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29 de março de 2016

Revivendo leituras passadas - A mulher que escreveu a Bíblia: Moacyr Scliar



(A eternidade e o desejo: Inês Pedrosa)


Prezados clic-leitores,

Foto do perfil de Antonio RodriguesPassando aqui para compartilhar um pouco das minhas impressões de  A mulher que escreveu a Bíblia com aqueles que por um motivo ou outro não puderam comparecer à reunião da última sexta-feira e para aprofundar algumas questões discutidas com amigos presentes. Uma reunião, diga-se, muito agradável e produtiva, como há muito eu não via. Perdoem-me quaisquer erros que porventura hajam na redação do texto, que foi digitado às pressas agorinha, antes da viagem de volta do trabalho. 


Nunca havia lido Moacyr Scliar. Foi uma boa experiência. A “Mulher que escreveu a bíblia” é leve e divertido. O escritor faz opção por uma linguagem “solta”, mesclando coloquialismos, estrangeirismos e palavras e expressões chulas.  Ou seja, embora a personagem-narradora seja catapultada quase 3 mil anos no passado, por meio de uma Terapia de Regressão, seu discurso é contemporâneo e informal. Só como nota, aquela palavrinha com a qual Benito nos aguçou a curiosidade geral, “dildo”, é estrangeira (inglesa) e é uma espécie de brinquedo sexual, um objeto de prazer que simula um pênis, como bem nos informou Benito, demonstrando um profundo conhecimento das eroticidades modernas e seus objetos de prazer.

Achei interessante a fonte de inspiração, textualmente admitida por Scliar: “The book of J”, um livro de autoria daquele que é considerado por muitos como o último grande crítico literário clássico em atividade, Herald Bloom. Nesse livro, Bloom defende a tese de que a Torá (os cinco primeiros livros do antigo testamento) teria sido escrito por uma mulher da corte do Rei Salomão, no século X antes de Cristo. Scliar toma emprestada essa tese e cruza com a tradição teológica que diz ter sido o Rei Salomão, após construir o seu suntuoso templo, a convocar um conselho de anciãos para escrever a história de Israel (a Bíblia ou, naquele momento da história, parte dela). Daí se dá uma série de importantes questões que me fazem discordar de alguns amigos leitores do Clube que classificaram a obra como entretenimento. O fato de trazer o riso (existe aí a questão do humor judaico, lembrando a origem do autor) e uma carga pesada de ironia e carnavalização do texto bíblico, não faz o livro menos sério em abordar questões como a inserção da mulher na sociedade, o patriarcalismo, o machismo, o poder político e religioso etc. Aqui concordo com a Prof. Rafaella Berto Pucca em seu trabalho para o “XI Congresso Internacional da ABRALIC, Tessituras, Interações, Convergências”, realizado em São Paulo, em Julho de 2008, que destaca um importante aspecto dessa obra de Scliar:


“Eis a justificativa de presenciarmos no segundo relato, ponto alto da obra, uma narradora protagonista que vê com os olhos da contemporaneidade suas experiências vividas em um tempo anterior. É o rever a História, recontá-la sob outros olhares; no caso do romance, refletindo a postura feminina frente ao discurso religioso-eurocêntrico que sempre a marginalizou. Em outras palavras, ao assumir a tarefa do registro, a narradora passa de objeto da vontade masculina, papel que lhe foi designado historicamente, para sujeito do próprio discurso, desconstruindo-se o significado tradicional de respeito e subserviência a uma verdade central, autoritária e incontestável. Temos, assim, o olhar ex-cêntrico fora do centro instaurador da ordem, o olhar das margens ou periferias do sistema que no caso é o de uma mulher como o de tantas outras caladas nas versões oficiais.”


Outra questão que me fez dialogar mais profundamente com o livro é a questão da “potência da escrita”, que foi o tema abordado de forma brilhante por nossa querida amiga e biblioterapeuta Cristiana Seixas. Ela destacou um fragmento, eu lhes deixo aqui outros que destaquei em minha leitura:


“Que emoção. Deus, que emoção. Eu olhava aqueles vacilantes traços com a satisfação  de  um  artista  contemplando  sua  obra-prima. “

“Sentia-me leve, solta, como se o ato de escrever, uma letra, uma única letra —  tivesse  me  libertado  de  um  passado  opressivo. “

“Bastava-me o ato de escrever.  Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra,  era  algo  que  me  deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que uma letra atrai outra, que uma palavra atrai outra, essa afinidade organizando não  apenas  o  texto,  como  a  vida,  o universo. “  


