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30 de junho de 2013

Entrevista com o Concièrge do CLIc: Mr. EPA

By Rita Magnago

ENTRE LIVROS E LEITORES


Polêmico, dedicado e bem-humorado, o mediador do Clube de Leitura Icaraí, Evandro Paiva de Andrade, apelidado "concièrge" após a leitura de "A elegância do Ouriço", de Muriel Barbery, dá a sua visão sobre livros e leitores e declara ao melhor estilo bombástico: 

"Na verdade, não tenho interesse em livros"



Qual foi o livro que mais o impactou entre todos que você já leu?
Não sou leitor de apenas um livro e um autor. Livros são alimentos para mim e os autores são criadores dessas poções mágicas transformadoras que são os bons textos. Bons autores são aqueles que sabem a fórmula para criar esses alimentos capazes de impactar nossa vida.

Descontraído, exercendo a arte
da dramaturgia
Como você considera cada livro que lê e de que forma eles mexem com você?
Cada livro que leio é um fragmento do único livro que vou construindo no conjunto de minhas leituras. Daí a importância de um clube de leitura para mim. Vou encontrando pedaços de mim em cada livro e reverberando sua compreensão através das mentes de outros leitores.

Sou um outro observado por mim mesmo a cada novo livro que leio. Se um livro não me transforma, para quê ele serve? Entretenimento? Tem coisa melhor do que ler para entreter-se, por exemplo, experimentar na prática o que um bom livro suscitou, de novo, em você?

Você costuma reler livros?
Faço pouca releitura, talvez porque ainda não chegou a hora de revisitar impressões passadas. Ainda estou colhendo as novidades existentes, tem tanta coisa pra ler antes de completar o quadro daquilo que considero que vai direcionar a minha busca das leituras feitas.

Acho que quando empreender essa grande revisita do que aprendi nas leituras realizadas, o impacto será muito maior, porque estarei reencontrando pedras preciosas que saberei atribuir o devido valor que elas têm no conjunto da obra. Não vejo a hora de recomeçar!


Você acha que algum dia considerará que esse livro formado de tantos livros estará concluído? Como será então?
Ainda não sei exatamente o que será e o que não será importante para mim, leitor, a partir dessa nova perspectiva que terei quando o único livro que leio for dado como encerrado, nem se e quando isso ocorrerá, o que não quer dizer que não lerei mais nada novo a partir daí, mas certamente priorizarei as releituras.

Sobre os livros lidos pelo CLIc, costumam te impactar?

Vários livros que li no CLIc me impactaram enormemente, incluindo aí leituras bem recentes, para contrariar quem anda dizendo que não lemos mais bons livros no nosso clube de leitura. É aquela velha história: bom pra uns, ruim pra outros, e vice-versa. Aliás, estive em reuniões memoráveis no Clube! As melhores, para mim, foram aquelas que as opiniões dos participantes divergiram. As piores foram aquelas em que todos concordavam que o livro era maravilhoso e que, de certo modo, arrefeceu o potencial criativo do texto.

O que um livro precisa ter para ser determinante em sua vida?
Ele precisa arrebatar-me, acossar-me, indignar-me de forma positiva. Sou um devorador de ficção, uma máquina de transformar ficção em consciência do mundo em que vivo. O dia a dia é um poderoso dínamo catalisador dessa transformação.

Qual o seu maior objetivo no Clube de Leitura?
Não estou no Clube para ler os livros de minha preferência, mas para ler os livros que meus companheiros de leitura querem ler, porque creio ser essa a melhor maneira de aprender quem são essas pessoas que se tornaram minhas amigas de forma gratuita, que eu provavelmente não teria conhecido se não fosse a partir do interesse por literatura.

Na verdade, não tenho interesse em livros. Meu interesse é pelas pessoas, pela vida e pelo mundo em que vivo. Os livros são a melhor maneira de remexer tudo isso. O mais importante é a leitura. Por isso somos um clube de leitura, e não um clube de livros. O mais adequado, na minha opinião, seria “clube de leitores”, mas isso poderia ser mal interpretado nesses tempos de redes sociais acachapantes.   



Você está convidado a continuar a entrevista através do campo "Comentários" deste post. 
Aproveite. Mr. EPA está na berlinda.

29 de junho de 2013

Minicontos 100c

  1. Os pesadelos começaram depois que o despertador tocou. (Carlos Antonholi)
  2. Sem palavras: "Não tenho mais nada a dizer", repetia incessantemente. (Evandro)

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Minicontos 200c

  1. Ao se deitar, ouvindo os sinos da matriz que repicavam cruelmente, pensou que seria uma pena se o sangue respingasse sobre o vestido branco, mas ele precisava saber que ela falara sério. (Edmar Monteiro Filho)


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28 de junho de 2013

A Aposta, conto de Anton Tchécov

Tatiana Belink
No último 15 de junho, faleceu em São Paulo, aos 94 anos, a escritora brasileira, de origem russa, Tatiana Belinky. Autora de peças e mais de 250 livros com histórias ditas "infanto-juvenis", adaptou, entre outras obras, a primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, para a TV - ainda na década de 60, na antiga TV Tupi –, realizada em parceria com seu marido, o teatrólogo, ator e psiquiatra Júlio Gouveia.
Poliglota, ela foi também uma excelente tradutora. Abaixo, o conto "A Aposta", de Anton Tchécov, traduzido por Tatiana Belink. 




 

ANTON TCHÉCOV

I


Era uma noite escura de outono. O velho banqueiro media a passadas o seu gabinete e recordava como, quinze anos atrás, no outono, dera uma festa. Nessa reunião estivera muita gente inteligente e houvera muitas conversas interessantes. Entre outros assuntos, falara-se da pena de morte. Os convidados, entre os quais havia não poucos sábios e jornalistas, na sua maioria tinham uma atitude negativa para com a pena de morte. Achavam esse método de punição obsoleto, impróprio para os Estados cristãos e imoral. A opinião de alguns deles era que a pena de morte deveria ser definitivamente abolida e substituída pela prisão perpétua.

- Não estou de acordo - disse o banqueiro, dono da casa. - Nunca experimentei nem a pena de morte nem a prisão perpétua, mas, se é possível julgar a priori, a minha opinião é que a pena de morte é mais moral e mais humana do que a prisão. A execução mata duma vez, ao passo que a prisão perpétua mata aos poucos. Que carrasco é, pois, mais humano - aquele que mata de repente ou o que arranca a vida no decorrer de muitos anos?

- Tanto uma coisa como outra são igualmente imorais - observou um dos convidados -, porque ambas têm a mesma finalidade - tirar a vida. O Estado não é Deus. Não tem o direito de tirar aquilo que não pode devolver, se quiser.

Entre os convidados estava um jurista, jovem de uns vinte e cinco anos. Quando lhe perguntaram a sua opinião, ele disse:

- Tanto a pena de morte como a prisão perpétua são igualmente imorais, mas, se me oferecessem a escolha entre a morte e a prisão perpétua, eu certamente escolheria a segunda. Viver de qualquer maneira é melhor do que não viver de todo.

Começou uma discussão animada. O banqueiro, que era então mais jovem e mais nervoso, súbito ficou fora de si, deu um murro na mesa e gritou para o jovem advogado:

- Não é verdade! Aposto dois milhões que o senhor não aguentaria numa cadeia nem cinco anos. - Se o senhor fala sério - respondeu-lhe o advogado -, eu aposto que posso aguentar a prisão não por cinco, mas por quinze anos!

- Quinze? Aceito! - gritou o banqueiro. - Senhores, eu ponho na mesa dois milhões!

- De acordo! O senhor põe dois milhões, e eu, a minha liberdade! - disse o jurista.

E essa aposta selvagem e insensata realizou-se! O banqueiro, que naquele tempo não tinha conta dos seus milhões, mimado e leviano, estava encantado com a aposta. Durante a ceia, ele pilheriava com o jurista e dizia:

- Caia em si, jovem, enquanto ainda não é tarde. Para mim, dois milhões são uma ninharia, mas o senhor se arrisca a perder três ou quatro dos melhores anos de sua vida. Eu digo três ou quatro, porque o senhor não aguentará mais do que isso. Não esqueça tampouco, infeliz, que a prisão voluntária é muito mais penosa do que a compulsória. O pensamento de que, a cada momento, o senhor pode sair para a liberdade vai lhe envenenar toda a existência na prisão. Eu tenho pena do senhor!

