(Para Edna Rezende, em Brasília)
Um quê de fumaça
de fogueira de Inverno, de algumas primeiras bombinhas e de fósforos de cor
girados sob a lua, um quê de verde a queimar, de mãos esfregadas junto a um
fogão de lenha, traz a lembrança precisa de junho com suas cinco letras
gravadas em minhas veias.
Longe, ouvia-se
alguma festa, pedaços de uma música de sanfona que insistia em aquecer o ar, em
convocar para a animação e eu, embora estivesse tão apartado, punha-me a
imaginar pernas femininas, sapatos bem engraxados de homens jovens no
arrasta-pé, xícaras de anisete, de quentão, de leite com chocolate, batata-doce
no braseiro, amendoim torrado, o espocar dos rojões de lágrimas no céu muito
aberto e leve. Não houvesse as lágrimas verdes, azuis, vermelhas, já ficaria
feliz pela total visibilidade das estrelas, parecendo mais próximas, de se
colher.
Junho e sua
lenha ardente, junho e seus arrepios. Por aqueles meses, a cidade ficava mais
grata, mais imprevista, manhãs de azul-celeste e ouro, de farra aguda de
sanhaços no mamoeiro, de conversas sobre gelo nas baixadas e pão torrado, sobre
o qual se esfregara muito alho, na mesa. Junto ao fogão de lenha de vermelhão,
minha mãe era pouco mais que uma presença a significar calor, vigilante, ali por
perto, a torrar os pães. Nas noites, eram as festas – indiferente ao rigor do
calendário, todo dia era prenúncio de dia santo, bombinhas “peidos de velha”,
estalos de salão estourando nas calçadas, próximo aos postes, onde meninos se
juntavam. Havia uma antecipação nervosa, qualquer coisa alegre, a vontade de
olhar para o céu, o negrume quebrado por alguns daqueles cachos esporádicos,
que espocavam com um ruído que ecoava docemente. Eu ia para a rua, feliz só de
olhar, braços bem abertos.
Minha mãe, sempre
sobrecarregada de tarefas, dizia que era preciso fazer mais compras, razão pela
qual eu era despachado para a venda dos Floriano levando uma folha na qual
anotara, com minha letra, o que era necessário para a despensa – o trivial do
arroz, do macarrão, latas de massa de tomate, garrafas de vinagre, pacotes de
farinha, sardinhas na salmoura das latas enormes que ficavam à entrada do
armazém. O papel, eu o amarfanhava no bolso, apalpando-o sem parar para tê-lo o
tempo todo confirmado, tal o zelo em não perdê-lo, tal o apego que sentia à
minha incumbência. O vento, o ventinho benfazejo, esse frio regenerador - “mata tudo quanto é bicho que tem no ar,
época de saúde”, dizia meu pai –
e a fome de avançar...
Eu fechava mais
o paletó, desejava que minhas calças fossem mais grossas, mas as roupas eram
feitas para o calor, senhor da maior parte do ano. Tão bom andar, andar,
simplesmente andar muito, uma alegria de pernas, sem raciocínio nenhum, a
fumaça que me vinha da boca, a idéia de ir para perto do córrego da Farinha,
espiar os campinhos, onde podia haver sinais de geada.
Bem eu queria
que houvesse Inverno como o das folhinhas, onde paisagens do Canadá ou de algum
outro país setentrional se revelavam inverossímeis de lindas, as árvores em
vermelho, laranja e amarelo, as montanhas muito azuis, espantosas para um filho
dos planos (a cidade e os campos em volta não tinham sequer uma colina), ou que
houvesse neve como no quadro que da rua se via, enorme, enfeitando a sala da
casa da professora, dona Lídia.
Parava para
olhar, despudorado, e uma vez ela saíra à janela, me surpreendera; vendo que eu
admirava o óleo, sorrira, fizera-me entrar, dera-me um pedaço de bolo de
laranja. Quem o pintara? Seu filho, o único, havia muitos anos metido em algum
trabalho muito respeitável e lucrativo – pintura não lhe daria camisa – na
capital. Copiara de quê aquela cabana de madeira, o teto branco, ladeada por
árvores secas, o céu furta-cor, o chão branco, um riacho com blocos de gelo,
cena toda européia? De uma folhinha, dizia ela. “Claro”, eu pensava, satisfeito. Ele fizera escolinha de pintura,
aprendera a quadricular para ampliar a reprodução que quisesse na tela, sabia
preparar seu branco com alvaiade e óleo de linhaça, pintara uns cinco quadros,
era bom naquilo, não era? – que eu não tivesse dúvida, ele tinha esse talento,
além de muitos outros. Era elogiar o quadro outra vez e ganhar outro pedaço de
bolo. A cada pedaço dado, dona Lídia suspirava pelo filho ausente ou pelo seu
talento de pintor que fora esquecido em favor da realidade, não sei.