              Outra questão que me envolveu na narrativa foi a promoção do feminino, da mulher como protagonista e artífice de sua própria história. Aqui se insere, por exemplo, a discussão sobre a sexualidade feminina. Na reunião, um cliceano se referiu à protagonista como “safadinha”. Deduzo que isso se deve ao fato dela expressar seus desejos sexuais e satisfazê-los mesmo que solitariamente, caso do “dildo-pedra” que preenche seu vazio sexual, sua solidão de prazer. Ora, por que é vedado à mulher expressar seus desejos  e buscar a satisfação sexual se ao homem isso é permitido sem maiores traumas? Um dos elementos mais questionadores e subversivos implícitos na narrativa em relação a isso, a meu ver, é o fato de Salomão ter sido ensinado nas artes do sexo por um de suas concubinas. Depois há a rainha de Sabá, que se comportará na corte do rei com enorme liberdade sexual, incomum para a época, diria até improvável, mas que na narrativa ganha força contestadora. Além disso, há o caso da traição da concubina-professora, caso público não punido pelo rei, o que também não me parece provável essa aceitação do Rei diante de clara afronta à sua honra, o que só me parece compreensível como elemento contestador inserido na narrativa.

             Para fechar, uma questão levantada pelo nosso amigo cliceano Daniel Chutorianscy, que na reunião afirmou categoricamente que o centro do romance era a brochada do Rei Salomão. Embora tenha despertado boas gargalhadas e divertidos comentários, a questão pode ser refletida de forma um pouco mais séria, o que acredito ter sido mesmo a intenção do Daniel em relação ao caso da brochada. No meu caso, pensando um pouco sobre o romance, me dei conta de que esse foi o segundo episódio do livro em que a protagonista submete o poder do homem. Nesse caso o Rei Salomão perde sua potência sexual, sua virilidade de Rei possuidor de mil mulheres, que desaba diante de apenas uma. O primeiro momento foi quando a protagonista submete o poder da escrita exclusiva dos escribas na redação das sagradas escrituras e passa ela mesma a escrever a Bíblia. O terceiro momento se dá quando o Rei abdica de seu direito de jugar o pastorzinho, momento em que simbolicamente a mulher ascende ao trono e absolve o réu. A mensagem dessa cena talvez seja política.  O crime do jovem fora político, mas um crime político que envolvia uma obra do egocentrismo político do Rei, uma obra para inflar o ego de Salomão e eternizá-lo na história. Diante disso, a mulher rompe com essa lógica perversa do poder pessoal do Rei e concede liberdade ao jovem; e o Rei se submete a decisão da protagonista. E ao final, num lapso de liberdade, a mulher abandona o harém e a posse do rei e se lança ao mundo em busca de sua felicidade...


Um grande abraço a todos,

Antonio Rodrigues






Caro Antonio


Primorosa a sua análise sobre o livro em questão.

Por vários meses venho sendo impedida, por motivos que fogem ao meu controle,de comparecer aos agradáveis encontros do CLIC.

Vejo,no entanto,por infelicidade um aparte :"safadinha" em relação à liberdade da mulher em usar seu corpo buscando o próprio prazer,no caso,negado por sua "feiura".Isto não cabe mais.

Outro aspecto,a questão da "liberdade" da autora em escrever a Bíblia.Não houve esta liberdade.Ela foi obrigada a aceitar a versão dada pelos anciãos aos fatos bíblicos.A versão dela foi definitivamente CENSURADA.

AMEI o livro por sua contemporaneidade de linguagem e abordagem.

Mistura política,sexualidade,machismoXfeminismo numa linguagem franca,moderna e bem humorada.

E fica evidente um trabalho,do autor,em resgatar "direitos" que a mulher deve ter em relação a si mesma e sua posição na sociedade.

gde abraço a todos e espero estar presente aos próximos encontros.


Mariney





Bom dia, grupo

Antonio, adorei seu relato. Abordou todos os pontos principais e, à la Scliar, nos brindou com bom humor também, oportuno e inteligente.

Mariney, prazer em falar com você. Sobre a questão que vc trouxe da mulher ter tido sua versão da bíblia censurada pelos anciãos, sim, houve isso, mas gostaria de compartilhar algo que discutimos também na reunião, se não me engano foi na fala da Cris. A mulher teve que escrever nas entrelinhas, enfrentou a censura e transgrediu-a com criatividade e astúcia, passando de outro modo a mensagem original. Eu concordo com esta interpretação, e você?

Beijos a todos,
Rita 

Rita Magnago




Querido Antonio, 

parabéns por sua análise do livro do Moacyr Scliar: perfeita, nada a acrescentar! 

Fiquei entusiasmada quando o Grupo decidiu fazer a leitura do livro. Escrevi várias páginas para comentar, abordando as características mais marcantes para mim. Tenho sua obra completa, sou profunda admiradora desse grande escritor, um presente para a Literatura brasileira. 

Era meu amigo: nós nos conhecemos em evento acadêmico no Rio Grande do Sul. Trocamos idéias e a amizade foi imediata. Rimos muito quando ele foi convidado para tomar posse na Academia Brasileira de Letras: esperavam um discurso pomposo, mas ele conseguiu dizer tudo em poucas palavras, como os grandes sábios.