E, agora, o banqueiro, andando dum lado para outro, recordava tudo isso e se perguntava:

- Para que foi essa aposta? Qual era o proveito disso? O jurista perdeu quinze anos de sua vida, e eu jogo fora dois milhões? Será que isso poderá provar aos outros que a pena de morte é pior ou melhor que a prisão perpétua? Não e não - é tolice e insensatez. De minha parte, isso foi um capricho de homem enfastiado, e, da parte do jurista, nada mais que avidez de dinheiro...

E ele continuou recordando o que aconteceu depois da famosa noitada. Ficou resolvido que o advogado passaria a sua reclusão, sob a mais severa vigilância, numa das alas construídas no jardim do banqueiro. Combinou-se que, no decorrer de quinze anos, ele ficaria privado do direito de atravessar a soleira da sua ala, de ver gente, ouvir vozes humanas e receber cartas e jornais. Permitiu-se que ele possuísse um instrumento musical, lesse livros, escrevesse cartas, tomasse vinho e fumasse. Pelo trato, suas comunicações com o mundo exterior poderiam ser apenas mudas, através de uma janelinha especialmente construída para esse fim. Tudo aquilo de que precisasse, livros, notas musicais, vinho e o resto, ele receberia, por intermédio de bilhetes, em qualquer quantidade, mas somente pela janelinha. O contrato previa todos os detalhes e minúcias, que faziam a reclusão rigorosamente solitária, e obrigava o advogado à permanência de quinze anos exatos, das doze horas de 14 de novembro de 1870 até às doze horas de 14 de novembro de 1885. A menor tentativa, da parte do jurista, de quebrar qualquer das condições, ainda que dois minutos antes do término do prazo, libertava o banqueiro da obrigação de pagar-lhe os dois milhões.

Durante o primeiro ano o jurista, conforme se podia julgar pelos seus lacônicos bilhetes, sofreu muito da solidão e do tédio. Da sua ala, constantemente, dia e noite, ouviam-se os sons do piano. Ele recusou o vinho e o tabaco. O vinho, escrevia ele, excita os desejos, e os desejos são os primeiros inimigos do prisioneiro; além disso, não existe nada mais aborrecido do que tomar bom vinho sem ver ninguém. Quanto ao tabaco, poluía o ar do seu quarto. No primeiro ano, mandaram-lhe livros, de preferência de conteúdo leve: romances com complicadas intrigas amorosas, contos policiais e fantásticos, comédias, etc.

No segundo ano, a música silenciou na ala, e o jurista, nos seus bilhetes, exigia somente os clássicos. No quinto ano, novamente ouviu-se música, e o prisioneiro pediu vinho. Aqueles que o observavam através da janelinha diziam que todo esse ano ele só comia, bebia e ficava deitado na cama, bocejava muito e falava consigo mesmo, em tom irado. Não lia livros. Às vezes, durante a noite, ele se punha a escrever, escrevia longamente e, pela madrugada, rasgava em pedaços tudo o que escrevera. Mais de uma vez ouviram-no chorar.

No sexto ano de reclusão, o prisioneiro dedicou-se com afinco ao estudo de línguas, filosofia e história. Ele se entregou a esses estudos com tamanha avidez, que o banqueiro mal tinha tempo de fazer vir os livros necessários. No decorrer de quatro anos, por exigência do prisioneiro, foram importados cerca de seiscentos volumes. No período dessa paixão, o banqueiro recebeu, entre outras, esta carta:

"Meu caro carcereiro! Escrevo-lhe estas linhas em seis idiomas. Mostre-as a pessoas competentes, para que as leiam. Se não encontrarem nem um erro, peço-lhe encarecidamente que mande dar um tiro de espingarda no jardim. Esse tiro me informará que os meus esforços não foram vãos. Os gênios de todos os séculos e países falam línguas diversas, mas em todos eles arde a mesma chama. Oh, se soubesse que inefável felicidade experimenta hoje a minha alma porque agora eu os posso compreender!" O desejo do prisioneiro foi atendido. O banqueiro mandou dar dois tiros de espingarda no jardim.

Mais tarde, depois do décimo ano, o jurista ficou sentado, imóvel, à mesa, e lia somente o Evangelho. Parecia estranho ao banqueiro que um homem que assimilara em quatro anos seiscentos tomos eruditos gastasse um ano inteiro na leitura de um único livro, de fácil compreensão e pouca espessura. Depois do Evangelho, vieram a história das religiões e a teologia.

Nos últimos dois anos de reclusão, o encarcerado leu em quantidade enorme, sem nenhum critério. Ora ele se ocupava de ciências naturais, ora exigia Byron ou Shakespeare. Havia bilhetes seus em que pedia que lhe mandassem simultaneamente uma obra de química, um compêndio de medicina, um romance e um tratado de filosofia ou de teologia. Suas leituras semelhavam algo como se ele, boiando no mar entre os destroços de um navio naufragado e querendo salvar sua vida, se agarrasse convulsivamente ora a um destroço, ora a outro!

II

O velho banqueiro relembrava tudo isso e pensava:

"Amanhã às doze horas ele recuperará a liberdade. Pelo contrato, eu terei de lhe pagar dois milhões. Se eu pagar, tudo estará perdido - eu estarei definitivamente arruinado".

Quinze anos atrás ele não tinha conta dos seus milhões, mas agora tinha medo de se perguntar o que tinha mais: dinheiro ou dívidas? Jogadas imprudentes na Bolsa, especulações arriscadas e a impulsividade, da qual ele não conseguira se libertar nem mesmo na velhice, pouco a pouco minaram os seus negócios, e o ricaço orgulhoso, destemido e autossuficiente transformou-se num banqueiro de categoria mediana, que tremia a cada alta ou baixa das ações.

- Maldita aposta - balbuciava o velho, apertando a cabeça, em desespero. Por que esse homem não morreu? Ainda está com quarenta anos apenas. Ele me tirará os últimos recursos, casar-se-á, gozará a vida, jogará na Bolsa, e eu, como um mendigo, ficarei a olhá-lo com inveja e a ouvir dele, todos os dias, a mesma frase: "Eu lhe devo toda a felicidade da minha vida, permita-me que o ajude!" Não, isso é demais! A minha única salvação da bancarrota e da vergonha é a morte desse homem!

Soaram as três horas. O banqueiro ficou atento: na casa todos dormiam e só se ouvia, atrás das janelas, o farfalhar das árvores friorentas. Procurando não fazer nenhum ruído, ele tirou do cofre-forte a chave da porta que não fora aberta durante quinze anos, vestiu o capote e saiu da casa.

O jardim estava escuro e frio. Chovia. Um vento áspero e gelado uivava no jardim e não dava sossego às árvores. O banqueiro forçava a vista, mas não conseguia distinguir nem a terra, nem as alvas estátuas, nem a ala, nem as árvores. Aproximando-se do lugar onde ficava a ala, ele chamou o guarda por duas vezes. Não houve resposta. Decerto, o guarda se abrigara do mau tempo e agora dormia em algum canto da cozinha ou do caramanchão.

"Se eu tiver coragem suficiente para executar o meu plano", pensou o velho, "as primeiras suspeitas recairão sobre o guarda."

Ele encontrou, tateando no escuro, os degraus e a porta, e entrou no vestíbulo da ala; depois, tateando sempre, entrou no pequeno corredor e acendeu um fósforo. Ali não se via vivalma. Havia uma cama sem colchão e, num canto, a mancha escura de uma estufa de ferro. Os lacres da porta que dava para o quarto do prisioneiro estavam intactos.

Quando o fósforo se apagou, o velho, tremendo de emoção, espiou pela janelinha.

No quarto do prisioneiro ardia a chama baça de uma vela. Ele mesmo estava sentado diante da mesa. Só se viam as suas costas, os cabelos e as mãos. Sobre a mesa, nas duas poltronas e no tapete junto à mesa, espalhavam-se livros abertos.

Cinco minutos transcorreram sem que o prisioneiro se mexesse uma só vez... Quinze anos de reclusão tinham-no ensinado a permanecer perfeitamente imóvel. O banqueiro bateu na janelinha, e o prisioneiro não respondeu às batidas com um movimento que fosse. Então o banqueiro arrancou, com cuidado, os lacres da porta e introduziu a chave no buraco da fechadura. A fechadura enferrujada emitiu um som rouco e a porta rangeu. O banqueiro esperava que imediatamente se ouvisse uma interjeição de espanto e passos, mas transcorreram uns três minutos e atrás da porta tudo continuava silencioso como antes. Ele decidiu-se a penetrar no quarto.

