12 de dezembro de 2006, 10 horas, Igreja Porciúncula de Santana.
Conferi o papel em que anotara o comunicado publicado na comunidade do
Liceu Nilo Peçanha convidando para a cerimônia que celebrava os 50 anos
de formatura da turma Ginasial de 1956 do famoso colégio niteroiense.
Ingressei no Liceu 20 anos após aquela turma iniciar o Clássico ou
Científico, que era o equivalente ao atual Ensino Médio. Só a forte
ligação que sempre tive com o colégio me fazia ir a uma cerimônia em que
não conhecia nenhum dos presentes. Chegando lá, fiquei a observar
aqueles jovens senhores, tentando imaginar que vida teria levado cada um
deles após deixarem o Liceu. Minha timidez fez com que ninguém soubesse
de minha presença. Nos dias seguintes, vários daqueles agora já vovôs e
vovós tomaram de assalto a internet e passaram a comentar sobre o
encontro na Igreja e os causos da época em que estudaram, com uma
memória prodigiosa com relação a nomes e fatos. E como escreve bem
aquela turma! A cada relato eu ia conhecendo mais sobre eles, e passei a
me aproximar com alguns pitacos na conversa. Foi aí que conheci a
Nelma, que se emociona sempre que volta ao colégio; Verinha, advogada,
porta-bandeira do Colégio nos desfiles na Avenida Amaral Peixoto e
rainha do Grêmio, que quando volta a Niterói tem que beber um
Mineirinho; Carlinhos, autor de vários contos sobre o Liceu contidos num
livro a mim presenteado recentemente; Yara que acompanhou de longe, mas
bem próxima pelos laços da internet, a Copa Libertadores de 2008 e
ainda Pedrita, Silvio e tantos outros. Ainda tinha minha tia Lecy, que
acabei descobrindo que estudara junto com alguns deles. Era a época dos
discos de 78 rotações que eram tocados pela turma do Grêmio, onde se
ouvia Elvis, Neil Sedaka e The Platters. Porém, a figura que mais me
marcou, e possivelmente a todos daquela turma, não estava ali presente.
Manequinho do Liceu, era como ele era chamado. Aliás, Liceu era
praticamente um sobrenome de todos ali. Era sempre Fulano de Tal, DO
LICEU. O Manequinho estudara antes no Figueiredo Costa, colégio de
grande fama, e relutara bastante em ir para o Liceu, mas um primo
insistiu tanto que ele acabou aceitando o desafio, pois o colégio tinha
fama de ser mais rigoroso ainda do que o Figueiredo Costa. Assim, ao
contrário da maioria que entrava no primeiro ano do Ginasial, ele
ingressou no primeiro ano do Científico. Relutou, mas quando entrou, era
o mais liceísta de todos. Como uma das meninas me falou, ele parecia
aquele que Deus olhou e disse: “Desce lá e arrebenta!”. Sua beleza era
ressaltada até pelos rapazes. Claro que seu talento para o futebol e
entusiasmo pelo esporte e música o ajudaram a se destacar, mas seu senso
de companheirismo, de congraçamento e de justiça era tão visível que
logo ele estava no Grêmio. Queria participar de tudo. Se os amigos de
Grêmio se doavam 90%, ele era 100%; se os outros conseguiam os 100%, ele
arrumava um jeito para chegar a 110%, e fazia tudo sorrindo, como se
não fosse nada demais. Os amigos diziam: “você está marcado para grandes
feitos!”
No meio dos relatos, eu montava mentalmente cada cena em que o
Manequinho se encontrava, o que era facilitado pela profusão de
narrativas sobre o mesmo. Quando a memória falhava para o Carlinhos,
vinha outro e emendava a continuação. Assim, conseguia enxergá-lo nas
viagens, competições esportivas, as reuniões do Grêmio, os embates com o
diretor para que permitisse uma atividade não prevista, ou mesmo para
defender alunos injustiçados. Mas o tempo ia passando e, como ele era o
caçula da turma, alguns amigos saíram do Liceu antes dele. Começou a
sentir falta dos amigos já no dia da formatura. Quando o viram chorando
no discurso do Professor Baltazar, muitos perguntaram se ele estava
emocionado pelas palavras em latim ditas pelo professor. Respondeu com
um palavrão e confessou que estava já com saudades deles. Mas um deles, o
Carlinhos, mesmo aprovado para a Faculdade de Direito da recém criada
Universidade Federal Fluminense, não conseguiu se afastar e arrumou um
jeito de permanecer no Grêmio e participar de tudo por mais um ano.
