Fundado em 28 de Setembro de 1998

31 de dezembro de 2015

A Caixa Preta: Amós Oz


"Que tipo de amor é este?"




"A maldade gélica que emana de você como um brilho polar azulado e que o tornou odioso ao ponto da histeria para as outras moças do batalhão - foi isso que prendeu meu coração. Seu ar de domínio indiferente. A crueldade que emana de você como um perfume. O cinzento dos seus olhos, como a fumaça do seu cachimbo. A ferocidade cortante de sua língua diante de qualquer sinal de oposição. O seu prazer de lobo com o prazer que impunha. O desprezo que sabia  emitir como um lança-chamas, e disparar num jato causticante sobre seus companheiros, seus subordinados, no grupo de secretárias e escreventes, que sempre ficavam petrificadas na sua presença. Como enfeitiçada, fui atraída para você das profudidades lodosas da subserviência feminina ancestral, uma servidão anterior às palavras..." p. 167




Hermosa Beach, 5 de novembro de 1983

                                                                                                                          Mãe,

     Se D'us me pedisse opinião sobre qual deveria ser a ordem de acontecimento das coisas na minha vida, eu certamente apresentaria um plano completamente diferente do que Ele fez acontecer e ainda anda fazendo, claro. Eu apresentaria um plano certinho, coerente, lógico. Mas D'us botou no lixo o meu certinho, tornou incoerente a ordem dos acontecimentos segundo meu ponto de vista, segundo a minha lógica. Será porque D'us prepara riquezas inimagináveis para seus filhos? Será porque a minha lógica apenas me encerraria num mundo menor do que aquele que Ele reserva para mim? Será porque, dentre os seus filhos, Ele escolhe aqueles com quem acha ser divertido brincar e dar-lhe toda sorte de acontecimentos, descarregar sobre ele Seu amor e Seu ódio? Ou talvez D'us esteja apenas querendo me ensinar que a verdadeira felicidade segue outro rumo que aquele que eu poderia desejar para mim mesmo.

...

Todo amor da filha,

                                                                                                                          M.Y.


Volteemos um pouquinho no tempo:


para onde ele olha, o que vê?

os olhos bebem brilho e sombra.

quais palavras mal pôde exprimir
- verdade, novela, incenso - 

antes que o repouso dos lábios
dissessem silêncio, e antes espera?

que ideias pressionam agora
por dentro, o crânio? quase posso

com a ponta dos dedos, tocá-las:
uma censura, uma saudade bem física.

na parede ao fundo, a  imagem
a mesma dos últimos vinte ou trinta

anos, uma expressão, apenas
algo que talvez pudesse legar de si.

os braços tentáculos, extensão
daqueles quase mouros (na infância

pendurávamos neles o corpo
no cipó dos pelos resistentes, nas mãos

ásperas de polegares diferentes).
o traje folgado, a tensão no cinto
de onde vem, para onde vai...
ah, o futuro, os passos miúdos no chão

se chegou, quem sabe? quem diz
o que será depois dos 80?

                                                                                                                            d.


Niterói, 5 de Abril de 1981

                                                                                                                    Mamãe,

     Como vai você e como vão todos aí? Tudo O.K. com o Boaz, tudo odara com titia, tudo final de linha com Alec, tudo gostoso com a merência e tudo tranquilo com você? Tem tomado guaraná? Ou pelo menos tem sonhado com alguém te dando guaraná? E a coluna, tem alguém aí fazendo do-in nela para ela ficar duim-duim-duim? E o cigarro, diminuiu? O quê, parou? Esplêndido! Não, sonhar que está fumando não faz mal.

...

                                                                                          abraços e beijos da filha

                                                                                                                           M.Y.


Saúde
           Força
                      Coragem
                                     Ânimo
                                                Graça
                                                           e
                                                              Beleza

Pra você, com muito amor.


* * *


Colinas de Golã, 12 de Maio de 1982 - quarta feira

I,

...

     Mas agora é olho de águia e ouvido de coelho. Aproveito o exceço de tempo com pequenas utilidades e lendo alguns livros que há muito pensava ler mas o estudo escolar impedia. Aos poucos vou vencendo as iluzões.

     O que nos enche de alegria aqui no kibutz é saber que estamos livres da mesquinhez e dos mechericos conjugais que enfrentávamos nos sommos. O que nos enche de determinassão para a luta é a decizão de que este kibutz é um pouzo provizório.