Diante da mesa estava sentado um homem que não se parecia com os homens comuns. Era um esqueleto coberto de pele, com longos cachos femininos e barba hirsuta. Sua tez era amarela, com matizes terrosos, as faces encovadas, as costas longas e estreitas, e a mão que sustentava a cabeça descabelada era tão fina e magra que dava arrepios olhar para ela. Nos seus cabelos já brilhavam fios de prata e, olhando o seu rosto encovado de velho, ninguém acreditaria que ele tinha apenas quarenta anos. Ele dormia... Diante da sua cabeça inclinada, na mesa, estava uma folha de papel, na qual estava escrita alguma coisa em letra miúda.

"Homem lamentável!", pensou o banqueiro. "Dorme e, decerto, sonha com os seus milhões! E, no entanto, basta que eu segure esse semimorto, atire-o na cama, abafe-o de leve com o travesseiro, e a mais minuciosa diligência policial não encontrará sinal algum de morte violenta. Mas leiamos primeiro o que ele escreveu aí..."

O banqueiro apanhou o papel da mesa e leu o seguinte:

"Amanhã às doze horas eu receberei a liberdade e o direito de comunicação com os meus semelhantes. Mas, antes de deixar este quarto e rever o sol, julgo necessário dizer-vos algumas palavras. Em sã consciência e diante de Deus, que me vê, eu vos declaro que desprezo a liberdade, a vida, a saúde, e tudo aquilo que nos vossos livros é chamado de bens da vida.

"Durante quinze anos estudei atentamente a vida terrena. É verdade que eu não via a terra e os homens, mas, nos vossos livros, sorvia vinhos aromáticos, entoava canções, caçava nos bosques cervos e porcos selvagens, amava mulheres... Beldades, leves como nuvens, criadas pela magia dos vossos poetas geniais, visitavam-me de noite e me sussurravam contos encantados que embriagavam a minha mente. Nos vossos livros, eu escalava cumes do Elbruz e do monte Branco e via de lá como nascia o sol de madrugada e, ao anoitecer, como ele inundava o firmamento, o oceano e os cumes das montanhas de ouro rubro; eu via de lá os relâmpagos fendendo as nuvens por cima da minha cabeça; eu via os campos verdejantes, os rios, os lagos, as cidades, ouvia o canto das sereias e a música das flautas dos pastores, sentia as asas de formosos demônios que vinham conversar comigo a respeito de Deus... Nos vossos livros, eu mergulhava em abismos sem fundo, fazia milagres, matava, queimava cidades, pregava novas religiões, conquistava reinos inteiros...

"Os vossos livros deram-me sabedoria. Tudo aquilo que a infatigável mente humana criou durante séculos está comprimido no meu cérebro num pequeno novelo. Eu sei que sou mais sábio do que todos vós. E eu desprezo os vossos livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face da terra, assim como às ratazanas, e a vossa descendência, a vossa história, a imortalidade dos vossos heróis serão congelados ou queimados junto com o globo terrestre.

"Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade e a deformidade pela beleza. Vós ficaríeis admirados se, em consequência de circunstâncias imprevistas, nascessem, nas macieiras e laranjeiras, em vez de maçãs e laranjas, sapos e lagartixas, ou se as rosas de repente começassem a exalar odores de cavalo suado. Assim eu me admiro de vós, que trocastes o céu pela terra. Não vos quero compreender.

"Para demonstrar-vos na prática o meu desprezo para com tudo o que é a vossa vida, renuncio aos dois milhões com os quais sonhei em outros tempos como se fossem o paraíso que hoje eu desdenho. Para me privar do direito a eles, sairei daqui cinco horas antes do prazo combinado e, desse modo, quebrarei o trato..."

Tendo lido isso, o banqueiro repôs a folha na mesa, beijou a cabeça do estranho homem e, chorando, saiu da ala. Nunca antes, em tempo algum, mesmo após uma perda pesada na Bolsa, ele sentira por si mesmo um desprezo tamanho, como naquele momento. Chegando em casa, ele se deitou na cama, mas a emoção e as lágrimas não o deixaram adormecer...

No dia seguinte de manhã os guardas vieram correndo, pálidos, e lhe comunicaram que tinham visto o homem que vivia na ala se esgueirar pela janela para o jardim, dirigir-se para o portão e desaparecer. O banqueiro dirigiu-se imediatamente para a ala e, diante dos criados, constatou a fuga do seu prisioneiro. Para não dar azo a comentários supérfluos, tirou da mesa o papel com a renúncia e, voltando para o seu gabinete, trancou-o no cofre-forte.

27 de junho de 2013

Estrela de Junho: Chico Lopes

(Para Edna Rezende, em Brasília)


Um quê de fumaça de fogueira de Inverno, de algumas primeiras bombinhas e de fósforos de cor girados sob a lua, um quê de verde a queimar, de mãos esfregadas junto a um fogão de lenha, traz a lembrança precisa de junho com suas cinco letras gravadas em minhas veias.

Longe, ouvia-se alguma festa, pedaços de uma música de sanfona que insistia em aquecer o ar, em convocar para a animação e eu, embora estivesse tão apartado, punha-me a imaginar pernas femininas, sapatos bem engraxados de homens jovens no arrasta-pé, xícaras de anisete, de quentão, de leite com chocolate, batata-doce no braseiro, amendoim torrado, o espocar dos rojões de lágrimas no céu muito aberto e leve. Não houvesse as lágrimas verdes, azuis, vermelhas, já ficaria feliz pela total visibilidade das estrelas, parecendo mais próximas, de se colher. 

Junho e sua lenha ardente, junho e seus arrepios. Por aqueles meses, a cidade ficava mais grata, mais imprevista, manhãs de azul-celeste e ouro, de farra aguda de sanhaços no mamoeiro, de conversas sobre gelo nas baixadas e pão torrado, sobre o qual se esfregara muito alho, na mesa. Junto ao fogão de lenha de vermelhão, minha mãe era pouco mais que uma presença a significar calor, vigilante, ali por perto, a torrar os pães. Nas noites, eram as festas – indiferente ao rigor do calendário, todo dia era prenúncio de dia santo, bombinhas “peidos de velha”, estalos de salão estourando nas calçadas, próximo aos postes, onde meninos se juntavam. Havia uma antecipação nervosa, qualquer coisa alegre, a vontade de olhar para o céu, o negrume quebrado por alguns daqueles cachos esporádicos, que espocavam com um ruído que ecoava docemente. Eu ia para a rua, feliz só de olhar, braços bem abertos.

Minha mãe, sempre sobrecarregada de tarefas, dizia que era preciso fazer mais compras, razão pela qual eu era despachado para a venda dos Floriano levando uma folha na qual anotara, com minha letra, o que era necessário para a despensa – o trivial do arroz, do macarrão, latas de massa de tomate, garrafas de vinagre, pacotes de farinha, sardinhas na salmoura das latas enormes que ficavam à entrada do armazém. O papel, eu o amarfanhava no bolso, apalpando-o sem parar para tê-lo o tempo todo confirmado, tal o zelo em não perdê-lo, tal o apego que sentia à minha incumbência. O vento, o ventinho benfazejo, esse frio regenerador - “mata tudo quanto é bicho que tem no ar, época de saúde”, dizia meu pai – e a fome de avançar...

Eu fechava mais o paletó, desejava que minhas calças fossem mais grossas, mas as roupas eram feitas para o calor, senhor da maior parte do ano. Tão bom andar, andar, simplesmente andar muito, uma alegria de pernas, sem raciocínio nenhum, a fumaça que me vinha da boca, a idéia de ir para perto do córrego da Farinha, espiar os campinhos, onde podia haver sinais de geada.

Bem eu queria que houvesse Inverno como o das folhinhas, onde paisagens do Canadá ou de algum outro país setentrional se revelavam inverossímeis de lindas, as árvores em vermelho, laranja e amarelo, as montanhas muito azuis, espantosas para um filho dos planos (a cidade e os campos em volta não tinham sequer uma colina), ou que houvesse neve como no quadro que da rua se via, enorme, enfeitando a sala da casa da professora, dona Lídia.