A questão da 'feiura' e da 'loucura' é tratada de forma inusitada, extremamente irônica, bem do jeito do Moacyr, não apenas na 'Mulher que escreveu a Bíblia', mas no 'Mistério da Casa Verde', 'Câmera na Mão, 'O Guarani no Coração', o premiado 'A orelha de Van Gogh', 'Sonhos Tropicais', 'Os Leopardos de Kafka', 'A Majestade do Xingu', entre outros livros. O feminismo e a importância da leitura, da escrita, são recorrentes, com uma visão crítica da política, da sociedade.

Ele prefaciou meu 18º livro, denominado 'Perplexidades & Similitudes' por sua escolha. O título original seria 'Arquivivo', mas ele achou que levaria leitores a pensar que era um livro sobre 'depressão', e sugeriu que o título fosse o nome de seu conto favorito. Rimos muito! 

Ele afirma no prefácio que o livro é um 'banquete literário, Literatura com L maiúsculo, que Clarice Lispector aplaudiria'. Achei um exagero! Mas quando ele morreu, resolvi publicar segundo sua orientação. 

Sinto muita saudade daquele jeito de viver que encantava não apenas sua família, os pacientes, mas todos os alunos, colegas, leitores, amigos. Parecia o Luís Antonio Pimentel, outro grande escritor brasileiro, que ainda está vivo e merece todas as homenagens.

Considero a leitura da obra de Moacyr indispensável para qualquer discussão sobre a verdadeira literatura brasileira. A importância de termos esse grupo de leitura é imensurável. E comentários como o seu estimulam mais ainda a ler e escrever: parabéns!

Tenha um ótimo Natal, com muita saúde, paz, alegria, felicidade! 

Abraço carinhoso,
Cyana Leahy
Professora (UFF), escritora, tradutora







Ó Senhor, o que fizeram do meu Texto?


A funda de Bate Seba nocauteia o "pequeno" Davi


Querido Evandro,

acho ótima ideia ler a Bíblia. Leio diariamente, e me surpreendo sempre com a precisão social, cultural, política e econômica totalmente adequada aos tempos atuais. Meu exemplar é assinado por meus filhos, ainda bem pequenos. 

A maioria das igrejas repete as mesmas ladainhas, mas raramente aborda a profundidade das palavras de Jesus, dos apóstolos, de seus seguidores. 

Acho que Moacyr SCLIAR conseguiu fazer uma atualização da Bíblia de forma bastante criativa! Mas vamos conversar sobre isso daqui a dez dias. 

Beijos, ótimo final de semana!

Cyana Leahy (autora de 'Perplexidades e Similitudes' - livro prefaciado por Moacyr Scliar)
2/12/2014




A abnegação de Ana


Artemisia Gentileschi 



Holofernes (em hebraico: הולופרנס) foi um general assírio comandado por Nabucodonosor. Aparece no Deuteronômio, mais precisamente no Livro de Judite, como rei da Assíria entre 158 e 157 a. C. Segundo relata a Bíblia , o rei de Babilônia Nabucodonosor enviou Holofernes para vingar-se das nações que haviam prejudicado a seu reino. Durante o sítio a Betulia feita por Holofernes, Judith, uma bela viúva judia que se introduziu no acampamento de Holofernes, bebeu com o general e o embebedou, para então decapitá-lo enquanto dormia. Após, ela regressou à Betulia com a cabeça do general e os judeus venceram o inimigo . Fonte: Wikipedia)


ESSAS MULHERES!



"Tua boca cubra-me de beijos
são mais suaves que o vinho tuas carícias
e mais aromático que perfumes é teu nome
por isso as jovens de ti se enamoram."

"Às parelhas dos carros do faraó eu te comparo, minha amada.
Graciosa é tua face, gracioso é o teu pescoço.
Faremos para ti brincos de ouro com filigranas de prata."


"Setecentas são as rainhas
trezentas as concubinas
e numerosas as donzelas.
Uma só, porém, é a minha pomba..."

"Teu ventre é como uma taça
que não lhe falte vinho"





Rainha de Sabá

EU TE AMO, POMBINHA!