Saudassões,

Boaz


* * *


Leia +

Veja a entrevista que Amós Oz deu à TV Cultura


Os votos: Sérgio Jockymann




“Pois desejo primeiro que você ame e que amando, seja também amado.

E que se não o for, seja breve em esquecer e esquecendo não guarde mágoa.

Desejo depois que não seja só, mas que se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos e que mesmo maus e inconsequentes sejam corajosos e fiéis.

E que em pelo menos um deles você possa confiar e que confiando não duvide de sua confiança.

E porque a vida é assim, desejo ainda que você tenha inimigos, nem muitos nem poucos, mas na medida exata para que algumas vezes você interpele a respeito de suas próprias certezas.

E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo para que você não se sinta demasiadamente seguro.

Desejo depois que você seja útil, não insubstituivelmente útil, mas razoavelmente útil.

E que nos maus momentos, quando não restar mais nada, essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante, não com que os que erram pouco, porque isso é fácil, mas com aqueles que erram muito e irremediavelmente.

E que essa tolerância nem se transforme em aplauso nem em permissividade, para que assim fazendo um bom uso dela, você dê também um exemplo para os outros.

Desejo que você sendo jovem não amadureça depressa demais, e que sendo maduro não insista em rejuvenescer, e que sendo velho não se dedique a desesperar.

Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e é preciso deixar que eles escorram dentro de nós.

Desejo por sinal que você seja triste, não o ano todo, nem um mês e muito menos uma semana, mas um dia.

Mas que nesse dia de tristeza, você descubra que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra com o máximo de urgência, acima e a despeito de tudo, talvez agora mesmo, mas se for impossível amanhã de manhã, que existem oprimidos, injustiçados e infelizes.

E que estão à sua volta, porque seu pai aceitou conviver com eles.

E que eles continuarão à volta de seus filhos, se você achar a convivência inevitável.

Desejo ainda que você afague um gato, que alimente um cão e ouça pelo menos um João-de-barro erguer triunfante seu canto matinal.

Porque assim você se sentirá bom por nada.

Desejo também que você plante uma semente por mais ridículo que seja e acompanhe seu crescimento dia a dia, para que você saiba de quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano você ponha uma porção dele na sua frente e diga: Isto é meu.

Só para que fique claro quem é o dono de quem.

Desejo ainda que você seja frugal, não inteiramente frugal, não obcecadamente frugal, mas apenas usualmente frugal.

Mas que essa frugalidade não impeça você de abusar quando o abuso se impor.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra, por ele e por você. Mas que se morrer, você possa chorar sem se culpar e sofrer sem se lamentar.

Desejo por fim que, sendo mulher, você tenha um bom homem e que sendo homem tenha uma boa mulher.

E que se amem hoje, amanhã, depois, no dia seguinte, mais uma vez e novamente de agora até o próximo ano acabar.

E que quando estiverem exaustos e sorridentes, ainda tenham amor pra recomeçar.

E se isso só acontecer, não tenho mais nada para desejar”




26 de dezembro de 2015

Livro: Tocaia Grande- a face obscura, de Jorge Amado


Olá queridos!
Vou reproduzir o post que fiz no meu blog Mar de Variedade.

Finalmente consegui concluir essa leitura do mês de novembro do Clube de Leitura Icaraí.
Gosto muito do autor Jorge Amado e sou leitora de seus livros desde a adolescência. 

Sinopse (Livraria da Travessa): "Em Tocaia Grande, Jorge Amado descreve o processo de formação de uma cidade nordestina nascida sob o signo da violência e da disputa de terras. Romance caudaloso e panorâmico, revela a “face obscura” de um lugar em que a lei não vigora nem há presença formal do governo.
Na região cacaueira, a pequena cidade de Irisópolis é o microcosmo de uma sociedade de funcionamento tradicional e arcaico, que recebe os ventos da modernização sem perder a herança perversa. Apesar do progresso, da emancipação e dos elementos civilizatórios, o lugar vai conservar seus traços originais: o sangue derramado, a marca do pecado e a memória da morte."



