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25 de fevereiro de 2022

A tragédia brasileira: Sérgio Sant'Anna



A garota devolve a Cristo um sorriso puro de dentes branquíssimos e é esse sorriso que exorciza de verdade o Demônio, que pode ser visto num relance, a afastar-se de Cristo na forma de uma velha beata e corcunda que sai de cena resmungando, com o rosto escondido por um xale.  Cristo percebe, nesse momento, que o Demônio era uma presença dentro dele próprio e não da garota.


Já com Buda não pode haver Demônio, pois ele próprio é, simultaneamente, Deus e o Demônio. Não lutando contra ou a favor de um ou de outro, Buda permite que os dois opostos dentro de si estejam conciliados e não em conflito.



A alavanca de mudança é um símbolo fálico. (Freud)



Também diante de Buda, agora, no espaço cênico, passam guerreiros. São guerreiros chineses e dirigem-se a derrubar uma dinastia. Vêem Buda, a princípio, com o desprezo com que o forte examina o fraco. Por puro tédio, ou crueldade, um daqueles guerreiros aproxima-se de Buda, desembainha a espada e pensa em atravessar com ela as carnes flácidas de Buda. Buda, que sabe ler a alma de um homem, pressente o perigo, mas se limita a cheirar uma flor e, nesse instante limítrofe da morte, descobre novas sutilezas na fragrância da flor. Pois é a possibilidade de morrer que faz Buda tornar-se ainda mais atento, embora sem intencionalidade, a seus sentidos. E ele sorri para essa nova oportunidade de penetrar no âmago da vida. Buda sopra a flor e suas pétalas voam ao vento. Buda sabe que nenhum homem é tão forte que não se defronte um dia com algo mais forte do que ele. E, como as pétalas de uma flor, às vezes a maior força de um homem é deixar-se ir, carregado pelo vento. 
O guerreiro chinês dá uma gargalhada, porque captou num relance a mensagem de Buda. Ele e seus companheiros, agora, estarão carregando Buda consigo para a China e o Japão e, sendo guerreiros, serão como uma revitalização de Buda. Atravessarão impiedosos os inimigos com as armas e, ainda assim, serão como Buda. Buda é todos os homens e assim passa por todas as provações e sentimentos deste mundo; deve-se sentir como o vencedor e como o vencido. Deve descer ao inferno, como Cristo em suas dúvidas, e ser o espectador e participante de acontecimentos tão terríveis quanto o de uma criança que perdeu os pais e mutilou-se numa guerra que não é sua. E que permanece ali, à margem, desamparada e sem nenhuma probabilidade de ter esperança. Mas é também nesse terreno que pode germinar a paz, o Nirvana, de Buda. Antes, porém, sentirá o gordo Mestre, diante de tal espetáculo, o desespero e a revolta contra o Poder Supremo. Até que, por exaustão, conheça que não há Poder Supremo a dirigir o Grande Espetáculo e que Deus - ele próprio, Buda - é apenas o fluir assim, eterno, daquilo que é comparado a um rio. 

Maomé e seus seguidores, ao contrário, combaterão pelos tempos afora o Mal e o Demônio, como se fosse possível aniquilá-los um dia. No Corão busca Maomé, através da certeza, a morte de toda angústia. Sem se dar conta de que o Mal e o Demônio se encaravam dentro dele mesmo e que, para destruí-los, deveria degolar a própria cabeça e não dos infiéis. 


Maomé e seus discípulos jamais beberão uma gota de vinho, porque esse vinho soltaria o Demônio tão sufocado dentro deles e os deixaria enlouquecidos. 

"Estou me acostumando com a ideia de considerar todo ato sexual como um processo em que quatro pessoas estão envolvidas" - (Freud)


O poeta é aquele que em primeiro lugar decifra, mergulha, (n)aquilo que ainda se encontra invisível para seus semelhantes. 