Serial husband
Então vieram duas mulheres prostitutas ao rei, e se puseram perante ele. E disse-lhe uma das mulheres: Ah! senhor meu, eu e esta mulher moramos numa casa; e tive um filho, estando com ela naquela casa. E sucedeu que, ao terceiro dia, depois do meu parto, teve um filho também esta mulher; estávamos juntas; nenhum estranho estava conosco na casa; somente nós duas naquela casa. E de noite morreu o filho desta mulher, porquanto se deitara sobre ele. E levantou-se à meia-noite, e tirou o meu filho do meu lado, enquanto dormia a tua serva, e o deitou no seu seio; e a seu filho morto deitou no meu seio. E, levantando-me eu pela manhã, para dar de mamar a meu filho, eis que estava morto; mas, atentando pela manhã para ele, eis que não era meu filho, que eu havia tido. Então disse a outra mulher: Não, mas o vivo é meu filho, e teu filho o morto. Porém esta disse: Não, por certo, o morto é teu filho, e meu filho o vivo. Assim falaram perante o rei. Então disse o rei: Esta diz: Este que vive é meu filho, e teu filho o morto; e esta outra diz: Não, por certo, o morto é teu filho e meu filho o vivo. Disse mais o rei: Trazei-me uma espada. E trouxeram uma espada diante do rei. E disse o rei: Dividi em duas partes o menino vivo; e dai metade a uma, e metade a outra. Mas a mulher, cujo filho era o vivo, falou ao rei (porque as suas entranhas se lhe enterneceram por seu filho), e disse: Ah! senhor meu, dai-lhe o menino vivo, e de modo nenhum o mateis. Porém a outra dizia: Nem teu nem meu seja; dividi-o. Então respondeu o rei, e disse: Dai a esta o menino vivo, e de maneira nenhuma o mateis, porque esta é sua mãe. E todo o Israel ouviu o juízo que havia dado o rei, e temeu ao rei; porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça.

1 Reis 3:16-28




A mulher que escreveu a Bíblia seria uma vida passada da personagem de Scliar. Ela se resolveu com a terapia do narrador.  Alguém no CLIc já fez terapia de vidas passadas para explicar como funciona? Fico imaginando também se funcionaria uma terapia que nos revelasse personagens de ficção com os quais nos identificamos, a exemplo da brincadeira que Gracinda fez no lançamento do livro do CLIc, quando algumas pessoas falaram sobre personagens dos livros lidos com os quais gostariam de se encontrar. Imaginemos então, já que estamos no domínio da ficção, que personagens gostaríamos de ser, gostaríamos de viver, ou representar, ou ficcionar, ...? Uma espécie de terapia de vidas passadas, não necessariamente vidas que tenhamos vividos por algum tipo de artifício metafísico, mas como um exercício de alteridade em que experimentamos vidas alheias como se tivessem sido nossas em outro tempo histórico, ou na ficção. 





"Minha vez não chegava. Os dias se sucediam, e minha vez não chegava. Para matar o tempo, comecei a explorar o palácio - isto é, os locais permitidos, que, fora o próprio harém e seu jardim, eram dois. Um, o pavilhão dos filhos e filhas: centenas de crianças e jovens, ali. De acordo com uma disposição do rei, tinham de ficar separados. Até uma certa idade, a mãe podia cuidar da criança; depois, voltava à sua condição de mulher disponível cem por cento do tempo, e a tarefa de criar os meninos e meninas ficava a cargo de escravos e preceptores. Era um pavilhão enorme, aquele, maior inclusive do que o pavilhão do harém, mas austero, sem nenhuma decoração. Triste ambiente. Tristes eram os olhos postos em mim. Sofriam mais do que eu, aquelas crianças. Pelo menos eu tivera um pai presente. Safado, mas presente. De que adiantava àqueles infelizes serem filhos de um rei poderoso e sábio? De nada. O rei falava com os pássaros, mas não falava com eles. "


28 de março de 2016

E aí, moscou na leitura do mês?



Sermões - Padre António Vieira


Não erre de cidade, heim! O romance não se passa na capital russa, mas em São Petersburgo


Ser ou fazer: eis a questão

Um livro se torna um clássico quando atinge, de modo único, algo de imutável que reside na alma humana. Oblómov ascendeu a esse panteão, muito embora tenha sido a única obra literária de Ivan Gontcharóv que alcançou o estrelato. No romance, publicado em 1859, Gontcharóv fala de um homem da nobreza russa, rico, bem versado nos estudos, mas incapaz de calçar suas próprias meias e que, testado ao extremo por seu amigo e sua noiva, ainda assim opta por uma vida limitada à observação das horas e dos dias. Sua paixão era o sofá, o roupão, as refeições e a contemplação do tempo.
A versão brasileira da obra vem numa edição caprichada em forma e conteúdo da Cosac Naify: tradução e apresentação de Rubens Figueiredo, posfácio de Renato Poggioli, papel-bíblia com separadores decorados e a capa dura revestida em tecido, um livro que remete ao esmero das edições mais antigas.
O romance divide-se, basicamente, em quatro partes. A primeira dedica-se à descrição detalhada de alguns dias de Iliá Ilitch Oblomóv e seu divertido e rabugento criado Zakhar ante a chegada de más notícias de sua aldeia Oblómovka, a constatação da diminuição de suas rendas e a iminência de sua mudança. Apreciar o trabalho de Gontcharóv vale a pena: na dificuldade do protagonista de escrever uma carta ou de pôr-se a resolver qualquer questão, por mínima que seja, encontramos a descrição exata da preguiça, do desânimo, da negligência e do medo — nada que não escutemos de bisavós e que não exista muito vivo ainda nos dias de hoje.
No desenrolar de sua narrativa, Gontcharóv despeja em Oblómov, em trechos bem-humorados, a sátira de uma nobreza russa — fútil e incapaz — em declínio perante as novas habilidades que os séculos 19 e 20 demandariam. No entanto, basta uma reflexão mais profunda para indagarmos se o ideal de vida como “realizar” é realmente maior do que o ideal de vida como “ser”, ou se trata-se apenas de uma exigência dos novos tempos.
Água fria
O ápice do primeiro ato é a descrição sobre o ideal de vida de Oblómov (o tal “oblomovismo”), narrado no capítulo “O sonho de Oblómov”, retirado pelo autor de um conto escrito em 1849 e que, provavelmente, fermentou o suficiente para se transformar em sua obra-prima.

