realidade e vida: a luxúria dos que vivem acima das regras, ou se julgam viver, os subjulgados pela sedução ou pela força, sofridos, oprimidos que se vingam coma selvageria dos opressores e que lutam por remediar erros do passado. Diante disso, a desonra é tudo o que o ser humano é capaz de fazer e passar numa vida que não parece estar completamente sob seu controle ou que ele controla mal. Nada é de graça, e para tudo se paga o preço, mesmo que ele seja a sua honra.



*O livro que usei é uma edição especial lançada pela editora para comemorar seus 25 anos, a “Coleção Prêmio Nobel” (ver capa acima), portanto, os números das páginas que citei no texto podem ser diferentes das páginas dos livros em outra edição. Eis a minha:

COETZEE, J.M. Desonra. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


P.S.: Antes de escrever esses vagos detalhes sobre o livro de J. M. Coetzee, e mesmo antes ou depois de ler o livro, nada mais li, nenhuma crítica, resenha, ensaio, observações ou coisa que o valha, portanto, o que vai aqui, vai de primeira e única lida e observação. Li o livro de Coetzee na quarta-feita passada (7 de maio) e na quinta, ontem, escrevi este texto. Portanto, desculpem se parecer vago em alguns pontos, não tive tempo para maiores projeções. Mas espero que possa ajudar no debate de hoje. Desculpem-me também a demora em ler o livro e postá-lo (estive sem computador até esse fim de semana).