O frio, sem
glória setentrional, mas azulando o céu num cerúleo de doer e trazendo um sol
de uma tepidez ímpar, percorria as ruas de escassa gente – algum incerto
vendedor de verdura e legumes com sua carriola, empregados do comércio - que
iam sendo engolidas por meus pés. O armazém, depois de uns poucos quarteirões
de centro, já podia ser avistado. Esfregava as mãos. Proibido até imaginar isso
em casa, mas ali pelos cantos do balcão, entre as latas de sardinha, de óleo de
cozinha, de querosene, reunidos, uns homens que falavam de pesca, caça e
lavoura sempre podiam me oferecer um pouco de cachaça. “Toma jeito, Antenor, não vai me fazer o filho do Romão beber. Ainda é
moleque, não tem dezesseis anos, repara só...”, dizia um dos Floriano. “Ele já pode, já usa calça comprida, e esta aqui vai esquentar,
esta é de arrebentar. Tenho certeza que ele está querendo...Olha só, ô, rapaz,
vai devagar com isso, não me engole tudo de uma vez...” Eu terminava, batia no peito, o enorme calor ardente, o forte
que me sentia, pedir mais, mas não, não convinha exagerar. Eles riam.
O indicador de
Antenor, apontando para alguém que passava – um silêncio malicioso se fez entre
os homens, e eu, meio zonzo, olhei: a mulher de marrom, equilibrando-se num
andar nervoso, esforçando-se por não parecer embaraçada com esses olhares de
homens reunidos - quem pode com essas fomes, esses cicios? -, com o
amor-próprio obrigando-a a pisar mais firme, a nada ou ninguém olhar. Antenor
estalou a língua, e, parecendo nervoso, meio rindo, pediu que o vendedor lhe
cortasse um pouco mais de salame, cujas fatias espetava ávida e infalivelmente
com um palito. Um dos outros falou: “Por
uma dessas eu bem que fazia uma
besteira...”
Mas, não era
mulher senão para se olhar: uma certa Ana, moradora de um trecho urbano de
residências mais ricas. O que se dela se falou ali podia ser juntado a outras
tantas conversas entre meus pais, num mosaico cujas partes mal encaixadas
oscilavam em minha cabeça. Era obrigado a balançá-la, incerto, quando ela
passava.
Tudo indicava
que podia haver um “n” a mais nesse Ana que se difundira, uma simplificação
para os simples locais, porque era uma estrangeira. Fora trazida de alguma
viagem a Europa feita pelo filho sem-juízo de Ismênia França, aquele Lúcio de quem
a mãe tanto falava, exaltada ou desesperadamente.
Essas coisas não
tinham como não ficar sabidas numa cidade como aquela, até porque as
empregadas, muito boas ouvintes ou abertamente confidentes de certas patroas,
faziam com que todos soubessem, e uma delas era particularmente amiga nossa,
morara conosco por alguns anos, a pedido do pai, compadre do meu, que a queria
longe da roça. Pois, essa Delfina bem dissera à minha mãe o que, em tradução de
uma conversa à mesa do café, acompanhada por silêncios ou escassos grunhidos de
meu pai, relatava: Lúcio, já um tanto famoso em São Paulo pela autoria e
desempenho do papel principal de umas peças de teatro, andara em longas viagens
(dona Ismênia mostrara postais europeus à atenta e encantada Delfina) e
conhecera a mulher numa cidade – as montanhas lá atrás, as casas de sonho que
eu já vira parecidas em revista a falar de Alemanha ou Holanda – cujo nome era
impossível reproduzir.
Quando a
trouxera, ao menos tecnicamente já estavam casados – e para nada valeu dona
Ismênia insistir, descabelar-se para que uma cerimônia oficial, de igreja,
fosse feita ali. Ele não daria satisfação a ninguém, odiava igreja e padre e
quanto à mulher, falando com esforço algo que supunha ser Português, mas tinha
mais de Espanhol, só fazia sorrir e jamais discordar de seu homem. Dona Ismênia
não podia com o filho, com suas idéias, que a deixavam dividida entre a
admiração e um orgulho que gostaria que fosse compartilhado pelas pessoas do
lugar, não fosse o sujeito uma fonte de consternação e suspeitas.
Ele saíra da
cidade aos dezessete anos, formara-se longe, e só aparecia de vez em quando,
sabia-se, para satisfazer a cartas e telefonemas que deviam ser insistentes,
pois nada o compatibilizava com o lugar. Portanto, ao aparecer com a mulher e
aparentando disposição a morar ali por uns tempos, ela acreditou que,
finalmente, haveria uma acomodação, um rumo naquela vida a seu ver indignamente
cigana; não houvesse enviuvado cedo, tivesse tido outro filho – Lúcio era o
único -, não cederia tanto àquele maluco.
Tanta pena minha
mãe sentia dessa viúva, oh, ingratidões de filho, essa vida em pecado, essa
estrangeira, que diabos ele fazia, alguém lá podia ganhar a vida com teatro?
vagabundo, claro que a mãe o sustentava e, aliás, o sustentara por tempo
demais, era uma sangria o que aquela vida de teatrólogo metropolitano e
viajante desvairado devia fazer no dinheiro que ela tinha, que não era pouco,
mas por quanto tempo suportaria isso? Viúva, a família de muitos irmãos, muitas
fazendas, muito gado, gente com uma tradição de trabalho duro, nada de
prodigalidades e dissipações, de onde lhe saíra aquele Lúcio? Parecido ao pai,
que tivera um derrame de tanto trabalhar em certa madrugada ao mexer em contas,
na certa ele não era.