Parava para olhar, despudorado, e uma vez ela saíra à janela, me surpreendera; vendo que eu admirava o óleo, sorrira, fizera-me entrar, dera-me um pedaço de bolo de laranja. Quem o pintara? Seu filho, o único, havia muitos anos metido em algum trabalho muito respeitável e lucrativo – pintura não lhe daria camisa – na capital. Copiara de quê aquela cabana de madeira, o teto branco, ladeada por árvores secas, o céu furta-cor, o chão branco, um riacho com blocos de gelo, cena toda européia? De uma folhinha, dizia ela. “Claro”, eu pensava, satisfeito. Ele fizera escolinha de pintura, aprendera a quadricular para ampliar a reprodução que quisesse na tela, sabia preparar seu branco com alvaiade e óleo de linhaça, pintara uns cinco quadros, era bom naquilo, não era? – que eu não tivesse dúvida, ele tinha esse talento, além de muitos outros. Era elogiar o quadro outra vez e ganhar outro pedaço de bolo. A cada pedaço dado, dona Lídia suspirava pelo filho ausente ou pelo seu talento de pintor que fora esquecido em favor da realidade, não sei.

O frio, sem glória setentrional, mas azulando o céu num cerúleo de doer e trazendo um sol de uma tepidez ímpar, percorria as ruas de escassa gente – algum incerto vendedor de verdura e legumes com sua carriola, empregados do comércio - que iam sendo engolidas por meus pés. O armazém, depois de uns poucos quarteirões de centro, já podia ser avistado. Esfregava as mãos. Proibido até imaginar isso em casa, mas ali pelos cantos do balcão, entre as latas de sardinha, de óleo de cozinha, de querosene, reunidos, uns homens que falavam de pesca, caça e lavoura sempre podiam me oferecer um pouco de cachaça. “Toma jeito, Antenor, não vai me fazer o filho do Romão beber. Ainda é moleque, não tem dezesseis anos, repara só...”, dizia um dos Floriano. “Ele já pode, já usa calça comprida, e esta aqui vai esquentar, esta é de arrebentar. Tenho certeza que ele está querendo...Olha só, ô, rapaz, vai devagar com isso, não me engole tudo de uma vez...” Eu terminava, batia no peito, o enorme calor ardente, o forte que me sentia, pedir mais, mas não, não convinha exagerar. Eles riam.

O indicador de Antenor, apontando para alguém que passava – um silêncio malicioso se fez entre os homens, e eu, meio zonzo, olhei: a mulher de marrom, equilibrando-se num andar nervoso, esforçando-se por não parecer embaraçada com esses olhares de homens reunidos - quem pode com essas fomes, esses cicios? -, com o amor-próprio obrigando-a a pisar mais firme, a nada ou ninguém olhar. Antenor estalou a língua, e, parecendo nervoso, meio rindo, pediu que o vendedor lhe cortasse um pouco mais de salame, cujas fatias espetava ávida e infalivelmente com um palito. Um dos outros falou: “Por uma dessas eu bem que fazia uma besteira...”

Mas, não era mulher senão para se olhar: uma certa Ana, moradora de um trecho urbano de residências mais ricas. O que se dela se falou ali podia ser juntado a outras tantas conversas entre meus pais, num mosaico cujas partes mal encaixadas oscilavam em minha cabeça. Era obrigado a balançá-la, incerto, quando ela passava.

Tudo indicava que podia haver um “n” a mais nesse Ana que se difundira, uma simplificação para os simples locais, porque era uma estrangeira. Fora trazida de alguma viagem a Europa feita pelo filho sem-juízo de Ismênia França, aquele Lúcio de quem a mãe tanto falava, exaltada ou desesperadamente.

Essas coisas não tinham como não ficar sabidas numa cidade como aquela, até porque as empregadas, muito boas ouvintes ou abertamente confidentes de certas patroas, faziam com que todos soubessem, e uma delas era particularmente amiga nossa, morara conosco por alguns anos, a pedido do pai, compadre do meu, que a queria longe da roça. Pois, essa Delfina bem dissera à minha mãe o que, em tradução de uma conversa à mesa do café, acompanhada por silêncios ou escassos grunhidos de meu pai, relatava: Lúcio, já um tanto famoso em São Paulo pela autoria e desempenho do papel principal de umas peças de teatro, andara em longas viagens (dona Ismênia mostrara postais europeus à atenta e encantada Delfina) e conhecera a mulher numa cidade – as montanhas lá atrás, as casas de sonho que eu já vira parecidas em revista a falar de Alemanha ou Holanda – cujo nome era impossível reproduzir.

Quando a trouxera, ao menos tecnicamente já estavam casados – e para nada valeu dona Ismênia insistir, descabelar-se para que uma cerimônia oficial, de igreja, fosse feita ali. Ele não daria satisfação a ninguém, odiava igreja e padre e quanto à mulher, falando com esforço algo que supunha ser Português, mas tinha mais de Espanhol, só fazia sorrir e jamais discordar de seu homem. Dona Ismênia não podia com o filho, com suas idéias, que a deixavam dividida entre a admiração e um orgulho que gostaria que fosse compartilhado pelas pessoas do lugar, não fosse o sujeito uma fonte de consternação e suspeitas.

Ele saíra da cidade aos dezessete anos, formara-se longe, e só aparecia de vez em quando, sabia-se, para satisfazer a cartas e telefonemas que deviam ser insistentes, pois nada o compatibilizava com o lugar. Portanto, ao aparecer com a mulher e aparentando disposição a morar ali por uns tempos, ela acreditou que, finalmente, haveria uma acomodação, um rumo naquela vida a seu ver indignamente cigana; não houvesse enviuvado cedo, tivesse tido outro filho – Lúcio era o único -, não cederia tanto àquele maluco.

Tanta pena minha mãe sentia dessa viúva, oh, ingratidões de filho, essa vida em pecado, essa estrangeira, que diabos ele fazia, alguém lá podia ganhar a vida com teatro? vagabundo, claro que a mãe o sustentava e, aliás, o sustentara por tempo demais, era uma sangria o que aquela vida de teatrólogo metropolitano e viajante desvairado devia fazer no dinheiro que ela tinha, que não era pouco, mas por quanto tempo suportaria isso? Viúva, a família de muitos irmãos, muitas fazendas, muito gado, gente com uma tradição de trabalho duro, nada de prodigalidades e dissipações, de onde lhe saíra aquele Lúcio? Parecido ao pai, que tivera um derrame de tanto trabalhar em certa madrugada ao mexer em contas, na certa ele não era.

Pois, esse casamento – porque se convencionara que era um, ninguém daria à dona Ismênia o desgosto de lhe dizer diretamente que era uma “amigação” – não era garantia de sedentarismo para o esquivo Lúcio: um ano depois, já viajava muito – mais visto no ônibus de ida e volta para São Paulo que nas ruas da cidade – e deixava sua Ana sozinha semanas, meses a fio. Viam-na sair, viam-na em compras no comércio, vagando como quem vagasse por algum porto estrangeiro, à espera de um determinado navio, entrando e saindo de estabelecimentos com o sotaque que provocava risadas e com seus erros patéticos de Português. Ao soltar palavras em sua língua, o que se ouvia era uma balbúrdia de vogais, meio como se ela se exasperasse e entrasse numa espécie de agonia por não ser entendida. Havia quem se contentasse além da conta com os embaraços da mulher – de algum modo, os nativos se vingavam daqueles modos, da afronta que aquela vida de concubina sem disfarce significava para todos. Tornar a sua vida mais difícil ou rir com superioridade da solidão e do desespero em que ela se encontrava era o deleite de muita gente. “Casada com aquele metidão, é muito bem feito...”  E se multiplicavam os cochichos.

Ela só tinha paz e sorrisos quando podia, em alguns dias, passear de braços dados com seu Lúcio, que voltava provisoriamente de algumas de suas expedições à metrópole – finalmente, o nexo de sua vida retomado, ali o seu escudo, ali a sua inteireza. Mas nada a garantia contra as desconfianças e os ódios, especialmente femininos – ele era rico, era bonito, era desejado, a despeito de todas as execrações que o cercavam. Tão invejada e insultada, não era por isso que emagrecia?

Quem esperava o que acontecera com ele? Encontrado morto, farrapo em roxos de pancada, em vermelhos de muitos cortes, sem camisa, num cafezal de cidadezinha próxima – fazendo o quê na curritela, quem é que sabia? - “Não tem explicação,  ninguém sabe quem matou”, dizia minha mãe, parecendo procurar na memória alguma lembrança precisa de alguma conversa com Delfina.

Dona Ismênia providenciara um funeral memorável, conseguira que o caixão fosse velado na Câmara Municipal, o assassinato tornado questão pública – pois que havia uma velha rixa dos locais com a cidade em cuja zona rural seu corpo fora massacrado.