Assim, Manequinho ainda tinha o bom companheiro de aventuras, que
ultrapassavam os muros do colégio. Mas ele já começou a se preparar, do
que faria no pós-Liceu. Diziam que os liceístas tinham duas opções: ou
ingressavam nas melhores universidades ou seguiam a carreira militar.
Muitos se assustaram quando souberam que Manequinho se alistara numa
unidade do Exército. Diziam que ele não tinha o perfil, que estranharia
toda aquela disciplina. Ele só sorria, parecia que não se preocupava com
o futuro. Disse então que ele provocaria uma revolução no Exército.
“Como você vai abandonar esse topete de Elvis?”, diziam os amigos. “Pois
essa vai ser a minha primeira revolução, e em breve todos lá usarão um
topetão.” Os relatos que eu ouvia sobre ele diminuíam a partir de seu
alistamento, e isso para mim era lógico, pois cada um foi seguindo o seu
caminho.. Mas as cenas continuavam a ser montadas por mim. Eu o via
claramente. Veio o golpe de 1964. Numa reunião quase clandestina de
ex-liceístas, já que reuniões com estudantes não eram muito bem-vistas
na época, surgiu a notícia de que dois colegas tinham sido presos,
acusados de subversão. Lembraram então que o Manequinho estava no
Exército e decidiram pedir sua ajuda. Foram a sua casa no Bairro de
Fátima (coincidentemente, próximo de onde eu morei) e lhe mostraram o
quadro. Ele ficou de procurar pelos antigos companheiros de Grêmio e que
faria o máximo para ajudá-los. E ajudou-os. Usando o seu poder de
convencimento, encontrou um oficial bem graduado que tinha uma posição
mais moderada do que a que reinava e os amigos puderam voltar para suas
casas. Confrontado pelos amigos pela situação, da qual ele acabava
fazendo parte, ele dizia que infelizmente não podia ajudar muitos
outros, como os amigos do Grêmio, e que ficava triste com isso. “Eu sou
um só”. Em 1968, o Brasil vivia um momento de grande agitação política,
e mais uma vez surge em cena o Manequinho. Houve uma ordem, partida de
um militar bem graduado, de que um atentado contra um conglomerado
industrial público no Rio de Janeiro fosse impetrado por membros da
Aeronáutica e do Exército, com o objetivo de culpabilizar grupos
clandestinos de oposição ao regime. Dois militares se insurgiram à
ordem, pois não queriam sangue em suas mãos, e ameaçaram tornar pública a
história. Um deles era um Capitão da Aeronáutica. O outro era
Manequinho. Foram presos por isso, e posteriormente expulsos de suas
armas, sendo ameaçados para não contarem nada. Mas ao menos eles
conseguiram que a ordem fosse cancelada. Veio a Anistia em 1979, e nada
de notícias sobre Manequinho, até que durante a tragédia das chuvas em
Niterói em 2010, eu o vejo chorando a morte de algumas crianças. Com a
indenização que recebera, pela injustiça que sofrera, Manequinho
construiu um centro esportivo para receber jovens carentes, dentre eles,
estavam duas crianças do Morro do Bumba.
Infelizmente, o Manequinho não esteve presente nas cenas narradas
após maio de 1962. Já no Exército, ele adoecera seriamente e uma
leucemia o impediu de realizar os grandes feitos para os quais estava
destinado. Talvez não aqueles que apareceram nas cenas montadas por mim,
mas certamente tão grandiosas quanto. Me fez lembrar o personagem
Nemecsek do livro Os meninos da rua Paulo, que era franzino mas
que acabou tornando-se um herói. Os últimos relatos sobre ele
mostravam a Verinha chegando chorando na casa do Carlinhos para lhe dar a
triste notícia:
- Morreu, Carlinhos. Ele morreu …
(escrita em agosto/2010 e finalista do
Prêmio UFF de Literatura de 2010, e presente na Coletânea do referido
concurso, publicada pela EdUFF