Pois, esse
casamento – porque se convencionara que era um, ninguém daria à dona Ismênia o
desgosto de lhe dizer diretamente que era uma “amigação” – não era garantia de
sedentarismo para o esquivo Lúcio: um ano depois, já viajava muito – mais visto
no ônibus de ida e volta para São Paulo que nas ruas da cidade – e deixava sua
Ana sozinha semanas, meses a fio. Viam-na sair, viam-na em compras no comércio,
vagando como quem vagasse por algum porto estrangeiro, à espera de um
determinado navio, entrando e saindo de estabelecimentos com o sotaque que
provocava risadas e com seus erros patéticos de Português. Ao soltar palavras
em sua língua, o que se ouvia era uma balbúrdia de vogais, meio como se ela se
exasperasse e entrasse numa espécie de agonia por não ser entendida. Havia quem
se contentasse além da conta com os embaraços da mulher – de algum modo, os
nativos se vingavam daqueles modos, da afronta que aquela vida de concubina sem
disfarce significava para todos. Tornar a sua vida mais difícil ou rir com
superioridade da solidão e do desespero em que ela se encontrava era o deleite
de muita gente. “Casada com aquele
metidão, é muito bem feito...” E se
multiplicavam os cochichos.
Ela só tinha paz
e sorrisos quando podia, em alguns dias, passear de braços dados com seu Lúcio,
que voltava provisoriamente de algumas de suas expedições à metrópole –
finalmente, o nexo de sua vida retomado, ali o seu escudo, ali a sua inteireza.
Mas nada a garantia contra as desconfianças e os ódios, especialmente femininos
– ele era rico, era bonito, era desejado, a despeito de todas as execrações que
o cercavam. Tão invejada e insultada, não era por isso que emagrecia?
Quem esperava o
que acontecera com ele? Encontrado morto, farrapo em roxos de pancada, em
vermelhos de muitos cortes, sem camisa, num cafezal de cidadezinha próxima –
fazendo o quê na curritela, quem é que sabia? - “Não tem explicação, ninguém sabe quem matou”, dizia minha
mãe, parecendo procurar na memória alguma lembrança precisa de alguma conversa
com Delfina.
Dona Ismênia
providenciara um funeral memorável, conseguira que o caixão fosse velado na
Câmara Municipal, o assassinato tornado questão pública – pois que havia uma
velha rixa dos locais com a cidade em cuja zona rural seu corpo fora
massacrado.
A viuvez, ainda
que de casamento pecaminoso, tornando Ana objeto de compaixão, a tornara mais
aceitável – agora, era atendida no comércio com maior solicitude, com algumas
expressões mais calorosas: tinham-se habituado a ela, a desgraça fizera brotar
alguma solidariedade, perguntavam-lhe coisas, queriam saber o picante do que
aquele marido fazia, com quem se metia, “Teve
marido corno nisso, ele cantou a mulher errada...”; “Tem certeza disso?Pode ter cantado o marido, isto sim... Me parecia
meio veado...” , sussurrava-se, e ela era interpelada com excitações,
curiosidades, interesses que pareciam perturbá-la ainda mais, pela mistura
intrincada de caridade e peçonha. Melhor que fosse cada vez menos vista.
De longe, um dia
a vi na praça, hesitante em entrar na igreja, em cujo átrio umas mulheres
velhas estavam reunidas. Esfregava as mãos, nervosa, como se precisasse
conversar com alguém e soubesse com certeza que seria mal compreendida ou
repelida. Os cabelos castanhos eram comuns, mas os olhos eram claros, de um
azul gelado indo para cinza, a pele já mais para tostada pelos anos
brasileiros. Gostava de roupas escuras, como que respeitando uma viuvez que,
não tendo havido casamento com padre e cartório, não era vista como tal na
cidade. Esfregando as mãos, com um balançar de cabeça e um lamento rancoroso
que eu ouvi, a uns cinco metros, sentado num canto de sorveteria, tomou uma rua
lateral, de paralelepípedos, que pisou com os saltos decididos, indo numa dada
direção.
Segui-a,
mantendo uma distância bem prudente e escondendo-me atrás de árvores cada vez
que suspeitava que ela olhava para trás. Ia para a casa da sogra, e eu a vi
encontrar dona Ismênia à porta, a velha nervosa, abraçando-a e fazendo-a
entrar. Depois, sem mover passos além do que estabelecera como distância
tolerável, querendo passar por casual, fiquei por ali, encostado a um muro,
esperando que na janela aberta da ampla sala do casarão de dona Ismênia alguém
aparecesse, algum sinal se fizesse.
Queria revê-la.
Tinha ouvido pouco aquela voz, em lojas do centro, e me encantara com aquelas
vogais aleatórias, meio tirânicas, meio agonizantes, que havia pouco tinham de
novo se mostrado na verdadeira imprecação que ela soltara, ao afastar-se da
praça da igreja. Era como se ouvisse uma rainha desconhecida emitir um protesto
mais que legítimo, indignado, exasperado na ferida de seus direitos, para
súditos obtusos que mal se davam conta de sua realeza. E à janela ela apareceu,
sem me olhar – por que me olharia? -, acompanhada por dona Ismênia, que
procurava acalmá-la.