Na foto o Cliceano que indicou o romance-teatro
Entreatos
Dezoito anos depois, A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, é uma representação quase perfeita do país nas últimas décadas  
A primeira impressão provocada por A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, é a de que estamos diante de uma obra datada. Com uma trama que se passa em 1962, o livro foi publicado com uma tiragem reduzida pela Editora Guanabara em 1987 — um tempo em tudo distante do que vivemos agora, em 2005. A passagem do tempo, entretanto, acaba contando a favor deste livro definido como um “romance-teatro”, numa feliz convergência entre suas técnicas narrativas, o acaso do mercado editorial e a própria história do Brasil nestas últimas quatro décadas.
Dividido como uma peça de três atos, o livro tem justamente nas suas várias gradações, internas ou externas, seu elemento-chave. No primeiro ato, predomina a linguagem teatral, embora seja evidente que o palco a que Sant’Anna recorre não se presta à representação cênica; ele é uma fórmula que serve para agregar novos recursos à narrativa. É por meio dessa dramaturgia imaginária que se conta, logo de início, a história do atropelamento da menina de 12 anos Jacira, morta pelo personagem do Motorista quando lhe despontavam os pequeninos seios, surgiam as penugens púberes, manchava-se o vestido de sangue pela primeira vez.
Não faltará o erotismo típico de Sant’Anna, que vai de um tom rodriguiano de dessacralização da inocência até um mais provocador, com um pouco de pedofilia, e resvala em sugestões de necrofilia. Aqui e ali, apresenta-se um pouco daquele país que saía do pós-desenvolvimentismo de JK, preocupado com a contusão de Pelé na Copa do Chile e em dúvida se a solução para o Brasil estava nas mãos de Deus ou nas dos militares. Perguntas de quem se pôs a escrever duas décadas depois, quando já se tinha passado pela ditadura e o país do futebol andava meio traumatizado com o jejum de títulos.
Novas possibilidades, então, vão surgindo. À medida que Sant’Anna investe mais na prosa, desenham-se outros cenários e personagens. No segundo ato, Jacira se confunde com a atriz que a representa; o Negro misterioso, que espreitava a menina de um terreno baldio, reaparece como contra-regra; e o melancólico e apaixonado Poeta Roberto, que de sua janela viu a tragédia, mostra ser, em parte, uma idealização pessoal do demasiadamente humano Autor-Diretor, que é, lá pelas tantas, um eco do próprio Sant’Anna.
A partir do terceiro ato, a encenação se apresenta mais como ideia, e é quase como um romance de ideias que se cria um terceiro nível de ficção, em que já não há mais limites: unem-se as pontas da dramaturgia e da prosa, da representação e da “realidade”. Como num círculo, voltamos à tragédia por meio de Maria Altamira, Virgem pura transformada em estrela radiante no momento em que estava também prestes a deixar a infância, atropelada por um Motorista de caminhão na Belém-Brasília — um dos símbolos de uma já antiga concepção de progresso e, também, esboço de metáfora religiosa.
Já aqui, na própria narrativa, as perguntas são outras. E hoje, quase 20 anos depois de o livro ter sido escrito, temos tantas outras a acrescentar. No ato que encerra as três épocas da história da obra, a tragédia persiste. Orgulhosos de um futebol pentacampeão, também nos vemos — arrasadas de vez quaisquer ilusões políticas construídas desde os anos 80 — sem rumo. É como se Jacira renascesse e morresse perpetuamente, deixando no céu a luz de uma estrela incerta, que talvez leve a um lugar que não este.
BRAVO!, outubro de 2005
© Almir de Freitas




Existe algo à beira da possessão demoníaca no Islã. Como se o Fundador fosse um dos anjos aliados de Lúcifer que no último momento se houvesse contido. Esse anjo se embevecera com a arrogância de Lúcifer e sua beleza feminina, mas teve medo de Deus e do castigo. E também de um desejo seu, inexplicável e tido como terrível: o desejo da treva total que há dentro de um regaço feminino antes de um homem haver nascido. Mandou então que se cobrisse a beleza feminina e a rotulou para sempre como impura. Enquanto eles próprios, os homens muçulmanos, estarão condenados a cavalgar loucamente pelos tempos afora, brandindo a espada contra os infiéis. Fugindo, talvez, no eco das patas de seus cavalos, da parte de seu corpo e alma que é mulher.





24 de fevereiro de 2022

Shalimar, o equilibrista: Salman Rushdie







Atenção fãs do realismo mágico!


Clube de Leitura Icaraí se reúne nessa sexta-feira, dia 11, para debater a leitura de "Shalimar, o equilibrista", do autor Salman Rushdie, cujo estilo narrativo mescla fantasia com vida real.

Contém nessa história elementos como amor e vingança, além de todos os ingredientes dos grandes épicos: guerras, revoluções, heroísmo, assassinatos, tabus violados, destinos interrompidos e grandes deslocamentos no espaço ao longo de sessenta anos de história do século XX. 

Gostou? Então vem! Nas 2ªs Sextas Feiras mensais, às 19h, na Livraria Icaraí.


"Shalimar, O Equilibrista é uma obra de ficção de Salman Rushdie publicada em 2005 e que conta a história do personagem Shalimar, da infância à morte, da sua carreira como artista a assassino profissional, tendo em foco quatro personagens fundamentais: Índia/Caxemira, Boonyi, Max, e o próprio Shalimar. O livro não segue a ordem cronológica dos eventos e inicia-se com um misterioso assassinato que se desvenda ao longo do romance.

O lançamento mundial do livro teve como principal evento a Festa Literária Internacional de Paraty, no Brasil, em 2005, com a presença do autor."