No segundo momento, Oblómov encontra seu amigo Andrei Ivánovitch Stolz, amigo de infância de origem alemã. Ele o impele à ação e, nas férias de verão, apresenta-lhe Olga Ilínskaia Serguéievna. Esta, uma aristocrata, deseja fazer de Oblómov seu herói, apaixona-se por sua ternura e o exorta a se tornar um homem pronto para a batalha da vida. Encantando-se ao ver os progressos do homem apaixonado, Olga se precipita. Ele, por sua vez, acredita no futuro de plenitude e felicidade criado por ambos, faz planos e enamora-se. A preguiça, porém, é maior, e consome as expectativas de Olga e as esperanças de Oblómov em sua própria transmutação e no futuro do casal.
Ao chegar à terceira e quarta partes, porém, Gontcharóv se perde um pouco em seus (ótimos) personagens e no desencadear da história. Após desatar o compromisso com Olga, Oblómov se torna vítima de golpistas russos, seus conhecidos. Na vida real, para um homem que não possui habilidades práticas, isso equivaleria à sua derrocada. Mas Gontcharóv, ao ver aonde levou seu protagonista, considerando suas inúmeras qualidades e bom coração, redime-o de seus defeitos, não tem coragem de finalizar a tragédia.
Gontcharóv deixa-se vitimar por seu próprio enredo e usa a amizade e praticidade de Stolz para salvar o personagem. A sensação, no entanto, é de decepção. Seria como, por exemplo, Shakespeare tornar lúcido seu Hamlet, ou fazer com que Otelo reatasse com sua amada, terminando a tragédia de modo delicado e bom, todos satisfeitos. Certamente, na Velha Rússia, o desfecho escolhido pelo autor seria impossível, e a história toda cai por terra. Gontchárov arremata com um final previsível — o que, para um romance deste porte, não deixa de ser um balde de água fria.
Há, porém, uma reflexão importante que pode salvar a previsibilidade do romance: Oblómov não deixa de ser herói, pois realiza o seu ideal de vida, enquanto Stolz e Olga descobrem que a vida, compreendida por ambos como uma sucessão de “realizações”, descreve sua curva ascendente na juventude, mas finaliza em uma rota descendente. Por tal motivo, Oblómov termina seus dias em harmonia, enquanto os dias de Stolz e Olga são temperados por uma certa amargura.
Finalmente, Gontchárov esmiuça seus outros bons personagens: sem mais nem menos, o autor passa longas páginas a descrever a tristeza de Olga e sua lenta recuperação, com a ajuda do alemão Stolz. Também passa tempo demais para explicar como um homem do calibre de Stolz aceita ocupar a segunda opção na vida de Olga, desafiando o ideal romântico. E se empenha mais outro tanto explicando como os três continuaram amigos depois daquele triângulo amoroso, numa sociedade tradicionalista como a da Rússia no século 19.
Vê-se claramente que o próprio autor se apaixonou por Oblómov (uma autobiografia?) e tem misericórdia de seu protagonista, tanto nas questões práticas como na razão moral. Stolz livra Oblómov dos malfeitores, assume a condução dos negócios de Oblómovka e permite que o amigo preguiçoso tenha um fim bem próximo do sonhado: entre o tiquetaquear do relógio, observando a algazarra das crianças e o trabalho criterioso de Agáfia Matviéievna Pchenítsina, uma conterrânea que se torna sua esposa e que contentava-se em vê-lo fazendo o que mais amava: dormir. Por fim, Stolz e Olga cuidarão das heranças de Oblómov — seu filho Andrei, seu criado Zakhar e sua aldeia, Oblómovka.
Em uma narrativa muito rica em citações literárias e ambientada nas melhores locações da Rússia e da Europa — apesar do compreensível deslize do autor —Oblómov é um romance de qualidade equivalente ao padrão europeu, digno de Flaubert, Dickens, Tolstói ou Dostoiévski, retratando de modo ímpar a quintessência do estilo russo e o fim de uma era na aristocracia rural e servocrata.
A linguagem de Gontcharóv, seus diálogos e algumas passagens preciosas tornam o romance estupendo, inigualável.
Tudo isso rendeu ao autor dois feitos inéditos: criou-se do romance a palavra russa “oblomovismo”, que caracterizava um modo de vida inerte e apático tratado no ensaio O que é o oblomovismo?, de Dobroliúbov, gerando intensas discussões políticas; e uma narrativa que até os dias atuais mantém-se jovem, rica, intensa e encantadora.