As duas ficaram
algum tempo em sussurros, em gestos que pareciam entre enfáticos e irritados da
parte dela e persuasivos e resignados da parte da sogra, até que pela rua
passou a carroça do “figueiro” que,
soprando sua corneta, tirava o chapéu para elas e oferecia seus miúdos de boi.
Fez um largo aceno para mim, que temi então ser notado e me retirei depressa,
mal tendo coragem de conferir se as mulheres me olhavam de lá. Ainda me seguiu,
o homem, gritando meu sobrenome, alegre, estalando o relho sobre seu cavalo
velho, soprando na corneta a musiquinha melancólica com que anunciava sua
mercadoria. Os fígados, que minha mãe chamava de “figos” e não havia como corrigi-la, eram muito constantes em casa,
temperados com muito alho por meu pai. Eu fugia de sua visão, sangrenta demais,
sob a faca de minha mãe, na tábua de bater carne. Não gostava de ver as mãos
dela manchadas daquele vermelhão-carmim profuso. E nem de ver os lábios de meu
pai sujos daquela cor.
A visão sempre
incompleta da mulher me obcecava, e escrevi um “Anna” – tinha que ser isto! –
em letras garrafais em meu caderno de desenho, uma cor para cada letra. Depois,
ocorreu-me procurar em enciclopédias dados e imagens sobre alguns daqueles
países de onde podia provir: seria a Noruega, com seus fiordes, as geleiras, as
noites de muitas cores? A Finlândia, mais gelo, as mulheres de olhos de cinza
cintilante, a capital Helsinque, com tudo que de frio e fantasmagórico se
escondia sob este nome? Oscilando entre os países escandinavos, pedaços da
Alemanha, da Áustria, de Bulgária e Hungria, mapas que me confundiam, imagens
que se misturavam às de alguns filmes vistos no cine Real, tracei com precisão
pela qual me congratulei a história de que precisava.
Era a de um
homem jovem, um brasileiro em férias, sem preocupação com dinheiro que o
deixasse com prazo inexorável para voltar, achando-se importante pelos elogios
recebidos por sua arte, cofiando um bigode grosso, parando em alguma cidade
daqueles lugares muito frios onde podia vestir-se com um tipo de elegância
muito, muito esporádico na sua terra de origem.
Fora parar muito
ao Norte, e a mulher, conhecera-a numa certa noite, à saída de um cinema. Sob
as luzes do letreiro de néon, aqueles olhos claros não eram um pouco como os de
Maria Schell? Ela tremia muito, e ele a abrigara sob seu casaco mais pesado,
levando-a a tomar uma bebida quente num bar próximo. Pouco falando de sua
própria vida, sabendo mal e mal um Espanhol de mulher que precisava arranhar
alguns outros idiomas, revelou-se, confiou nele, com ele ficou. Não tinha a que
se agarrar na sua pátria – qual era mesmo? – e balançava a cabeça, triste,
incrédula, quando ele lhe perguntava da família. Estava disposta a segui-lo, a
ser levada para onde quer que fosse. E ele a traria de volta ao seu país como
um trunfo europeu, poderia exibi-la nos círculos da capital, onde seu nome de
teatrólogo contava, impressionar os machos broncos do interior com a mulher
estrangeira, “esse Lúcio, besta é que não
é...”
“Anna” ou Maria
Schell, ela ou quem ela fosse, vi-a entrar para ver um filme francês proibido
para menores de 18 anos (inútil eu tentar entrar: o gerente, à porta, tudo
sabia sobre a idade dos adolescentes da cidade e reconhecia de imediato as
falsificações toscas nas carteiras de estudante) e, sob o letreiro do cine
Real, único de néon no centro, ela, meio irreal de banhada pela luz rosa-lilás,
com o atrevimento de mulher que andava sozinha entre aqueles olhares e ia ver
cenas que os imberbes só podiam imaginar, era decididamente a moça encontrada à
deriva pelo brasileiro naquele país de casas de boneca, árvores de folhas
castanhas, céus de cartão postal e língua meio infantil.
Esperava ser
notado por ela? Não havia motivo nenhum para que olhasse para um esboço de
homem. Mais que vê-la, pude ouvi-la, porque cantava com entusiasmo, misturada
às fãs e ao público disposto a aplaudir quem quer que fosse, num show em praça
pública de Roberto Luna. Lá do alto, ele se esmerava em “O relógio”, que ela
sabia acompanhar no seu portunhol peculiar, e, junto com outras mulheres, sem
se importar nem um pouco com o que pudessem achar de seu comportamento, correu,
ansiosa, a tentar agarrar um dos pentes que ele atirava do palco. Conseguiu, e
enfiou o pente no busto, olhando com os olhos luminosos para o cantor, que não
via lá embaixo senão uma massa difusa de adoradoras, e batendo palmas com muita
força, menininha.
Espantava-me que
ouvisse um cantor popular, que se misturasse à turba, porque a julgava
associada a um tipo de música que eu não compreendia, mas que me parecia mais
digna de sua figura e origem, mais refinada.
A música que uma
vez eu ouvira, ao fundo, quando ela se pusera à enorme janela do casarão da
sogra, e eu passava por ali. Ensimesmada, estava presa a uma peça instrumental
vinda de uma vitrola da mais precisa fidelidade, em alto volume, e meio que a
entoava, nuns murmúrios e grunhidos, olhando para lugar nenhum, não vendo nada
do que pudesse estar acontecendo na rua e nas calçadas.