ENTREVISTA DE SALMAN RUSHDIE À FOLHA


Folha - Quanto do sr. há em "Shalimar, o Equilibrista"?

Salman Rushdie
 - Não há um personagem que fale pelo autor. Meu objetivo foi criá-los como seres empenhados em suas próprias histórias. A maneira como os personagens do livro evoluem não tem nada a ver com uma vontade de expor meu ponto de vista sobre o mundo. Flaubert disse: "Madame Bovary, c'est moi", mas é claro que é mentira. Madame Bovary não é Flaubert. A verdade é que você deve estar em cada frase do seu livro. Há algo com que devemos lidar mais do que nunca agora, que é o fato de que nossas vidas não são mais vidas privadas. Quando Jane Austen escrevia, ela ignorava as guerras napoleônicas. Podia contar a história de seus personagens sem se referir à esfera pública, pois esta não interferia na vida dos seus personagens. Só que hoje não vivemos mais assim.

Folha - Hoje um escritor pode ignorar a situação mundial?

Rushdie
 - Não quero ditar regras, mas é difícil para mim. Para explicar a vida das pessoas, você precisa levar em conta o mundo em que elas vivem e o efeito direto que esse mundo causa nelas.

Folha - Como no exemplo da Caxemira, que está no livro.

Rushdie
 - Sim, a vida de Shalimar foi destruída por dentro, pela traição de sua mulher mas também por fora, pelas forças da história. A maneira como costumávamos acreditar no destino dos personagens não existe mais, agora é o destino que faz os personagens. É preciso trabalhar com esse duplo sentido para escrever. Uma boa questão é se somos os mestres ou as vítimas do nosso tempo. Nós comandamos nossas vidas ou não temos chances?

Folha - E o que o sr. acha?

Rushdie
 - As duas coisas. Às vezes, nós podemos comandá-la, noutras não. Por exemplo, esse concerto de rock que houve no fim de semana, o Live 8, foi uma tentativa de um grande número de pessoas de causar algum impacto transformador. Pode-se dizer que é simplista, mas pode funcionar. Mas é claro que, se você estiver num arranha-céu e um avião bater nele, não importará se você viveu sua vida bem ou mal. Nós vivemos num mundo muito estranho, e as conseqüências para a literatura são muito profundas.

Folha - Por quê?

Rushdie
 - Porque uma das grandes perguntas para um escritor é: como se diz a verdade sobre o mundo? De acordo com o nível do seu talento, a profundidade da sua visão, ou das limitações que todos nós temos. De outro modo, você não dirá a verdade.

Folha - Os americanos sabem o quanto o que acontece na Caxemira afeta a vida deles?

Rushdie
 - Acredito que o 11 de Setembro tenha sido um alerta. Mostrou que o mundo não está mais separado. Os americanos sentiram na pele as conseqüências de um mundo que encolheu.

Folha - Há uma grande importância em relação a nomes e identidades em seu livro.

Rushdie
 - Acho que a questão da identidade é central. Ninguém no livro gosta do nome que tem, exceto Max [o embaixador na Índia].

Folha - Max falsificava identidades quando estava na Resistência francesa.

Rushdie
 - Exato. Ele é o único que sabe quem é. O livro é sobre pessoas que não sabem quem são. No caso de India [filha de Max], há uma boa razão para isso. Durante toda a sua vida lhe mentiram, inclusive sobre seu nome.

Folha - Por que Max compara a situação na Alsácia, nos anos 30/40, ocupada por França e Alemanha, com a da Caxemira, disputada por Paquistão e Índia?

Rushdie
 - O interessante na região da Alsácia é a questão das fronteiras cambiantes. No livro, que é sobre a Índia, sobre a Caxemira, essa questão está em primeiro plano. Foi uma maneira de unir as pontas do mundo. Na França, durante o jugo nazista, há a Resistência, que é a reação militar à ocupação. Na Caxemira, há a resistência ao poder ocupante, e essa reação pode não ser necessariamente terrorismo --depende de que parte do mundo falamos. Temos aqui uma forma muito similar de ação, tomada em diferentes circunstâncias. O julgamento que fazemos desses momentos é diferente.

Folha - O destino da Caxemira é há muito tempo decidido por forças externas.

Rushdie
 - Sim, acho que essa é a grande tragédia da Caxemira. Os caxemirenses querem que os deixem em paz. Há o Exército indiano e há os grupos patrocinados pelo Paquistão. Ambos destruíram a Caxemira de diversas maneiras. A intelligentsia indiana não tinha idéia do quão grande era o ressentimento na Caxemira. Mas não era preciso ser profeta para ver a insurgência, bastava ter olhos. Quando chamei a atenção para o problema, me chamaram de "muçulmano comunista".

Folha - E além disso há os grupos terroristas...