17 de março de 2016

A guerra do fim do mundo: Mario Vargas Llosa


"A República é o Anticristo" (Antonio Conselheiro)

A Ciência contra a impaciência.


Systéme de contradiction économiques 
ou philosophie de la misère: P. J. Proudhom


Nosso senhor salvador Antônio Conselheiro


“Os amantes da justiça são convocados para um ato público de solidariedade aos idealistas de Canudos e a todos os rebeldes do mundo, na Cinelândia, dia 4 de Abril, às seis da tarde”


Vista de Canudos



13 de março de 2016

Xadrez - Jorge Luis Borges



Ajedrez

I

En su grave rincón, los jugadores
rigen las lentas piezas. El tablero
los demora hasta el alba en su severo
ámbito en que se odian dos colores.
Adentro irradian mágicos rigores
las formas: torre homérica, ligero
caballo, armada reina, rey postrero,
oblicuo alfil y peones agresores.
Cuando los jugadores se hayan ido,
cuando el tiempo los haya consumido,
ciertamente no habrá cesado el rito.
En el Oriente se encendió esta guerra
cuyo anfiteatro es hoy toda la Tierra.
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
reina, torre directa y peón ladino
sobre lo negro y blanco del camino
buscan y libran su batalla armada.
No saben que la mano señalada
del jugador gobierna su destino,
no saben que un rigor adamantino
sujeta su albedrío y su jornada.
También el jugador es prisionero
(la sentencia es de Omar) de otro tablero
de negras noches y de blancos días.
Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
de polvo y tiempo y sueño y agonía?



Jorge Luis Borges escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino

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Extensão de conhecimentos sobre o xadrez:


Fim de Jogo: Kasparov e a Máquina
A enxadrista – Sonia Salim

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6 de março de 2016

Prêmio UFF 2013: conto classificado de Novaes/



ELA MORAVA SOZINHA

Ela morava sozinha. Não era bonita, era linda. Há uma diferença, explico. Não é que linda seja apenas mais bonita do que a bonita. Linda é que, além de bonita, ou mesmo que não seja tão bonita, linda tem personalidade, tem charme, exala inteligência. Tudo isso faz da linda muito mais bonita do que a bonita. Linda, é a tal coisa, extrapola limites, medidas, altura ou idade. Está acima dessas coisas que as bonitas precisam e se apegam como se fosse tudo o que têm na vida. Linda é outro departamento. É como se a lindeza vivesse dentro dela e, mais que isso, e por causa disso, também ao redor. Uma aura. É por isso que é difícil para os homens se aproximarem das lindas. Aquela aura dourada, ou lilás, ou roseada (a tonalidade depende das peculiaridades da linda), cria um campo de exclusão que seres inferiores, como eu, sequer conseguem se imaginar adentrando. Ela era assim, linda, inacessivel. E morava sozinha. E, repare bem, eu digo sozinha, não digo . Porque só, só no mundo, era eu. Estou só desde que me entendo por gente, criança, pelas ruas. Eu sou o próprio . Ela, não, ela era o próprio Universo. Morava sozinha, como se fosse impossível habitá-la. Não era um planeta, era uma estrela, um sol, e a luz e o fogo eram demais para nós, pobres mortais. Morar sozinha era só um detalhe do seu charme.



Conto tudo isso para o senhor entender como cheguei a esse ponto, doutor.

Havia esse meu amigo, o Jessé. Ele gostava de ser chamado de Jece, como o Jece Valadão, fama de cafajeste, de comedor, mas ele é Jessé mesmo, nome bíblico, não comia nem... deixa pra lá. Jessé era um cara doce, sabe, mas só que ele não sabia disso. Ele pensava que era coração mole, que era otário, babaca, quase florzinha porque não conseguia pegar numa arma, porra, como pode alguém na nossa profissão ter essa caraminhola na cabeça? O cara só queria saber de roubo de casa vazia. Sem contato com a vítima. Não é que ele tinha medo de ser pego; ele tinha medo é de olhar nos olhos da pessoa. Não aguentava ver o medo estampado na cara do assaltado. Uma vez ele tentou, mas quando viu o olhar da mulher ficou paralisado, confuso, quase foi pego pela polícia. Ficou um tempo atormentado. Não sabia que era doce. Jessé era quase um poeta metido no crime, uma aberração. Só voltou a roubar depois que enviou uma carta pedindo desculpas para aquela senhora, acredita? Foi aí que decidiu só roubar casa vazia. Eu acompanhava, né? Alguém tinha que tomar conta daquele maluco. É meu amigo, gente boa, mas quando entrava numa casa vazia parecia que queria tomar posse da própria casa. Abria geladeira, comia, bebia, usava o banheiro. Via televisão, deitava na cama. Isso era lei pra ele. Parecia o dono. Um prazer maluco, enquanto eu tinha que ficar apressando o cara, “vambora rapaz, daqui a pouco os donos chegam”. Bem dizer, quem fazia a limpa era eu, pegava os badulaques enquanto Jessé curtia a casa.