Era uma espécie
de dança. Sugeria, à medida que eu a ouvia com mais cuidado, mais avidez, uma
caverna gelada onde, em algum canto, houvesse fogo, fogo providencial de uma
noite do mais profundo inverno setentrional. Uma mulher dançava, dançava, sem
pensar em nada além da dança, sem tempo para parar, consumindo-se na música e
no calor, enquanto um homem a contemplava, também sem outro cuidado que não
deleitar-se na forma hipnotizada e hipnótica, sua dançarina ali, dançando só
para ele.
Os acordes
daquela dança, um pizicato a ressoar
na escuridão fria, e Anna à janela, me pareciam, pela primeira vez, uma entrega,
uma tradução verdadeira de quem era ela, do quanto estava perdida de sua
pátria, do tamanho de seu desterro. Senti-me desterrado também, e quis, com
violência, que ela fosse minha um dia, que eu pudesse protegê-la, ser o
guardião do fogo na caverna, seu homem, seu único contemplador.
Foi a única vez
em que creio que, olhando para tantos lados que não eram senão olhares para
dentro de si, olhou objetivamente para mim. Creio que notou, mas sem
hostilidade, que alguém a olhava. Mas, a seguir, já não notava nada. Seguia
entoando, baixinho, mas com o que eu supunha ser como uns soluços de choro
oblíquo, aquela dança da mais remota caverna.
- Ninguém sabe, Leonel...
Eu entrara na
cozinha, e à mesa do café essa frase estava no ar. Minha mãe se calara imediatamente
ao notar a minha presença, e puxara a cadeira, submissa, para o segundo homem
do aposento. Lançou um olhar comprido, um pouco embaraçado, do marido para o
filho. Parecia encurralada por duas forças contra as quais pouco podia.
Ninguém sabia o
quê? - era o que eu perguntaria, se tivesse coragem. Meu pai, achando que
talvez a cessação da conversa que vinha tendo com minha mãe tivesse me parecido
abrupta demais, contou, num tom atenuante: - Ah, sim, a nora da dona Ismênia...Fuxico. O pessoal estranha que deu,
agora, pra ir demais ao cemitério.
- Passa horas lá...Credo! – minha mãe
soltou, correndo a ir tirar uma chaleira do fogo.
- Natural. Sente saudades...- meu pai
disse, sorrindo. – Viúvas, você sabe...-
sussurrou e piscou para mim, enquanto minha mãe fazia por não ouvir esta parte.
- Não é certo, Leonel. Outro dia não queria
sair de lá do pé do jazigo da família, e já era quase de noite. Ficar lá, no
escuro, no meio dos túmulos! – minha mãe balançava a cabeça e só não
apertava um rosário, fremente, porque não havia um rosário ali; em todo caso,
persignava-se. Delfina, sua informante, era amiga do coveiro-zelador,
naturalmente, e as idas constantes de Ana ao cemitério deviam ter se propagado
de tal modo que não seria de espantar que moleques se pusessem em cima daqueles
muros para vê-la rezando para seu falecido. “A
gente nem sabe de que religião é. O finado, religião não tinha... A gente bem
sabe o que dona Ismênia padecia com esses ateus, esses hereges...”
- Lá pra cima, por aqueles países, diz que é
tudo protestante...- meu pai dizia, para deixar minha mãe ainda mais
assustada.
- Lutero!
Valha-me Nossa Senhora!
Meu pai apanhava
seu boné de condutor da jardineira que fazia o trajeto entre a cidade e uma
cidade maior, uma espécie de pequena capital da região, apagava o cigarrinho da
manhã e saía. Da quase-aldeia cercada por cafezais onde Lúcio encontrara aquele
fim inexplicado, parada do veículo modesto e empoeirado, trouxera algumas
conversas, que me contara um pouco ironicamente, ciente de que só a outro homem
podiam ser contadas: podia ter sido um caso de ciúmes, ele tomava liberdades
demais com as pessoas, com aquela intimidade fácil e imediata dos acostumados a
certos ambientes de metrópole. Havia mulheres, algumas da melhor sociedade
daquele buraco, encantadas por aquele bigode, aquela conversa insólita para os
padrões do lugar. “Até hoje falam do moço
bonitão por lá. Mas, saber quem foi que matou, dessa parte ninguém fala nada...
Pode ser gente de sobrenome. Ninguém vai
arrancar nada dos moradores. Isso que você gosta de ler aí, nesses livrinhos de
crimes, investigações, detetive, isso nunca vai existir a sério por aqui. O povo se cala mesmo, e
policial, tudo bronco, tudo compadre ou afilhado de alguém...”
Eu já não podia
me entusiasmar com fósforos de cor, que eram tidos por coisas de menino pequeno
ou menina. Era mais apropriado que me interessasse pelos busca-pés, mais
excitantes e arriscados, pelas bombas maiores, rojões comuns ou de vara. Mas o
dinheiro era escasso e eu mais olhava para as ofertas de fogos, trazidas mais
para frente das lojas, expostas e cobiçadas por grupinhos que iam se formando
na calçada da rua principal.