Rushdie
 - Veja, o islã na Caxemira sempre foi místico, gentil e aberto, não como o dos jihadistas. Não havia segregação sexual. Havia uma grande mistura religiosa. Mas então vieram os grupos extremistas, que tentaram impor à Caxemira uma idéia de islã estranha a ela. A violência funcionou, e hoje na Caxemira se vêem mulheres cobertas, o que é anticaxemirenses. Sempre me senti mal sobre isso, porque minha família é de lá, passava férias lá quando criança. Para todos na Índia, a Caxemira é o espaço encantado da infância. E foi destruído, obrigando-nos a viver num mundo sem sonho. Meu livro é um pouco sobre como viver num mundo no qual seus sonhos são destruídos.

Folha - E, para Max, os sonhos acabaram na Europa. Ele é nostálgico. O sr. também parece saudoso dos velhos valores.

Rushdie
 - Não diria "velhos valores". Diria "valores", sem os quais é muito difícil viver, num mundo desenraizado. Sou saudoso de um mundo menos desenraizado. Há uma ausência de sutileza. O desenraizamento está barateando a vida humana. Mata-se por nada.

Folha - Qual é o papel da religião nisso?

Rushdie
 - É absolutamente catastrófico, quer seja o jihadismo ou o fundamentalismo cristão, ou os hindus fanáticos.

Folha - O sr. é religioso?

Rushdie
 - Não. Não. Não me considero religioso [risos]. Mas, quando você começa a escrever sobre humanos, passa a acreditar que haja algo sobre nós que não é apenas carne e ossos. Há coisas que não podemos explicar para nós mesmos. No entanto, se você não acredita na existência da alma, é muito difícil escrever sobre isso, porque faltam palavras.

Folha - O sr. acompanha a política brasileira?

Rushdie
 - Leio os jornais. Mas não me pergunte nada [risos].



Encontro Marcado


O amor nunca vem de onde a gente está olhando!


Os guerreiros do LeP não conseguiam tirar os olhos das mulheres que estavam se despindo devagar, sedutoramente, mexendo os corpos com ritmo, de olhos fechados. "Deus me ajude", gemeu em árabe um dos guerreiros estrangeiros do LeP, se retorcendo em cima do cavalo. "Essas diabas de olhos azuis estão roubando minha alma". O maníaco homicida de quinze anos apontou o Kalashnikov para Firdaus Noman. "Se eu matar você agora", disse, perverso, "nenhum homem em todo o mundo muçulmano vai dizer que não tenho razão." Nesse momento, um buraquinho vermelho apareceu na testa dele e a parte de trás de sua cabeça explodiu... Os militantes do LeP foram cercados e superados em número e em poucos minutos estavam também mortos. Firdaus Noman e as outras mulheres vestiram as roupas de novo. Firdaus falou, triste, para o corpo de quinze anos do comandante Lashkar. "Você descobriu que as mulheres são perigosas, meu filho", disse ela. "Azar seu não ter tido a chance de crescer para virar homem e descobrir que também somos boas para amar."


COMO PODE O ROSTO DE UMA MULHER
 SER O INIMIGO DO ISLÃ?









Na raiz da religião está o desejo de esmagar o infiel. Esta é a força fundamental. Quando o infiel tiver sido esmagado, poderá haver tempo para o amor, embora isso seja de importância secundária. A religião exige austeridade e auto-renúncia. Ela não tem tempo para as branduras do prazer ou para as fraquezas do amor. Deus deve ser amado, mas com um amor masculino, um amor de ação, não uma aflição feminil do coração. Deve-se estar sempre pronto para uma guerra.


Ele ainda é jovem a ponto de ter a ideia de que pode mudar a História, enquanto eu estou me acostumando com a ideia de ser inútil, e um homem que se sente inútil para de se sentir um homem. Então, se ele está inflamado com a possibilidade de ser útil, não vamos apagar essa chama.


Mercader
... nesse solo oculto estão sendo plantadas as sementes do futuro e o tempo do mundo invisível chegará, o tempo da dialética alterada, o tempo da dialética na clandestinidade, quando anônimos exércitos espectrais lutarão em segredo pelo destino da Terra. Um bom homem nunca é descartado por muito tempo. Sempre se encontra um uso para um homem desses. Max invisível terá um novo uso. Ele será um dos forjadores dessa nova era também, até a velhice finalmente baixar a cortina e a Morte vir bater à sua porta na forma de um belo homem, um Mercader, um Udham Singh, a Morte, em nome da mulher que um dia ambos amaram, lhe pedindo trabalho.