Até que ela apareceu, para enlouquecer a nossa vida.

Ela morava sozinha. Eu e o Jessé sabíamos. Ela chamou nossa atenção, e, o senhor sabe, nosso ofício é roubar. Foi aí que ele disse: essa mulher deve ter som, tevê de plasma e o escambau. E jóias, laptop, dinheiro em casa, talvez até dólar – eu completei. Daí foi só fazer o plano para entrar. O prédio é pequeno e não tem porteiro depois das cinco da tarde. Observamos que toda quarta-feira ela saía por volta das sete da noite. Foi só esperar ela sair. Cruzamos com ela em frente ao portão como se estivéssemos indo para algum apartamento (assim que ela apareceu, larguei o dedo do interfone e gritei “abriu!”), dei um boa-noite com um sorriso agradecido e segurei com a mão o portão antes que batesse. Lá em cima, arrombamos a porta e entramos. Nisso o Jessé era bom. Abria portas como um mágico. Parecia uma criança diante de um jogo.

Tudo ia como de praxe, Jessé já estava deitado na cama da lindona, abraçava o travesseiro, dizia que sentia o perfume, enquanto eu recolhia tudo que pudesse caber na mala que levamos. Não sei, doutor, se ela voltou antes do previsto ou se foi o Jessé que se demorou demais nos salamaleques com as coisas do apartamento. Dessa vez ele quis até tomar banho. só pra usar a toalha da mulher. Bem, isso foi o que eu pensei de início, mas depois vi que ele pegou uma toalha nova, cor de vinho, que, depois de usar, pendurou bem dobrada ao lado da toalha da dona, que era rosinha. Ficaram lá, as duas toalhas, de cores que pareciam formar um casal. Meus apelos de apressura não adiantaram, doutor, e ademais eu já estava ficando meio atordoado com aquela coisa toda do Jessé, aquele ritual, aquele teatro, o cara não via outra coisa, só a vida que havia naquele apartamento, impregnada nos móveis, nos objetos, ele ficava imaginando os passos, os gestos da mulher pela casa.

De repente ela chega no apartamento e nos vê em seu quarto. Foi um susto. Nenhum daqueles olhos queria estar ali vendo o outro. Ela olhou para a mala, aberta, com as coisas dela ali. Entendeu. Eu me adiantei, puxei o canivete e gritei “perdeu, dona!” Ela não se perturbou. Fechou a cara, com
aquela personalidade, mas não disse um “ai”. Jessé e eu, com a maior cara de culpa, tratamos de encerrar os trabalhos, fechar a mala. Mas eu ainda não havia achado dinheiro. Fui pra cima dela, apontei a lâmina e perguntei da grana. Ela olhou fixo nos meus olhos. Juro que achei que seu olhar me dizia “seu incompetente... há tanto tempo aqui e ainda não achou o dinheiro!” Aquilo me deu raiva e saí esbravejando com ela. Foi quando a desgraçada disse “isso não é justo!”. “Mas, dona, desde quando assalto é justo?”, respondi. Ficou essa conversa de maluco, e o Jessé mudo, abobalhado, sem saber o que fazer. Eu pedia o dinheiro e ela se fazia de difícil. A coisa estava saindo de controle. Comecei a gritar, ameaçar. Aí ela falou: vocês querem abusar de mim. Não sei de onde ela tirou isso, eu juro. Jessé deu um salto apressado e se pronunciou: nós não fazemos estrupo não, senhora! “Es-tu-pro” – ela corrigiu, humilhando o coitado. E continuou a humilhação: “vocês não sabem português mesmo... quando eu falei vocês querem abusar de mim, aquilo foi uma pergunta, imbecis”. Jessé abriu um olhão esbugalhado. E eu não sabia se estava entendendo o jogo daquela mulher. Aquilo estava ficando perigoso. Abusar? Abusar como? Se a gente quer? Porra... que papo é esse? “É uma questão de justiça”, voltou ela com esse argumento de doido. “Vocês vão me levar tudo e não vão dar nada em troca? Ah, não...”