Haveria uma
festa de São João muito esperada, sempre celebrada num terreiro extenso de um
casarão à saída da cidade. Queria poder comprar aquele vulcão ou rojões de
lágrimas, de preços muito altos, e o dia demorava a passar, e eu não levaria
senão uma meia dúzia de bombinhas de pouca potência, mas poderia – se desse
certo – me juntar aos grupos de homens adultos que ficavam encarregados dos
longos e perigosos rojões de vara, admitido por minha calça comprida, minha voz
já mais grossa – eu tinha que ter o direito de conquistar o céu com aqueles
projéteis.
Meia cidade
estava convidada para aquilo – muito quentão estava sendo feito e, das ruas,
moradores em bandos acorriam, alegres. Dona Ismênia iria – e foi – numa espécie
de comitiva, incluindo Delfina e alguns parentes e empregados e, quieta,
vestida com discrição em seus beges e um casaco com gola de pele branca desconhecida,
cabisbaixa, a nora a acompanhava.
Rezou-se o terço
– ladainhas de não acabar, de exasperar, bolo de gente que não me permitia ver
nada, só cabeças, e lá em algum canto, no interior da cozinha, a mulher que
puxava a reza, uns risinhos abafados de crianças, um nervosismo de espera pelo
melhor, que logo viria, sim, mas, como tardava ! Quando o bando disparou, ao
final dos muitos “rogai por nós”, Ana não se dirigiu à área coberta com pressa,
olhava para o céu, para os lados, puxava um galho de árvore baixa, distraía-se.
Depois, numa mesa estreita e comprida, coberta por amendoim torrado, doces e
tachos de bebida, dona Ismênia ganhara o centro, e sua comitiva se punha em
torno, misturando-se aos outros. A mulher olhava com suspeita, com cuidado e
desdém, para o chão de terra batida, temendo sujar-se, e estava disposta a não
mover-se da espécie de trono que lhe fora natural ou involuntariamente
destinado. Havia gente bem vestida para a noite que talvez nem fosse tão fria
para aquilo a que Ana estava acostumada, mas ela se arrepiava, ela se encolhia
em seu casaco.
- Olha só...- Uma mocinha apontou-a – Será que alguém vai ter coragem de dançar
com ela? – Olhava para as roupas, analisava-as invejosamente, chamava
companheiras – Melhor que fique no seu
canto. De luto eterno... - E nada mais pude ouvir, porque a sanfona
ergueu-se alto, num dobrado popular, que arrancou todos de suas posições,
estivessem sentados ou em pé. O
arrasta-pé começava.
Era o que havia
de melhor, esse fogo, o gengibre a arder nas gargantas, o gosto das grossas
paçocas, os bolsos cheios de amendoim torrado, os pedações de batata-doce, e o
pó levantado por aquelas pernas, o cheiro de pólvora, de noite, de capim
fresco, de um mato que nem estava tão distante. Para lá, para aqueles lados de
um verde-escuro, encaminhavam-se alguns homens, que não tinham paciência para
esperar numa fila formada à porta de um banheiro.
Seguiam rumo a
qualquer canto propício para mijar alegremente em grupos, rindo, brincando de
dançarinos ao som da sanfona, soltando vivas, gritando, provocando-se,
comparando-se, zombando dos complexados que não se arriscavam a competir. E eu
me juntava a eles, timidamente, do lado dos mais fortes. Com outros rapazinhos
e moleques, ia em busca de lenha para atirar numa fogueira, que se avolumava.
Disputávamos quem traria a maior acha, ríamos. Sempre, a cada movimento, por
trás de faíscas, contra o fundo negro do céu, lá entre os que dançavam, estava
a mesa, para a qual meu olhar se voltava, mas tudo que via era a cabeça
imponente de dona Ismênia, que sorria e aprovava, feito fizesse uma
condescendência a súditos, e Ana prosseguia quase imóvel em seu lugar, bebendo.
Mais gente chegava, e dessa vez eram vários casais com ares de importância,
mulheres que se esquivavam das fitas penduradas de papel de seda como se
atrapalhassem a precária arrumação de seus penteados, figurões de paletó e
gravata que acenavam, que estufavam os peitos engomados e pareciam embevecidos
pelos próprios papéis. O sanfoneiro os saudava com vivas e improvisos especiais,
reconhecendo-os, chamando-os de doutores, bajulando-os.
Impossível saber
quanto tempo decorreu até que o quentão começou a me parecer excessivo, meu
rosto esfogueado, e um medo de bambear, desmontar, ser gozado, tripudiado,
carregado para casa, me assaltou. Precisei me esquivar, me forçar a andar pelos
matos laterais, deixando lá no fundo o vermelhão de brasas e luzes da festa,
procurando recuperar a frieza, a continência que se esvaíra. Voltei depois, sem
que minha saída ou chegada por ninguém fosse notada. Ia agora erguer-se o
mastro, e muita gente ao redor da escavação, disputando a pá e o enxadão,
rindo, gritando, enquanto rojões eram acesos por um e outro, fósforos pedidos,
candidatos a fogueteiros rechaçados, chapéus atirados para o alto. Duas jovenzinhas
tinham cortado mechas de seus cabelos para enfiar no buraco que se cavava, à
espera que, de lisos, ficassem crespos, como os de São João, cuja imagem ia
apontando, entre fitas, no alto do mastro que se fincava. Depois, a sucessão de
gritos se alternou a mais cantorias, e, na cobertura, que era sustentada por
estacas de eucalipto, a sanfona voltou a tocar.