Ela o tinha perdido durante tanto tempo que temia nunca mais consegui-lo de volta. Mas ali estava ele, virando-se para olhar para ela de novo. Era isso que os dois tinham, disse ela a si mesmo, essa inevitabilidade. Eram construídos para durar. Levantou o copo para ele e um sorriso tremulou nos cantos de sua boca. Sou a mulher mais iludida do mundo, pensou. Mas olhe para ele, está aqui. Meu homem.





O que é convencional quando se olha de fato as coisas? Levante a tampa de qualquer vida e ela é estranha, borbulhante; por trás de toda porta doméstica sossegada o idiossincrático e o estranho estão à espreita. Normalidade, esse é que é o mito. Os seres humanos não são normais.      


Suponhamos que fosse eu naquela foto, Max pensou, de repente. Suponhamos que todos aqueles ataques verbais fossem sinais invertidos de amor, pedidos em código para que eu fizesse o que ela sozinha não podia fazer: que a arrancasse do seu casamento e a arrebatasse para algum impossível Éden do tempo de guerra. Tentou afastar essas especulações, que era apenas uma forma de vaidade, ralhou consigo mesmo. Mas a possibilidade de um amor mal compreendido continuou a mordê-lo por dentro. Blandine, Blandine, ele pensava. Os homens são tolos. Não é de admirar que a deixássemos tão louca. Nesta tarde, no arquivo, quando descobriu o destino de Suzette Trautmann, prometeu a si mesmo que se uma mulher um dia lhe enviasse esses sinais de novo, se uma mulher um dia tentasse dizer por favor, vamos sair daqui, por favor, por favor, vamos fugir e ficar juntos para sempre e para o inferno a danação de nossas almas, por favor, ele não deixaria de decifrar o código secreto.







Rumpelstiltskin




Existem grandes infiéis que negam Deus e seu profeta, e depois existem os pequenos infiéis como você, um cuja barriga o calor da fé há muito esfriou, que toma tolerância por virtude e harmonia por paz.

A natureza do poder dominador é tal que o homem poderoso não precisa aludir a seu poder. A realidade dele está presente na consciência de todo mundo. Assim, o poder faz seu trabalho em segredo e os poderosos podem subsequentemente negar que sua força jamais foi usada.



Ele era apenas um clown e seu amor não levava a lugar nenhum, não mudaria nada, não podia me levar onde estava meu destino.


Não me peça o meu coração, porque estou arrancando o coração do meu peito, quebrando em pedacinhos e jogando fora, de forma que não terei coração, mas você não vai saber disso porque serei a contrafação perfeita de uma mulher apaixonada e você vai receber de mim a falsificação perfeita de amor.


Havia, então, duas cláusulas não expressas no Entendimento, uma relativa a dar amor, outra relativa a reter o amor, codicilos mutuamente contrastantes e impossíveis de conciliar. O resultado, como Max previra, foram problemas; o maior rebuliço diplomático indo-americano da História. Mas durante algum tempo o mestre falsificador foi enganado pela falsificação que comprou, enganado e satisfeito, tão contente de possuí-la  quanto um colecionador que descobre uma obra prima escondida num monte de lixo, tão feliz de mantê-la escondida das vistas quanto um colecionador que não consegue resistir a comprar o que sabe ser propriedade roubada. E foi assim que a esposa infiel da aldeia do bhand pather começou a influenciar, a complicar e até a moldar a atividade diplomática referente à incômoda questão da Caxemira.





Pensou em Shalimar, o equilibrista, e mais uma vez ficou horrorizada com a facilidade com que o abandonara. Quando deixou Pachigam, nenhuma das pessoas mais próximas adivinhou o que estava fazendo, os bobos. Ninguém tentou salvá-la de si mesma, e como poderia perdoá-los por isso? Que idiotas eram eles todos! Seu marido, o super idiota número um, e seu pai, o super idiota número dois, e todo mundo logo atrás. Mesmo depois de Himal e Gonwati voltarem a Pachigam sem ela e começar o falatório, mesmo então, Shalimar, o equilibrista, lhe mandava cartas confiantes, cartas assombradas pelo fantasma de seu amor assassinado. 'Estendo os braços e toco você sem tocar você como na margem do rio antigamente. Sei que está em busca de seu sonho, mas esse sonho vai sempre te trazer de volta pra mim. Se o amrikan está ajudando, muito bem. As pessoas sempre dizem mentiras, mas sei que seu coração é verdadeiro. Sento com as mãos no colo e espero sua volta.' Ela ficava transpirando na cama, presa nas correntes da solidão escravizante e rasgava as cartas em pedaços cada vez menores. Eram cartas que humilhavam tanto o autor quanto o receptor, cartas que não tinham de existir, que nunca deveriam ter sido mandadas. Essas ideias não deviam nunca existir, e não existiriam, não fosse a mente débil daquele homem sem honra que tivera a vergonha de desposar.









