Vi quando o moleque arrancou a bolsa dos ombros da senhora e quase a
derrubou no chão. Foi muito rápido. Veio na corrida, abocanhou a
bolsa e continuou correndo. Esgueirou-se entre pernas e automóveis.
Quando a mulher gritou, ele ia longe, fora das vistas indiferentes
dos que passavam, mas não da minha. Eu esperava por uma oportunidade
dessas. Andava pelas ruas observando, atento à movimentação dos
moleques. Apalpei a meia trinta e cinco oculta no cós: teria de
chegar perto, bem pertinho... E teria de ser num lugar de pouco
movimento.
Não perdi de vista o pixaim descolorido pela água oxigenada. Ele
entrou por uma rua, saiu em outra; deu a volta no quarteirão
movimentado, se misturou às pessoas, parou na porta de uma galeria.
Da loja de discos ao lado, vinha o som de um pagode cantado por um
sujeito de voz pastosa; na calçada, camelôs anunciavam seus
produtos criando uma insuportável algaravia. O moleque observou tudo
durante um tempo, depois foi andando. Ia devagar, esperto, tinha o
punho esquerdo fechado à altura do peito, com a mão direita
espalmada dava umas pancadinhas no punho fechado como se marcasse um
ritmo. A todo momento se voltava, sua visão era de trezentos e
sessenta graus. Dobrou a esquina deixando a rua principal e seguiu em
direção à praia.
Duas meninas com uniforme escolar vinham pela calçada. De longe, vi
quando ele as interpelou. Ameaçava-as com um caco de vidro. Pegou
uma mochila colorida, apoderou-se de uma bolsinha, arrancou um
reloginho, mas a mão de um senhor acertou em cheio no seu pescoço.
Do jeito que caiu se levantou, e antes que um pontapé o pegasse, já
estava longe. Parei para ajudar a procurar o reloginho caído no
chão. Isso me fez perder o moleque de vista. Dei voltas pelos
quarteirões e, após cortar várias ruas, vi uma mulher que tentava
estacionar numa vaga apertada. O flanelinha sinalizava com a mão
para ajudá-la. Era ele. Parei na esquina, apalpei a calça; a rua
era muito calma, um lugar interessante...
Quando a mulher terminou a manobra e abriu a janela para lhe dar uma
gorjeta, ele a assaltou com o caco de vidro. Pegou a bolsa que a
mulher entregou, remexeu dentro, tirou o que queria e jogou a bolsa
no chão. Corri para alcançá-lo, mas um porteiro também correu.
Dois rapazes apareceram e foi uma gritaria danada que reverberou
naquela rua cercada de prédios. O moleque parecia uma gazela. A
perseguição atravessou duas esquinas, mas, de repente, ele sumiu.
Os rapazes e o porteiro retornaram enraivecidos e excitados.
Eu continuei. Passei um quarteirão, passei outro. Quando ia cruzar
a terceira esquina, levei uma trombada que, por pouco, não me
derrubou. Aos meus pés, apavorado, o moleque se arrastava para um
vão de parede. O nariz sangrava, tinha os olhos arregalados e
tremia. Levou o indicador à boca, ia implorar alguma coisa. Enfiei a
mão dentro da calça e senti o contato com o metal morno. Segurei a
pistola já com o dedo no gatilho, mas uma barulheira de vozes
intimidou meu gesto. Um grupo de rapazes mal-encarados vinha em nossa
direção. O da frente quase era arrastado por um cão pitbull.
O moleque fez cara de choro, implorou socorro com os olhos
esbugalhados. Olhei o medonho grupo que se aproximava, olhei o
moleque; antes que eu pudesse pensar qualquer coisa, ele se levantou
e correu. Ao atravessar a rua, levou um trompaço de uma bicicleta
que vinha na contramão, jogando-o a mais de dois metros. Os rapazes
e o pitbull o alcançaram ainda no chão. Não o vi mais. Também não
vi o pitbull que se enfiou na confusão de pernas que chutavam e
pisavam. Ouvi uns gritos de terror, mas foi coisa ligeira.
Ajeitei a meia trinta e cinco no cós, virei as costas e fui
andando. Lembrei-me de um filme. Havia uma cena em que um atobá
mergulhava e pescava um peixe que não parava de se debater em seu
bico. E o peixe tanto se debateu que se soltou em pleno ar, mas antes
que chegasse à água, foi capturado por uma gaivota que vinha num
rasante.
Retornei à rua principal e fiquei no meio daquele movimento de
gente para lá e para cá. Divaguei um pouco, observando as pessoas.
Até que vi, sentadinho no mármore da entrada de uma padaria, o
moleque de pixaim descolorido. Os olhinhos espertos observavam em
trezentos e sessenta graus, as mãozinhas magrelas marcavam um ritmo
nervoso batendo palmas sem som.
Confesso que eu torço pelo moleque de pixaim descolorido... E que o narrador-armado seja preso - ou se frustre, na sua caça psicopata. Se o cara já sai de casa armado, tem mais é que morrer com a própria bala. Já o moleque deve ser o mesmo retratado em "Meu guri", do Chico Buarque... Imagino a mãe favelada abrindo as bolsas e finalmente "se identificando" com os documentos ali existentes. O "perigoso" na história é o homem com arma de fogo, assassino em potencial. Como ele, o grupo encabeçado pelo pitt bull, também sedento de massacres pelas próprias mãos. Já o garoto não cortou ninguém com seu caco de vidro... Bom conto. Põe pra fora os temores da classe média e os horrores que se dispõe a praticar em defesa de sua vidinha. Parabéns, Carlos!
ResponderExcluirO conto de Carlos Rosa Moreira não nos coloca em oposição ao menino, de forma alguma. Ele só faz o nosso coração bater forte com vontade de mudar certas situações da sociedade. Se alguém desse uma pequena chance a esse menino, será que ele seria o mesmo selvagem em busca de proventos? Onde estão os que deveriam cuidar da educação dele? Os pais ensinaram-no a respeito da vida? Ora, eu não vou jogar pedras no menino que poderá se tornar um adulto perigoso. Eu culpo, sim, essa sociedade que o abandonou e fechou as portas. O homem que observa o moleque revela intenções de resgatá-lo? Se não, duvido que a violência possa ser diferente dessa que estamos presenciando.
ResponderExcluirTemos outros olhares para o conto, questões completamente contrárias as que foram feitas, mas aguardaremos os próximos capítulos.
Excelente!
Sonia Salim