Agora, eu tinha
vontade de circular por mais perto da mesa de dona Ismênia e sabia que poderia
fazê-lo sem ser sequer percebido. Nos vazios que ficavam na mesa, à medida que
homens e mulheres se levantavam para dançar, eu podia ficar a uns três metros
de Ana, olhá-la, olhá-la com uma minúcia despudorada que ela não reprovaria. Se
ela se virasse, eu estaria perdido, com minha expressão que na certa era de um
êxtase abestalhado.
Súbito, quem se
levantou foi ela, e houve certo murmúrio, algumas cabeças se voltando para sua
figura decidida, talvez a única mulher presente que andasse com graça e
segurança na terra batida. Do outro lado, perto da esposa, que segurava uma
bandeja de paçocas, um fazendeiro se perfilava, orgulhoso, e virou-se,
surpreso, quando Ana deu-lhe uma batidinha no ombro. Ele arregalou os olhos e
ela estendeu-lhe os braços, para que os dois dançassem. A mulher, claramente
indignada, ao invés de olhar para ela, olhou para dona Ismênia, com um olhar
que pedia uma providência. Mas, já nada havia a fazer, porque o sanfoneiro
gostara da brincadeira e agora executava uma valsa muito propícia, das
dolentes, que sabia estar entre as preferidas do homem. Este era alto, um
sorriso de muitos dentes radiosos e regulares, barbeado, vigoroso, pé-de-valsa,
um elegante, um trunfo óbvio para a esposa, que largara a bandeja e ia direto à
mesa de dona Ismênia, agitada.
- Nunca vi isso aqui... Tirando um homem
casado pra dançar!
- Deixa, Bibi. Não tem nada. Estão se
divertindo, olha.
Todos olhavam e
alguns pares se desfizeram, enquanto outros, gostando da música mais lenta,
procuravam imitá-los. Ana só olhava para seu par, e eu engolia a visão daquele
paletó, daquela gravata, daquelas calças de vinco perfeito, as pernas robustas,
os giros firmes, sem uma única falha no conjunto de uma masculinidade que se
aproveitava bem do roçar, do entrelaçar, do sussurrar, ah, devia se aproveitar,
e era preciso admirar, era preciso reconhecer que ninguém dançava tão bem
quanto os dois, que nenhum homem seria mais apropriado para ela, toda em
sorrisos, corada, derretida, e, decididamente, nervosa.
E não foi que de
repente o homem recuou, um salto para trás desajeitado e grosso, demasiado
visível para todos, soltando um palavrão?
Eu não vi o que
acontecera, mas aquela reação. E me ergui também. Mas, dona Ismênia se ergueu e
pôs as mãos na cabeça. Ela, bem como a esposa e outras mulheres amontoadas do
outro lado, tinham visto o que Ana fizera com a mão. E estavam estupefatas.
Coisa que se
faça? Adelino estava muito ofendido, agia como um deus lisonjeado e indignado,
mas o prazer estava em portar-se como indignado, decididamente – não ia ser
complacente com uma coisa dessas, que podia ser feita sim era no escuro, e por
iniciativa dele, se a tipa fosse depravada, e ali estava Bibi, de quem se
tornara marido e ornamento, que ele não podia afrontar. Como se para
proteger-se e definir o território onde seu melindre seria compreendido e
apoiado, foi para o lado dos homens, juntou-se a eles, passou um lenço pela
testa, que parecia suar. Alguns de seus companheiros tentavam disfarçar o riso
malicioso, outros, para rirem mais folgadamente, se afastavam. Conversavam com
ele baixinho, ele explicava, tentava rir, mas era preciso a carranca de santo,
que diabo? - já se viu uma mulher fazer isso em público, provocar macho desse
jeito? Silêncio da sanfona, dos rojões, da noite toda, e ninguém querendo ou
podendo dizer nada.
Dona Ismênia
aproximou-se dela, que ficara no meio do terreiro, perplexa, a mão no ar,
querendo insultar, querendo chorar, querendo que a música continuasse – o
sanfoneiro de cara fechada, surdo a seus apelos para que tocasse. Ia dançar
sozinha, a diaba?
A sogra murmurou
alguma coisa para ela, que olhava para cima, que clamava ao teto de fitas e
bandeirinhas o quê? Esfregava as mãos, depois as soltava, girava, oh, a voz, a
voz, e as vogais atropeladas, e um pouco de Espanhol, e vestígios de um
Português angustiado. Dedo enfiado na boca de vez em quando, ela batia na
própria mão, repetia. Explicações. Dona Ismênia não aceitaria nenhuma. Impunha,
com o indicador, um sermão a que ela resistia, resistia, desesperada, olhando
para os lados, ninguém que a socorresse. Eu estava em pé. Queria dar um
passo. Não podia.