Os animais não têm opção senão serem o que são 100% do tempo. Eles não conhecem nem moldam a própria natureza, mas sim, a natureza que conhece e os molda. Não existem surpresas no reino animal. Só o caráter do Homem é suspeito e cambiante. Só o Homem, conhecendo o bem, pode fazer o mal. Só o Homem usa máscaras. Só o Homem decepciona a si mesmo.


Abdullah começou a ver lampejos de um outro Bombur, alguém melhor por baixo da superfície inchada e vaidosa que Yambarzal infelizmente apresentava ao mundo: um homem solitário, para quem a culinária era a única paixão da vida, que a encarava com um fervor quase religioso e que ficava, portanto, constante e ferozmente decepcionado com a facilidade com que seus semelhantes humanos se afastavam das extáticas devoções das artes gastronômicas por conta de distrações tão mesquinhas quanto vida familiar, cansaço ou amor. "Se você não fosse tão duro consigo mesmo", Abdullah disse uma vez a Bombur, "talvez pudesse ser mais brando com os outros e se apresentar melhor." Bombur arrepiou-se. "Não estou no jogo da felicidade", disse, duro. "Estou no negócio de banquetes". Era uma declaração que revelava o traço monomaníaco da personalidade do waza. 


Catacumbas da Cidade Reptiliana Assombradas

Los Angeles, apesar de pouco perceber na agitação da vida moderna, está acima de uma cidade perdida de catacumbas cheias de tesouro incalculável e registos imperecíveis de uma raça de seres humanos mais avançada intelectualmente e cientificamente, mesmo sob os atuais povos de hoje.




O único jeito sensato de amar é amar condicionalmente.









"Todos os temas recorrentes na obra de Salman Rushdie concorrem na trama de seu nono romance e se combinam para fazer de Shalimar, o equilibrista a narrativa mais impactante do autor de Os filhos da meia-noiteHaroun e o Mar de Histórias e O último suspiro do mouro. É uma história de amor e vingança, com todos os ingredientes dos grandes épicos: guerras, revoluções, atos heróicos, assassinatos, tabus violados, destinos interrompidos e grandes deslocamentos no espaço, ao longo de sessenta anos de história do século XX.

No cenário das questões políticas mais nevrálgicas da história contemporânea, Rushdie constrói um enredo em que a paixão súbita e proibida de um embaixador americano por uma dançarina belíssima de etnia hindu, habitante da Caxemira, desencadeia uma série de acontecimentos que apontará para os vínculos complexos entre Ocidente e Oriente nos dias de hoje.

Com avanços e recuos no andamento narrativo, Rushdie conduz as histórias dos personagens em vias paralelas, mas as entrecruza magistralmente à medida que a obra avança. Os pontos de contato entre a história da Índia, a política dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e a formação dos grupos extremistas islâmicos depois da queda da ex-União Soviética vão se tornando cada vez mais estreitos, relacionando-se às histórias ficcionais de Max Ophuls, Boonyi Kaul e Shalimar, o equilibrista. No romance, as esferas da ficção, da história, do mito e da política se confundem e ganham estatuto artístico excepcional. 


A função de Shalimar, o equilibrista, é tentar desvendar o sentido da desarmonia que transformou sua vida em escombros. Para isso, durante sua representação - que outros chamariam vida -, terá de elevar-se por cima da copa de uma árvore em chamas e equilibrar-se numa corda feita de ar."



Nunca confie em homens que têm muita facilidade com as palavras.


23 de fevereiro de 2022

A Bagaceira: José Américo de Almeida

"ALEGRIA DE POBRE É MAU AGOURO."





"Tudo se desfaz, menos os elos nativos que prendem o homem à terra. 
O homem será sempre o prisioneiro de sua origem".




"Passavam fitas naturais nas auroras e nos ocasos miraculosos. Havia música de graça nos coretos do arvoredo. Perfume de graça em cada floração. E o sol fazia-lhes visitas médicas entrando pelos rasgões dos tugúrios." 

Na verdade, ele não descrevia a natureza. Ele pintava a natureza. José Américo não era apenas um romancista. Era um poeta e um pintor. Ele pintava com as palavras. (Elenir)





Muita vez sonhei assim, em menino, embalado na rede em casa dos avós paternos. Menino cujo futuro era ainda uma promessa vaga, uma bolha frágil, uma estrada incerta...



“E meteram-se na rede que, parada, é feita para se dormir; mas, aos embalos, a voar, é feita para sonhar”.  A bagaceira, p. 108.



Engenho Mazagão e o pátio da bagaceira



O JULGAMENTO

O dr. Marçau entrou a orar neste tom:

— O promotor acusou o réu em nome da sociedade e eu acuso a sociedade em nome do réu .

Quem é mais criminoso — o réu que matou um homem ou a sociedade que deixou por culpa sua morrerem milhares de homens?