A coisa estava nesse ponto quando as sirenes da polícia soaram lá embaixo. Olhei pela janela e vi uma patrulha e um camburão e os homens entrando no prédio fortemente armados. Olhei para a vaca. Ela sorriu. Saquei que havia ligado pro 190 quando viu o apartamento arrombado. Jessé estava apavorado, não juntava as ideias, muito menos as palavras. Ela fechou a porta do quarto, trancou, pegou duas camisolas curtas, transparentes, com rendinha, daquelas bem sex, e disse: “vistam!” Eu nem sabia que existia camisola daquele jeito nesse mundo, doutor. “Se quiserem que eu livre a cara de vocês, vistam!”, ela mandou. Mas antes, orientou. Virou pro Jessé e disse: “você, veste a branca”. Jessé, que é negro, vestiu a camisolinha branca e eu, branco, vesti a preta. “Sempre tive essa fantasia e a transa vai ser assim, ok?” A situação obrigava, doutor, fazer o quê?


Quando a polícia entrou no quarto, ela já estava com dinheiro na mão. Virou pros polícias e deu uma bronca, “mas o que é isso?” Nessa hora, entregou o dinheiro na minha mão e convenceu os meganhas de que eu e Jessé estávamos ali “prestando serviços”. “Olha só a roupinha deles, não estão umas gracinhas?”, ela disse. A poliçada caiu na gargalhada e foi embora, convencida de que a ligação havia partido de algum vizinho moralista ou invejoso. Sabe, doutor, aquilo foi humilhante, mas também foi um alívio. Jessé estava quase infartando, o negão já estava branco. E não é pelo fato de que ela é linda, mais gostosa do que a imaginação é capaz de imaginar, o caso é que temos que ter ética. Ela livrou nossa cara. Tínhamos que cumprir o combinado. Ela veio para a cama e a coisa aconteceu, nós três lá, tudo junto e misturado, eu e Jessé com as camisolas de rendinha.

Depois daquele dia, mantivemos toda semana o nosso encontro a três. Usávamos a indumentária, sempre, ela não abria mão. Mas ela era tão linda, tão inacessível para nós, que valia a pena. Já estávamos até acostumados. Um dia, Jessé chegou a comprar espartilho e cinta-liga. Ela ficou doida, foi uma festa.

O desencontro aconteceu por causa disso. O Jessé. Pirou o cabeção. Se apaixonou. Começou a viver no mundo da lua, a cabeça nas nuvens. Eu disse pra ele: “meu amigo, acorda!, o que você está pensando?!” Sabe o que ele me respondeu? “Depois dela, não tenho mais pensamento, só pensavento”. Porra, um poeta no crime! Anarquizou a coisa toda. Eu querendo sexo com a lindona e ele falando de amor. Eu querendo roubar umas casas e ele falando em casar, em ter a casa dele, com a mulher dele. Eu disse: “escuta aqui, ô Jessé, você está subvertendo as coisas. Deixa eu te lembrar: ladrão só tem apego pelas coisas dos outros! Onde já se viu ladrão se preocupar com seus próprios pertences? Tá virando burguês, é? Quer uma vidinha assentada, com patrimônio e coisa e tal? Tem certeza de que quer mudar de lado? Passar a ser vítima de ladrões? Já pensou? A cidade anda muito perigosa...”

Eu avisei, doutor, que aquilo não ia dar certo. O pior foi o ciúme. Nosso encontro tinha um limite e ele não entendeu. Confesso pro senhor que aquilo também me afetou. Eu sempre fui só, o Senhor Só, e bem ou mal eu tinha ali uma família. Depois da cama rolava um jantarzinho, eu fazia um macarrão, ela abria um vinho. Durante o jantar ela conversava com a gente, perguntava da nossa vida, parecia que se importava. Eu sabia que não, na verdade não, mas gostava de ouvir ela perguntar.

De repente ela parou de nos chamar pro apartamento dela. Um mês, dois meses, e nada. Agora estamos aqui, nós dois. O senhor podia ser o delegado e eu estaria aqui contando os meus crimes e o meu envolvimento com essa linda. O doutor podia ser um psicólogo e eu aqui, tentando entender meu destino. Mas, não. O senhor é o filho-da-puta que apareceu na vida da nossa lindona. Tá feliz?... Tá achando que encontrou o amor de sua vida?... É... Mas foi por causa do doutorzinho que ela deu um chute de vez na nossa bunda. Até avisou pelo telefone: “estou comprometida, sumam!” Meu amigo Jessé está inconsolável. Chora de um jeito que nem a poesia conhece. E eu perdi a minha família. Voltei a ser só, só no mundo, estou só até dentro de mim. Não tenho nem mais aquela mentira pra me consolar. Só que, veja bem doutor, o Jessé é doce. Eu não. Eu arranjei esse companheiro aqui. Conhece? É um 38. E sabe com quem eu vou gastar a primeira bala?