Adelino, que
saía do grupo dos homens arrumando a gravata, quase aplaudido, era abraçado por
Bibi. Esta conseguira a adesão de uma fila de mulheres, e saíram todas,
passando por dona Ismênia e a nora sem olhar, ou olhando para a segunda com um
desprezo sem limites e coberto pela mais legítima das razões. Alguém lá fora
voltou a gritar, um grupinho acorreu para soltar novo rojão de vara. E eu fui
para casa, olhando para trás.
Era história de que minha mãe nada podia
falar, e nada disse. Os dias se sucediam, e nada parecia ter acontecido para
ela, ocupada com sua enorme vassoura de varrer picomãs no teto sem forro, com
suas galinhas, sua horta, suas toalhas, guardanapos e bordados. Meu pai, tal
como fizera com outras histórias, veladas e picantes, a assimilara bem
lentamente, comentando-a um pouquinho a cada dia, às saídas para o trabalho,
depois do café, geralmente quando estávamos sozinhos, e, ainda assim, em
sussurros interrompidos quando minha mãe entrava.
Ela nada ignorava, mas saber, naquele caso,
para uma mulher como ela, era de uma baixeza impensável. O escândalo era
daqueles que impunham silêncio. Afinal, esperar o quê de uma mulher daquelas? e
o bom, no fim das contas, fora que dona Ismênia a tirara com jeito da cidade,
numa manhã em que viram-na, com umas poucas malas, entrar num carro de praça
alugado pela sogra – o motorista, um conhecido de meu pai – e ser tragada pela
estrada de saída.
Era mandada para onde? Meu pai tinha os
olhos brilhantes ao imaginar, e imaginava, imaginava, com satisfações
especulativas bem mudas cujos sinais eu captava sem entender, intrigado. Puxado
para um canto do corredor, a mão direita no meu ombro, no colarinho do uniforme
de condutor o cheiro de uma loção de barbeiro, uma semana depois, eu o ouvi
contar, que o acontecimento lhe rendia indignações e excitações infindáveis,
ainda: - O Adelino...- ria – que felizardo e que grande idiota! Podia ter
ficado quieto, combinado alguma coisa pra depois...
Não gostava do fazendeiro pela boa razão
masculina de que era obviamente um pouco bonito demais e, pior, sustentado pela
mulher, mais velha que ele, e disputado por outras mais jovens: - Vaidoso, insuportável... Te juro que ela
não encheu muito a mão. Ali o que tem é só pompa, fachada, pouca eficiência,
nada fora do comum – e, pensativo, sorria para si, lembrando de algo bem
preciso e cômico que não ia me contar; cuspia de lado, ria outra vez, batia com
força em meu ombro, gostava que a minha cara de inexperiência ficasse um pouco
corada, que tivesse o que me ensinar.
Mas, quanto ao que eu aprendia, era obscuro.
Atravessava dias de céu mais fechado, pouco afeito a sair de casa, a ir ao
armazém, a passar pela casa da professora. A festa de São Pedro era a menos
popular das três, por ali, e seu caráter de desfecho a tornava sempre mais para
triste. Eu não iria. Convidado a um ou outro terço, meu pai citava casas, nomes
de famílias, mas, como suas saídas eram para outros rumos, era de pouca
religião e só satisfazia à minha mãe indo a uma que outra missa bem
esporadicamente, não se importava, “negócio
de terço é uma ladainha muito chata”, ele dizia e ela suspirava, com uma
raiva apagada, e eu ficava pensativo, no canto de mesa, ajudante seu na escolha
do feijão, afastando lentamente grãos mais escuros e pedrinhas, Ana mais viva
em minha cabeça do que aqueles dois.
Que meu pai fosse para onde fosse – quanto a
mim, tinha meu rumo – um tanto do casarão de dona Ismênia, um tanto da praça,
onde se montara aquele palco para a apresentação de Roberto Luna, um tanto da
igreja, de algumas lojas, e, por fim, ir para a rua do cemitério, sob o sol da
tarde, sem me importar com os que vissem me entrando. Olhava, remirava o jazigo
da família França, e a fotografia de Lúcio estava ali, os olhos, o cabelo de
topete, a boca fina, o bigode farto. Olhá-lo, olhá-lo demoradamente, dava-me a
sensação de que o fazia por ela, de que a satisfazia assim, de que o meu olhar
era o olhar seu que não pudera se deter, ficar, prolongar a contemplação,
refazer o falecido por obra de fixação, de saudade.
Por vezes voava baixo um tico-tico ou outro,
o pulinho entre túmulos, o cemitério todo muito quieto, aqueles muros
descascados, irregulares em altura e conservação, dando para matas muito
próximas às últimas casas da cidade. Para mais além, ventava macio numa figueira das mais velhas. E eu me
lembrava do frio das noites. E uma pequena alegria, prenunciadora de eu não
sabia o quê, me arrepiava.
Passava a mão por cima de meus lábios,
sentia a promessa de um bigode, tornava a olhar para Lúcio, que o tinha tão
pleno, que, de lá de dentro de sua fotografia, veemente, me infundia gestos, me
alimentava. Ao sair do cemitério, me sentia mais alto, magro, já dotado como
ele, já um pouco velho. Puxava o cabelo com mais força, enfiava as mãos nos
bolsos e ia de volta para a cidade, assoviando.
Era a música da dança, cujo nome um dia eu
haveria de saber.
"Estrela de Junho" integra o livro de contos "Hóspedes do vento".