E, antes de ser réu , ele é vítima da falta de solidariedade da raça.

A seca chegou a aprazar suas irrupções com a lei da periodicidade . Todo mundo tinha a previsão da catástrofe em datas fatais. E os poderes públicos não a atalharam; não procuraram corrigir os acidentes da natureza incerta que dá muito e tira tudo de uma vez . Essa vitalidade aleatória ficou, até hoje, à espera da intervenção racional que demovesse os obstáculos do seu aproveitamento e fixasse o sertanejo no sertão .
Dispersou-se o povo sedentário e esfacelou-se a família...

— O advogado não pode continuar a atacar os poderes públicos! — advertiu o presidente do tribunal do júri , com a ajuda da campainha enérgica.

Lúcio abreviou a eloqüência forense:

— Eu dou por terminada esta função teatral que avilta a dignidade dos réus, cara a cara, para formar a consciência dos julgamentos espontâneos . . .

Justiça de . . . nulidades é a definição da inópia que só enxerga fórmulas no papel selado dos autos , em vez de uma alma encarcerada nestas fórmulas, da mesma maneira que está presa na cadeia. Não sabe que cada processo é uma palpitação da natureza humana. Atende menos a esse problema moral que à meia-língua das testemunhas.

Justiça falível, és a balança de dois pesos que só não pesam nas consciências! Como eu quisera que fosses cega, de verdade , não pela tua ignorância, mas pela imparcialidade!

O mau juiz é o pior dos homens. Se o juiz tiver de pecar , seja, pelo menos, humano. . Peque pelo amor que é a liberdade e não pelo ódio que é a injustiça mais grosseira. . .

Vingue em cada absolvição de um miserável a impunidade dos grandes criminosos! . . .

(Valentim foi absolvido por perturbação de sentidos e de inteligência.. . dos jurados . )

"Pobre de barriga cheia, Deus te livre!"
Os herdeiros dos passeios pelos shoppings não viram isso que José Américo de Almeida conta em A Bagaceira (p. 76): “Ele forcejava em interessar o coração de Soledade na assistência social aos moradores da fazenda de cana-de-açúcar. Entravam nas bibocas e ela nauseava. Santo Deus! Os guris lazarentos embastidos [cobertos] de perebas não paravam de coçar as sarnas eternas e pareciam laranjas onde enfiaram dois palitos. Mas não choravam, não sabiam chorar. Soledade saia aos engulhos. Não havia choça paupérrima que não tivesse um cachorro gafo. Era o sócio da fome. Os pobres só comiam capim, pastavam como carneiros. Mordiam a própria perna como se fosse um osso para roer”. (Fonte)

— Sique! sique! — estumava o dono da casa , com os dentes cerrados, baixinho. Só pelo gosto de se levantar e gritar da porta: Desse modo, descontava o servilismo irremissível.   
 — Ca . . . chor ro ! ' chor ro !  E, num grande entono: 

— Já se deitar!

Voltava a sentar-se com um ar de quem mandou e foi obedecido. 

Eu sofria na minha inocência com pena dos bichos que se amavam. Amor de arranhaduras, de coices e dentadas. E, enfim, creio que os beijos doem muito mais.

Tô com vontade de beijar . Daqueles beijos que deixam cicatrizes na alma. Quero sorver o aroma carnal que se bebe em beijos.

Há muitas formas de dizer a verdade.
Talvez a mais persuasiva seja a que tem aparência de mentira.


Não há deserto maior que uma casa deserta

Você não vem na minha casa, eu não vou na tua.


Resumo do livro “A Bagaceira” de José Américo de Almeida (Spoiler)

O romance se passa entre 1898 e 1915, os dois períodos de seca. Tangidos pelo sol implacável, Valentim Pereira, sua filha Soledade e o afilhado Pirunga abandonam a fazenda do Bondó, na zona do sertão. Encaminham-se para as regiões dos engenhos, no brejo, onde encontram acolhida no engenho Marzagão, de propriedade de Dagoberto Marçau, cuja mulher falecera por ocasião do nascimento do único filho, Lúcio. Passando as férias no engenho, Lúcio conhece Soledade, e por ela se apaixona.
O estudante retorna à academia e quando de novo volta, em férias, à companhia do pai, toma conhecimento de que Valentim Pereira se encontra preso por ter assassinado o feitor Manuel Broca, suposto sedutor e amante de Soledade. Lúcio, já advogado, resolve defender Velentim e informa o pai do seu propósito : casar-se com Soledade. Dagoberto não aceita a decisão do filho. Tudo é esclarecido : Soledade é prima de Lúcio, e Dagoberto foi quem realmente a seduziu. Pirunga, tomando conhecimento dos fatos, comunica ao padrinho (Valentim) e este lhe pede, sob juramento, velar pelo senhor do engenho (Dagoberto), até que ele possa executar o seu "dever": matar o verdadeiro sedutor de sua filha. Em seguida, Soledade e Dagoberto, acompanhados por Pirunga, deixam o engenho e se dirigem para a fazenda do Bondó. Cavalgando pelos tabuleiros da fazenda, Pirunga provoca a morte do senhor do engenho Marzagão, herdado por Lúcio, com a morte do pai. Em 1915, por outro período de seca, Soledade, já com a beleza destruída pelo tempo, vai ao encontro de Lúcio, para lhe entregar o filho, fruto do seu amor com Dagoberto.