A viuvez, ainda que de casamento pecaminoso, tornando Ana objeto de compaixão, a tornara mais aceitável – agora, era atendida no comércio com maior solicitude, com algumas expressões mais calorosas: tinham-se habituado a ela, a desgraça fizera brotar alguma solidariedade, perguntavam-lhe coisas, queriam saber o picante do que aquele marido fazia, com quem se metia, “Teve marido corno nisso, ele cantou a mulher errada...”; Tem certeza disso?Pode ter cantado o marido, isto sim... Me parecia meio veado...” , sussurrava-se, e ela era interpelada com excitações, curiosidades, interesses que pareciam perturbá-la ainda mais, pela mistura intrincada de caridade e peçonha. Melhor que fosse cada vez menos vista.

De longe, um dia a vi na praça, hesitante em entrar na igreja, em cujo átrio umas mulheres velhas estavam reunidas. Esfregava as mãos, nervosa, como se precisasse conversar com alguém e soubesse com certeza que seria mal compreendida ou repelida. Os cabelos castanhos eram comuns, mas os olhos eram claros, de um azul gelado indo para cinza, a pele já mais para tostada pelos anos brasileiros. Gostava de roupas escuras, como que respeitando uma viuvez que, não tendo havido casamento com padre e cartório, não era vista como tal na cidade. Esfregando as mãos, com um balançar de cabeça e um lamento rancoroso que eu ouvi, a uns cinco metros, sentado num canto de sorveteria, tomou uma rua lateral, de paralelepípedos, que pisou com os saltos decididos, indo numa dada direção.

Segui-a, mantendo uma distância bem prudente e escondendo-me atrás de árvores cada vez que suspeitava que ela olhava para trás. Ia para a casa da sogra, e eu a vi encontrar dona Ismênia à porta, a velha nervosa, abraçando-a e fazendo-a entrar. Depois, sem mover passos além do que estabelecera como distância tolerável, querendo passar por casual, fiquei por ali, encostado a um muro, esperando que na janela aberta da ampla sala do casarão de dona Ismênia alguém aparecesse, algum sinal se fizesse.

Queria revê-la. Tinha ouvido pouco aquela voz, em lojas do centro, e me encantara com aquelas vogais aleatórias, meio tirânicas, meio agonizantes, que havia pouco tinham de novo se mostrado na verdadeira imprecação que ela soltara, ao afastar-se da praça da igreja. Era como se ouvisse uma rainha desconhecida emitir um protesto mais que legítimo, indignado, exasperado na ferida de seus direitos, para súditos obtusos que mal se davam conta de sua realeza. E à janela ela apareceu, sem me olhar – por que me olharia? -, acompanhada por dona Ismênia, que procurava acalmá-la.

As duas ficaram algum tempo em sussurros, em gestos que pareciam entre enfáticos e irritados da parte dela e persuasivos e resignados da parte da sogra, até que pela rua passou a carroça do “figueiro” que, soprando sua corneta, tirava o chapéu para elas e oferecia seus miúdos de boi. Fez um largo aceno para mim, que temi então ser notado e me retirei depressa, mal tendo coragem de conferir se as mulheres me olhavam de lá. Ainda me seguiu, o homem, gritando meu sobrenome, alegre, estalando o relho sobre seu cavalo velho, soprando na corneta a musiquinha melancólica com que anunciava sua mercadoria. Os fígados, que minha mãe chamava de “figos” e não havia como corrigi-la, eram muito constantes em casa, temperados com muito alho por meu pai. Eu fugia de sua visão, sangrenta demais, sob a faca de minha mãe, na tábua de bater carne. Não gostava de ver as mãos dela manchadas daquele vermelhão-carmim profuso. E nem de ver os lábios de meu pai sujos daquela cor.

A visão sempre incompleta da mulher me obcecava, e escrevi um “Anna” – tinha que ser isto! – em letras garrafais em meu caderno de desenho, uma cor para cada letra. Depois, ocorreu-me procurar em enciclopédias dados e imagens sobre alguns daqueles países de onde podia provir: seria a Noruega, com seus fiordes, as geleiras, as noites de muitas cores? A Finlândia, mais gelo, as mulheres de olhos de cinza cintilante, a capital Helsinque, com tudo que de frio e fantasmagórico se escondia sob este nome? Oscilando entre os países escandinavos, pedaços da Alemanha, da Áustria, de Bulgária e Hungria, mapas que me confundiam, imagens que se misturavam às de alguns filmes vistos no cine Real, tracei com precisão pela qual me congratulei a história de que precisava.

Era a de um homem jovem, um brasileiro em férias, sem preocupação com dinheiro que o deixasse com prazo inexorável para voltar, achando-se importante pelos elogios recebidos por sua arte, cofiando um bigode grosso, parando em alguma cidade daqueles lugares muito frios onde podia vestir-se com um tipo de elegância muito, muito esporádico na sua terra de origem.

Fora parar muito ao Norte, e a mulher, conhecera-a numa certa noite, à saída de um cinema. Sob as luzes do letreiro de néon, aqueles olhos claros não eram um pouco como os de Maria Schell? Ela tremia muito, e ele a abrigara sob seu casaco mais pesado, levando-a a tomar uma bebida quente num bar próximo. Pouco falando de sua própria vida, sabendo mal e mal um Espanhol de mulher que precisava arranhar alguns outros idiomas, revelou-se, confiou nele, com ele ficou. Não tinha a que se agarrar na sua pátria – qual era mesmo? – e balançava a cabeça, triste, incrédula, quando ele lhe perguntava da família. Estava disposta a segui-lo, a ser levada para onde quer que fosse. E ele a traria de volta ao seu país como um trunfo europeu, poderia exibi-la nos círculos da capital, onde seu nome de teatrólogo contava, impressionar os machos broncos do interior com a mulher estrangeira, “esse Lúcio, besta é que não é...”

“Anna” ou Maria Schell, ela ou quem ela fosse, vi-a entrar para ver um filme francês proibido para menores de 18 anos (inútil eu tentar entrar: o gerente, à porta, tudo sabia sobre a idade dos adolescentes da cidade e reconhecia de imediato as falsificações toscas nas carteiras de estudante) e, sob o letreiro do cine Real, único de néon no centro, ela, meio irreal de banhada pela luz rosa-lilás, com o atrevimento de mulher que andava sozinha entre aqueles olhares e ia ver cenas que os imberbes só podiam imaginar, era decididamente a moça encontrada à deriva pelo brasileiro naquele país de casas de boneca, árvores de folhas castanhas, céus de cartão postal e língua meio infantil.

Esperava ser notado por ela? Não havia motivo nenhum para que olhasse para um esboço de homem. Mais que vê-la, pude ouvi-la, porque cantava com entusiasmo, misturada às fãs e ao público disposto a aplaudir quem quer que fosse, num show em praça pública de Roberto Luna. Lá do alto, ele se esmerava em “O relógio”, que ela sabia acompanhar no seu portunhol peculiar, e, junto com outras mulheres, sem se importar nem um pouco com o que pudessem achar de seu comportamento, correu, ansiosa, a tentar agarrar um dos pentes que ele atirava do palco. Conseguiu, e enfiou o pente no busto, olhando com os olhos luminosos para o cantor, que não via lá embaixo senão uma massa difusa de adoradoras, e batendo palmas com muita força, menininha.

Espantava-me que ouvisse um cantor popular, que se misturasse à turba, porque a julgava associada a um tipo de música que eu não compreendia, mas que me parecia mais digna de sua figura e origem, mais refinada.

A música que uma vez eu ouvira, ao fundo, quando ela se pusera à enorme janela do casarão da sogra, e eu passava por ali. Ensimesmada, estava presa a uma peça instrumental vinda de uma vitrola da mais precisa fidelidade, em alto volume, e meio que a entoava, nuns murmúrios e grunhidos, olhando para lugar nenhum, não vendo nada do que pudesse estar acontecendo na rua e nas calçadas.

Era uma espécie de dança. Sugeria, à medida que eu a ouvia com mais cuidado, mais avidez, uma caverna gelada onde, em algum canto, houvesse fogo, fogo providencial de uma noite do mais profundo inverno setentrional. Uma mulher dançava, dançava, sem pensar em nada além da dança, sem tempo para parar, consumindo-se na música e no calor, enquanto um homem a contemplava, também sem outro cuidado que não deleitar-se na forma hipnotizada e hipnótica, sua dançarina ali, dançando só para ele.