Fonte: Resumos para o ENEM

16 de fevereiro de 2022

Madeleines da Elô


Amigos , estou apaixonada por Em busca do tempo perdido. Há muitas descrições! Normalmente elas nos causariam cansaço. Mas Proust as burila como pequeninas joias! Descrever os vitrais da igreja e mais detalhes, faz ecoar em nossa alma ,  toda uma atmosfera quase sagrada. O sol que atravessa os vitrais...acalmam! É um lento correr do tempo atravessando séculos mesmo! É eco em nossas memórias também, se vivemos a atmosfera ( eu vivi. DIARIAMENTE assistia a missa em Campos e em Icaraí, terços,  orações do dia).  Fora as críticas subliminares que faz às relações. Tenho certeza de que ,em algum momento,  qualquer leitor vai encontrar sua madeleine,  lendo Proust.  Preciosidades, entalhes na alma!  A luz que atravessa os vitrais vele meu sono dessa 🌙!


 Interessante essa ideia de tempo perdido!  Tempo desperdiçado, negativo! Tempo vivido,  que se foi,  mas se quer resgatar- positivo, mesmo que  hajam sofrimentos! Eu daria alguns anos,  para recuperar o colo de avó ! Para segurar nas pelanquinhas dos seus braços!

São várias, as madeleines! Proust não se prende somente aos sabores!  Como não li essa obra antes!! 

Estou maravilhada com a avó do menino , no livro Em busca do tempo perdido. Ele cita , dentre os livros ganhos de sua avó , livros de George Sand , como A pequena Fadette (  livro que adquiri). Ela se importava muito com certos valores até caídos em desuso, mas , a seu ver, mais estéticos.  Vejo muito do meu gosto nessa avó. Amo móveis e objetos antigos, mesmo em desuso. Os objetos parecem nos contar histórias.  Os brechós de Paris e imediações que me aguardem! Rsrs  No meu banheiro, p.e., tenho um armário  ( comprei de brechó)  que devia guardar  partituras musicais. Hoje guarda outras coisas. Foi pintado de branquinho. Foi repaginado !



Amigos lembrei de outra coisa. A avó do menino  lê as histórias de George Sand  mas pula nos trechos de beijos. Isso me faz lembrar do Alfredo em Cine Paradiso  que é obrigado pelo Padre a pular os beijos exibidos nas fitas.  Só que um dia,   já quando o menino está adulto, recebe a fita com todas as gravações dos beijos. Eu me acabei de chorar, vendo esses trechos . Alfredo teria se inspirado na avó de Em busca do tempo perdido? (Elô)



Gente  estava lendo mais um trecho do Em busca do tempo perdido. A primeira vez que o menino ao tomar  chá tem uma experiência com o prazer da madeleine. O instante que ultrapassa o instante.  Seria uma sensação de iluminação? Em que seu ser parece ganhar certa magia. Lembro que comentei ter sentido isso por duas vezes: com um poema de Drummond e diante de um quadro : La promenade. São instantes de iluminação, de quase eternidade. Seu ser se expande. (Elô)


Vi esse quadro de perto numa exposição do CCBB.  
Fiquei extasiada diante dele.
(Elô)



Um dia lendo essa poesia, 
uma forte sensação de iluminação  aconteceu. 
Raríssimo , breve momento. 
Mas a conexão com o poeta valeu!
(Elô)



2 de fevereiro de 2022

Open Letter to an anonymous reader of Ulysses

2/2/2022 - 100 anos de Ulisses





Hi Dude,

I'm happy to receive your opinion and sum up of the book. As a woman I feel flattered by discovering this side of James Joyce. One of our friends, who managed to read the whole book - so far I have not - said the last 55 pages show a woman speaking on and on as if she was a modern-day woman. There are no significant differences on speech, even though the book was written 90 years ago. This friend did not point out that Bloom´s wife betrayed him and, besides not suffering revenge or punishment due to that fact, she was asked to marry him again. Beautiful, pure, truly an example of how we can achieve a better world by accepting each other´s faults, at least in our own houses.

Thank you for participating,
Best wishes,

Rita Magnago