Os acordes daquela dança, um pizicato a ressoar na escuridão fria, e Anna à janela, me pareciam, pela primeira vez, uma entrega, uma tradução verdadeira de quem era ela, do quanto estava perdida de sua pátria, do tamanho de seu desterro. Senti-me desterrado também, e quis, com violência, que ela fosse minha um dia, que eu pudesse protegê-la, ser o guardião do fogo na caverna, seu homem, seu único contemplador.

Foi a única vez em que creio que, olhando para tantos lados que não eram senão olhares para dentro de si, olhou objetivamente para mim. Creio que notou, mas sem hostilidade, que alguém a olhava. Mas, a seguir, já não notava nada. Seguia entoando, baixinho, mas com o que eu supunha ser como uns soluços de choro oblíquo, aquela dança da mais remota caverna.

- Ninguém sabe, Leonel...

Eu entrara na cozinha, e à mesa do café essa frase estava no ar. Minha mãe se calara imediatamente ao notar a minha presença, e puxara a cadeira, submissa, para o segundo homem do aposento. Lançou um olhar comprido, um pouco embaraçado, do marido para o filho. Parecia encurralada por duas forças contra as quais pouco podia.

Ninguém sabia o quê? - era o que eu perguntaria, se tivesse coragem. Meu pai, achando que talvez a cessação da conversa que vinha tendo com minha mãe tivesse me parecido abrupta demais, contou, num tom atenuante: - Ah, sim, a nora da dona Ismênia...Fuxico. O pessoal estranha que deu, agora, pra ir demais ao cemitério.

- Passa horas lá...Credo! – minha mãe soltou, correndo a ir tirar uma chaleira do fogo.

- Natural. Sente saudades...- meu pai disse, sorrindo. – Viúvas, você sabe...- sussurrou e piscou para mim, enquanto minha mãe fazia por não ouvir esta parte.

- Não é certo, Leonel. Outro dia não queria sair de lá do pé do jazigo da família, e já era quase de noite. Ficar lá, no escuro, no meio dos túmulos! – minha mãe balançava a cabeça e só não apertava um rosário, fremente, porque não havia um rosário ali; em todo caso, persignava-se. Delfina, sua informante, era amiga do coveiro-zelador, naturalmente, e as idas constantes de Ana ao cemitério deviam ter se propagado de tal modo que não seria de espantar que moleques se pusessem em cima daqueles muros para vê-la rezando para seu falecido. “A gente nem sabe de que religião é. O finado, religião não tinha... A gente bem sabe o que dona Ismênia padecia com esses ateus, esses hereges...”

- Lá pra cima, por aqueles países, diz que é tudo protestante...- meu pai dizia, para deixar minha mãe ainda mais assustada.

Lutero! Valha-me Nossa Senhora!

Meu pai apanhava seu boné de condutor da jardineira que fazia o trajeto entre a cidade e uma cidade maior, uma espécie de pequena capital da região, apagava o cigarrinho da manhã e saía. Da quase-aldeia cercada por cafezais onde Lúcio encontrara aquele fim inexplicado, parada do veículo modesto e empoeirado, trouxera algumas conversas, que me contara um pouco ironicamente, ciente de que só a outro homem podiam ser contadas: podia ter sido um caso de ciúmes, ele tomava liberdades demais com as pessoas, com aquela intimidade fácil e imediata dos acostumados a certos ambientes de metrópole. Havia mulheres, algumas da melhor sociedade daquele buraco, encantadas por aquele bigode, aquela conversa insólita para os padrões do lugar. “Até hoje falam do moço bonitão por lá. Mas, saber quem foi que matou, dessa parte ninguém fala nada... Pode ser gente de sobrenome. Ninguém vai arrancar nada dos moradores. Isso que você gosta de ler aí, nesses livrinhos de crimes, investigações, detetive, isso nunca vai existir a sério por aqui. O povo se cala mesmo, e policial, tudo bronco, tudo compadre ou afilhado de alguém...”

Eu já não podia me entusiasmar com fósforos de cor, que eram tidos por coisas de menino pequeno ou menina. Era mais apropriado que me interessasse pelos busca-pés, mais excitantes e arriscados, pelas bombas maiores, rojões comuns ou de vara. Mas o dinheiro era escasso e eu mais olhava para as ofertas de fogos, trazidas mais para frente das lojas, expostas e cobiçadas por grupinhos que iam se formando na calçada da rua principal.

Haveria uma festa de São João muito esperada, sempre celebrada num terreiro extenso de um casarão à saída da cidade. Queria poder comprar aquele vulcão ou rojões de lágrimas, de preços muito altos, e o dia demorava a passar, e eu não levaria senão uma meia dúzia de bombinhas de pouca potência, mas poderia – se desse certo – me juntar aos grupos de homens adultos que ficavam encarregados dos longos e perigosos rojões de vara, admitido por minha calça comprida, minha voz já mais grossa – eu tinha que ter o direito de conquistar o céu com aqueles projéteis.

Meia cidade estava convidada para aquilo – muito quentão estava sendo feito e, das ruas, moradores em bandos acorriam, alegres. Dona Ismênia iria – e foi – numa espécie de comitiva, incluindo Delfina e alguns parentes e empregados e, quieta, vestida com discrição em seus beges e um casaco com gola de pele branca desconhecida, cabisbaixa, a nora a acompanhava.

Rezou-se o terço – ladainhas de não acabar, de exasperar, bolo de gente que não me permitia ver nada, só cabeças, e lá em algum canto, no interior da cozinha, a mulher que puxava a reza, uns risinhos abafados de crianças, um nervosismo de espera pelo melhor, que logo viria, sim, mas, como tardava ! Quando o bando disparou, ao final dos muitos “rogai por nós”, Ana não se dirigiu à área coberta com pressa, olhava para o céu, para os lados, puxava um galho de árvore baixa, distraía-se. Depois, numa mesa estreita e comprida, coberta por amendoim torrado, doces e tachos de bebida, dona Ismênia ganhara o centro, e sua comitiva se punha em torno, misturando-se aos outros. A mulher olhava com suspeita, com cuidado e desdém, para o chão de terra batida, temendo sujar-se, e estava disposta a não mover-se da espécie de trono que lhe fora natural ou involuntariamente destinado. Havia gente bem vestida para a noite que talvez nem fosse tão fria para aquilo a que Ana estava acostumada, mas ela se arrepiava, ela se encolhia em seu casaco.

- Olha só...- Uma mocinha apontou-a – Será que alguém vai ter coragem de dançar com ela? – Olhava para as roupas, analisava-as invejosamente, chamava companheiras – Melhor que fique no seu canto. De luto eterno... - E nada mais pude ouvir, porque a sanfona ergueu-se alto, num dobrado popular, que arrancou todos de suas posições, estivessem sentados ou em pé. O arrasta-pé começava.

Era o que havia de melhor, esse fogo, o gengibre a arder nas gargantas, o gosto das grossas paçocas, os bolsos cheios de amendoim torrado, os pedações de batata-doce, e o pó levantado por aquelas pernas, o cheiro de pólvora, de noite, de capim fresco, de um mato que nem estava tão distante. Para lá, para aqueles lados de um verde-escuro, encaminhavam-se alguns homens, que não tinham paciência para esperar numa fila formada à porta de um banheiro.

Seguiam rumo a qualquer canto propício para mijar alegremente em grupos, rindo, brincando de dançarinos ao som da sanfona, soltando vivas, gritando, provocando-se, comparando-se, zombando dos complexados que não se arriscavam a competir. E eu me juntava a eles, timidamente, do lado dos mais fortes. Com outros rapazinhos e moleques, ia em busca de lenha para atirar numa fogueira, que se avolumava. Disputávamos quem traria a maior acha, ríamos. Sempre, a cada movimento, por trás de faíscas, contra o fundo negro do céu, lá entre os que dançavam, estava a mesa, para a qual meu olhar se voltava, mas tudo que via era a cabeça imponente de dona Ismênia, que sorria e aprovava, feito fizesse uma condescendência a súditos, e Ana prosseguia quase imóvel em seu lugar, bebendo. Mais gente chegava, e dessa vez eram vários casais com ares de importância, mulheres que se esquivavam das fitas penduradas de papel de seda como se atrapalhassem a precária arrumação de seus penteados, figurões de paletó e gravata que acenavam, que estufavam os peitos engomados e pareciam embevecidos pelos próprios papéis. O sanfoneiro os saudava com vivas e improvisos especiais, reconhecendo-os, chamando-os de doutores, bajulando-os.

Impossível saber quanto tempo decorreu até que o quentão começou a me parecer excessivo, meu rosto esfogueado, e um medo de bambear, desmontar, ser gozado, tripudiado, carregado para casa, me assaltou. Precisei me esquivar, me forçar a andar pelos matos laterais, deixando lá no fundo o vermelhão de brasas e luzes da festa, procurando recuperar a frieza, a continência que se esvaíra. Voltei depois, sem que minha saída ou chegada por ninguém fosse notada. Ia agora erguer-se o mastro, e muita gente ao redor da escavação, disputando a pá e o enxadão, rindo, gritando, enquanto rojões eram acesos por um e outro, fósforos pedidos, candidatos a fogueteiros rechaçados, chapéus atirados para o alto. Duas jovenzinhas tinham cortado mechas de seus cabelos para enfiar no buraco que se cavava, à espera que, de lisos, ficassem crespos, como os de São João, cuja imagem ia apontando, entre fitas, no alto do mastro que se fincava. Depois, a sucessão de gritos se alternou a mais cantorias, e, na cobertura, que era sustentada por estacas de eucalipto, a sanfona voltou a tocar.

Agora, eu tinha vontade de circular por mais perto da mesa de dona Ismênia e sabia que poderia fazê-lo sem ser sequer percebido. Nos vazios que ficavam na mesa, à medida que homens e mulheres se levantavam para dançar, eu podia ficar a uns três metros de Ana, olhá-la, olhá-la com uma minúcia despudorada que ela não reprovaria. Se ela se virasse, eu estaria perdido, com minha expressão que na certa era de um êxtase abestalhado.

Súbito, quem se levantou foi ela, e houve certo murmúrio, algumas cabeças se voltando para sua figura decidida, talvez a única mulher presente que andasse com graça e segurança na terra batida. Do outro lado, perto da esposa, que segurava uma bandeja de paçocas, um fazendeiro se perfilava, orgulhoso, e virou-se, surpreso, quando Ana deu-lhe uma batidinha no ombro. Ele arregalou os olhos e ela estendeu-lhe os braços, para que os dois dançassem. A mulher, claramente indignada, ao invés de olhar para ela, olhou para dona Ismênia, com um olhar que pedia uma providência. Mas, já nada havia a fazer, porque o sanfoneiro gostara da brincadeira e agora executava uma valsa muito propícia, das dolentes, que sabia estar entre as preferidas do homem. Este era alto, um sorriso de muitos dentes radiosos e regulares, barbeado, vigoroso, pé-de-valsa, um elegante, um trunfo óbvio para a esposa, que largara a bandeja e ia direto à mesa de dona Ismênia, agitada.

- Nunca vi isso aqui... Tirando um homem casado pra dançar!

- Deixa, Bibi. Não tem nada. Estão se divertindo, olha.

Todos olhavam e alguns pares se desfizeram, enquanto outros, gostando da música mais lenta, procuravam imitá-los. Ana só olhava para seu par, e eu engolia a visão daquele paletó, daquela gravata, daquelas calças de vinco perfeito, as pernas robustas, os giros firmes, sem uma única falha no conjunto de uma masculinidade que se aproveitava bem do roçar, do entrelaçar, do sussurrar, ah, devia se aproveitar, e era preciso admirar, era preciso reconhecer que ninguém dançava tão bem quanto os dois, que nenhum homem seria mais apropriado para ela, toda em sorrisos, corada, derretida, e, decididamente, nervosa.

E não foi que de repente o homem recuou, um salto para trás desajeitado e grosso, demasiado visível para todos, soltando um palavrão?

Eu não vi o que acontecera, mas aquela reação. E me ergui também. Mas, dona Ismênia se ergueu e pôs as mãos na cabeça. Ela, bem como a esposa e outras mulheres amontoadas do outro lado, tinham visto o que Ana fizera com a mão. E estavam estupefatas.

Coisa que se faça? Adelino estava muito ofendido, agia como um deus lisonjeado e indignado, mas o prazer estava em portar-se como indignado, decididamente – não ia ser complacente com uma coisa dessas, que podia ser feita sim era no escuro, e por iniciativa dele, se a tipa fosse depravada, e ali estava Bibi, de quem se tornara marido e ornamento, que ele não podia afrontar. Como se para proteger-se e definir o território onde seu melindre seria compreendido e apoiado, foi para o lado dos homens, juntou-se a eles, passou um lenço pela testa, que parecia suar. Alguns de seus companheiros tentavam disfarçar o riso malicioso, outros, para rirem mais folgadamente, se afastavam. Conversavam com ele baixinho, ele explicava, tentava rir, mas era preciso a carranca de santo, que diabo? - já se viu uma mulher fazer isso em público, provocar macho desse jeito? Silêncio da sanfona, dos rojões, da noite toda, e ninguém querendo ou podendo dizer nada.

Dona Ismênia aproximou-se dela, que ficara no meio do terreiro, perplexa, a mão no ar, querendo insultar, querendo chorar, querendo que a música continuasse – o sanfoneiro de cara fechada, surdo a seus apelos para que tocasse. Ia dançar sozinha, a diaba?

A sogra murmurou alguma coisa para ela, que olhava para cima, que clamava ao teto de fitas e bandeirinhas o quê? Esfregava as mãos, depois as soltava, girava, oh, a voz, a voz, e as vogais atropeladas, e um pouco de Espanhol, e vestígios de um Português angustiado. Dedo enfiado na boca de vez em quando, ela batia na própria mão, repetia. Explicações. Dona Ismênia não aceitaria nenhuma. Impunha, com o indicador, um sermão a que ela resistia, resistia, desesperada, olhando para os lados, ninguém que a socorresse. Eu estava em pé. Queria dar um passo. Não podia.

Adelino, que saía do grupo dos homens arrumando a gravata, quase aplaudido, era abraçado por Bibi. Esta conseguira a adesão de uma fila de mulheres, e saíram todas, passando por dona Ismênia e a nora sem olhar, ou olhando para a segunda com um desprezo sem limites e coberto pela mais legítima das razões. Alguém lá fora voltou a gritar, um grupinho acorreu para soltar novo rojão de vara. E eu fui para casa, olhando para trás.

Era história de que minha mãe nada podia falar, e nada disse. Os dias se sucediam, e nada parecia ter acontecido para ela, ocupada com sua enorme vassoura de varrer picomãs no teto sem forro, com suas galinhas, sua horta, suas toalhas, guardanapos e bordados. Meu pai, tal como fizera com outras histórias, veladas e picantes, a assimilara bem lentamente, comentando-a um pouquinho a cada dia, às saídas para o trabalho, depois do café, geralmente quando estávamos sozinhos, e, ainda assim, em sussurros interrompidos quando minha mãe entrava.

Ela nada ignorava, mas saber, naquele caso, para uma mulher como ela, era de uma baixeza impensável. O escândalo era daqueles que impunham silêncio. Afinal, esperar o quê de uma mulher daquelas? e o bom, no fim das contas, fora que dona Ismênia a tirara com jeito da cidade, numa manhã em que viram-na, com umas poucas malas, entrar num carro de praça alugado pela sogra – o motorista, um conhecido de meu pai – e ser tragada pela estrada de saída. 

Era mandada para onde? Meu pai tinha os olhos brilhantes ao imaginar, e imaginava, imaginava, com satisfações especulativas bem mudas cujos sinais eu captava sem entender, intrigado. Puxado para um canto do corredor, a mão direita no meu ombro, no colarinho do uniforme de condutor o cheiro de uma loção de barbeiro, uma semana depois, eu o ouvi contar, que o acontecimento lhe rendia indignações e excitações infindáveis, ainda: - O Adelino...- ria – que felizardo e que grande idiota! Podia ter ficado quieto, combinado alguma coisa pra depois...

Não gostava do fazendeiro pela boa razão masculina de que era obviamente um pouco bonito demais e, pior, sustentado pela mulher, mais velha que ele, e disputado por outras mais jovens: - Vaidoso, insuportável... Te juro que ela não encheu muito a mão. Ali o que tem é só pompa, fachada, pouca eficiência, nada fora do comum – e, pensativo, sorria para si, lembrando de algo bem preciso e cômico que não ia me contar; cuspia de lado, ria outra vez, batia com força em meu ombro, gostava que a minha cara de inexperiência ficasse um pouco corada, que tivesse o que me ensinar.

Mas, quanto ao que eu aprendia, era obscuro. Atravessava dias de céu mais fechado, pouco afeito a sair de casa, a ir ao armazém, a passar pela casa da professora. A festa de São Pedro era a menos popular das três, por ali, e seu caráter de desfecho a tornava sempre mais para triste. Eu não iria. Convidado a um ou outro terço, meu pai citava casas, nomes de famílias, mas, como suas saídas eram para outros rumos, era de pouca religião e só satisfazia à minha mãe indo a uma que outra missa bem esporadicamente, não se importava, “negócio de terço é uma ladainha muito chata”, ele dizia e ela suspirava, com uma raiva apagada, e eu ficava pensativo, no canto de mesa, ajudante seu na escolha do feijão, afastando lentamente grãos mais escuros e pedrinhas, Ana mais viva em minha cabeça do que aqueles dois.

Que meu pai fosse para onde fosse – quanto a mim, tinha meu rumo – um tanto do casarão de dona Ismênia, um tanto da praça, onde se montara aquele palco para a apresentação de Roberto Luna, um tanto da igreja, de algumas lojas, e, por fim, ir para a rua do cemitério, sob o sol da tarde, sem me importar com os que vissem me entrando. Olhava, remirava o jazigo da família França, e a fotografia de Lúcio estava ali, os olhos, o cabelo de topete, a boca fina, o bigode farto. Olhá-lo, olhá-lo demoradamente, dava-me a sensação de que o fazia por ela, de que a satisfazia assim, de que o meu olhar era o olhar seu que não pudera se deter, ficar, prolongar a contemplação, refazer o falecido por obra de fixação, de saudade.

Por vezes voava baixo um tico-tico ou outro, o pulinho entre túmulos, o cemitério todo muito quieto, aqueles muros descascados, irregulares em altura e conservação, dando para matas muito próximas às últimas casas da cidade. Para mais além, ventava  macio numa figueira das mais velhas. E eu me lembrava do frio das noites. E uma pequena alegria, prenunciadora de eu não sabia o quê, me arrepiava.

Passava a mão por cima de meus lábios, sentia a promessa de um bigode, tornava a olhar para Lúcio, que o tinha tão pleno, que, de lá de dentro de sua fotografia, veemente, me infundia gestos, me alimentava. Ao sair do cemitério, me sentia mais alto, magro, já dotado como ele, já um pouco velho. Puxava o cabelo com mais força, enfiava as mãos nos bolsos e ia de volta para a cidade, assoviando.


Era a música da dança, cujo nome um dia eu haveria de saber.


                                                                                   Chico Lopes é autor do romance "O estranho no corredor", debatido no clube de leitura em 3/5/2013

                                                                                                                                              "Estrela de Junho" integra o livro de contos "Hóspedes do vento".


26 de junho de 2013

Manifestações chegaram bem antes no CLIc

September 14th, 2012:

Queremos as nuvens!

Protestar... em cada canto

qualquer via, qualquer povo
O CLIc, povo do encanto,
faz-nos protestar... de novo!!!!

(I, +- "protestadora")


Queremos lolita!


25 de junho de 2013

A coroa “intelectual” (CRÔNICA)

(por W. B.)

Ricardo chamou Jão e eu para participarmos dum grupo literário. Jão nem gosta de literatura, mas topou, porque curte grupos de tudo quanto é tipo: é um cara gregário por natureza. Além disso, é um entusiasta do livre-pensar, do livre-agir e do livre-qualquer-coisa. De minha parte, não me animo com quase nada, daí objetei logo:

–Mas, Ric, sua praia é poesia, eu gosto só de romances e contos, e Jão é ligado em política. A gente nem vai ter o que discutir.

Ricardo argumentou que a sogra dele era uma amante das letras, que estava organizando os encontros literários na casa dela, chamando gente interessante, oferecendo um lanchinho legal...

Aceitei. Peguei uma água de colônia que ganhei e – como detesto perfume – resolvi dar para a sogra do Ric (afinal o troço ainda tava até embaladinho). Jão se sentiu obrigado a levar algum presente também. Correu até em casa e trouxe um livro.

– “A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos”!? Pô, Jão!

– Ué, Ric, ela não é amiga das letras? Esse é um clássico do Anarquismo, escrito por José Oiticica, um livro de grande importância, não só para o meio operário e camponês, mas também para...

– Certíssimo! – abreviei. – Vamos logo no tal encontro.

Fomos. Lá já estavam a sogra e a mulher do Ricardo. A sogra abriu o embrulho da água de colônia e, numa gentileza – nitidamente falsa –, elogiou a fragrância (“Huuuum, que cheiro bom”). Quando ia receber o livro, abriu um sorriso branquíssimo (rolou branqueamento artificial ali, com certeza), mas logo fechou a cara quando deparou com o título.

Cheguei a ouvi-la murmurar baixinho: “Ao alcance de todos... humpf!” Não sei se Jão escutou, mas me pareceu que ele – chateado com a desfeita – achou melhor se afastar da mulher e se entreter examinando uma estante com volumes de História. Aliás, a casa era enorme e tinha livro pra caramba.

Fiquei olhando uns romances numa prateleira e deu foi vontade de ficar só ali num canto, lendo. Mas logo a velha chamou para a “discussão literária”. Pegou umas anotações e começou a falar duma peça grega (acho que é grega) chamada Antígona. Jão fez prontamente um trocadilho infame dizendo que a peça era muito antiga mesmo, antigona... Ric ficou com o rosto vermelho, envergonhado. A mulher dele esboçou um sorriso, mas depois disfarçou e ficou séria. A sogra é que foi pior, fez uma baita cara de raiva. Mas depois dum tempinho se refez e voltou a ler as anotações, falou, falou, falou, mas não captei quase nada: meu pensamento voou até um conto que eu estava escrevendo na época, depois perambulou junto com meu olhar pelas estantes da sala e vez por outra pousava na beirada da piscina (Ah, como seria bom dar uns mergulhos!).

No meio daquele blá-blá-blá sobre Antígona, as pessoas beliscavam bolos, salgadinhos, bebericavam chá... Notei uma garrafa de licor dando mole e logo a ataquei (discretamente, claro, mas com minha costumeira obstinação em tudo que faço).

Logo já estava em condições etílicas de vencer minha timidez. Na primeira pausa que a coroa deu, disparei:

–Olhe, eu acho o seguinte, se esse é um grupo literário, não faz sentido discutir teatro, pois teatro não é literatura: é outro tipo de arte. Mesmo que o texto teatral fosse uma espécie de literatura (tem gente que acha isso), mesmo assim não teria por que a gente ficar discutindo esse treco... A gente deveria é escrever nossos próprios textos literários em casa, enviar pros outros membros do grupo e, depois que todo mundo tiver lido, marcar outro encontro só para opinarmos sobre os escritos uns dos outros. Assim dá para fazer algo de útil: nos ajudarmos mutuamente a melhorar nossos textos.

–Foi exatamente isso que eu propus – disse a mulher do Ricardo.

Daí a dona da casa começou uma discussão com a filha dizendo que se ela concordava com aquilo, então não gostava de “literatura de verdade”. Ricardo tomou as dores da esposa. E começou o maior bate-boca. Jão foi se refugiar perto da estante de livros sociológicos. Eu me afastei – junto com a garrafa de licor, óbvio. E voltei à prateleira de romances que avistei ao entrar na casa. Foi aí que – putz! – me deparei com o romance “Trópico de Câncer” do Hernry Miller numa embalagem lacrada. Pela etiqueta de compra dava pra ver que já tinha sido adquirido há mais de um ano. (O exemplar que eu tinha ficou com minha ex-mulher. Caraca, quanta saudade senti... do livro, não da mulher.) Fiquei tentado a enfiar o romance embalado dentro da minha bolsa peruana. Ninguém iria ver... mas minha consciência me acusaria para sempre. Bebi mais uns copos de licor, mas só tomei coragem para abrir a embalagem e ler um pouco ali mesmo, antes de virem me chamar para ir embora.


No ônibus, eu e Jão conversamos sobre tudo aquilo.

–Pelo menos bebi um bocado e li bastante Henry Miller. Aliás, parece que a coroa “intelectual” não gostou do presente que você deu para ela – falei.

– Também notei, cara. Por isso, assim que ela deu mole, enfiei de volta o livro na minha mochila – disse Jão me mostrando o seu “A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos”.

Logo me escandalizei:

– Que isso, cara!!! Você roubou de volta o seu livro?!

– Roubo, não: expropriação revolucionária!

Esses caras da esquerda são fogo. Mas bem que eu gostaria de ter pegado o romance do Hernry Miller.