Nesse livro, podemos ver a formação de uma cidade, que começa com a transferência de terras ao jagunço Natário da Fonseca pelo Coronel Boaventura, após uma tocaia naquele mesmo lugar. 
Jorge Amado consegue descrever muito bem, com muitos detalhes, todo o crescimento desse povoado até se transformar em uma pequena cidade do Nordeste.
O autor utiliza a linguagem regional, mas, pelo contexto, consegue-se entender. Quem não conseguir, pode buscar o significado no google. 
É um livro de pouco mais de 400 páginas, em que é contada a história dos habitantes daquele lugar, desde romances, plantio do cacau, o comércio local, a vida fora da lei dos jagunços, a vida das prostitutas que também moravam em Tocaia Grande.
A história consegue passar também que, apesar da prática de crimes, a mando dos coronéis, os jagunços também tinham ética entre eles e que a vida fora da lei não necessariamente significava que seriam pessoas desumanas quando estivessem em seu dia a dia. 
Enfim, é muito interessante ver uma pequena cidade começar, e Jorge Amado consegue fazer isso muito bem nessa obra.
Boa leitura!

2 de dezembro de 2015

Parabéns Astrônomos!


Felizes astrônomos... 
Viajam suas infindáveis estradas escuras pontilhadas de luz. 
Passeiam pelo infinito azul-negro-profundo 
como o veludo do meu vestido de gola de renda de Racine bege 
que tinha flores bordadas no lugar de estrelas.

(Ilnéa)

Foto: Carlos Fairbairn - Fonte G1


2 de dezembro

Dia do Astrônomo


30 de novembro de 2015

Copacabana - conto escrito por Hélio Penna, participante virtual do CLIc

COPACABANA

Hélio Penna


            O pedreiro José procurava um banco na Avenida Atlântica para sentar-se e descansar um pouco do trabalho de reforma de um apartamento, ali em frente. Acomodou-se ao lado da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, num pedacinho de sombra que o bardo generosamente lhe ofertava, num dia muito quente. Ajeitou o boné surrado que usava para protegê-lo na obra. Pensou até em deitar-se ali. Mas não ficava bem esticar-se num banco em Copacabana. E do jeito que estava vestido e sujo, podiam tomá-lo como um mendigo.
Olhou para a escultura, e pensou que um homem assim, de modos tão finos, não podia aguentar o trabalho em obra.  Não durava um dia. Ainda mais com aquela patroa que não prestava. A dona do apartamento era conhecida artista de TV. Famosa pelos papéis de mocinha nas novelas, a patroa era mão-de-vaca, rude e preconceituosa na vida real.
            José distraiu-se com uma jovem volumosa e bela que acenou para a estátua de bronze e seguiu feliz em sua vistosa bicicleta. Enquanto o seu olhar tímido seguia a formosura, uma senhora fazia gestos ríspidos em sua direção:
            - Chega pra lá! Quero tirar foto do meu filho!
            Ele afastou-se, com os olhos na madame corpulenta, vermelha, imponente. Um chapéu largo projetava uma sombra austera no seu rosto. O menino, rechonchudinho, estava de uniforme colegial, lembrando uma farda militar e uma boina na cabeça, fazendo-o parecer um soldadinho roliço.
            - Sorri! - ordenou a mãe.
            A criança sentou-se de má vontade ao lado da escultura e, aborrecida, não sorriu.  A máquina fez o registro fotográfico, e os dois se afastaram. A mulher ainda olhou o pedreiro com repulsa.
.
O pedreiro não aprendeu a ler nem escrever, mas seus filhos completaram o ensino fundamental na escola pública. E um deles, o mais velho, era muito apegado à leitura. “Seu filho tem um dom. Não o deixe abandonar os estudos.” Recomendou-lhe um dia a professora. Mas o pedreiro se viu obrigado a deixar o local pobre em busca da vida nova na Capital.  Aqui, o primogênito trocou o ensino pelo balcão de uma padaria, para contribuir com o sustento dos seus cinco irmãos.
            A moça ondulante retorna em sua bicicleta. Novo adeusinho para a estátua do poeta. Deteve-se logo adiante para atender ao telefone. O pedreiro a admirava discretamente. Na ligação, lhe perguntaram onde ela se encontrava. “Na Atlântica... perto da estátua do velhinho.”, respondeu e seguiu em frente.
 José aproxima-se novamente da efígie. Intrigado, olha-a detidamente. Tira o boné, e coça os ralos cabelos crespos e embranquecidos: do quê aquele homem se ocupara? Pergunta-se em vão. E desconhecendo que aquele poeta mergulhou nos seus sonhos, ele se levanta, e retorna ao seu cotidiano intenso.. 

25 de novembro de 2015

Niterói de todas as tribos



1. O Clube de Leitura de Icaraí nasceu como uma reunião de amigos, certo? Ainda hoje há esse clima intimista nos encontros?


Correto, Pamella.  Começamos de forma bastante informal com um grupo de amigos que decidiu ler o mesmo livro e se encontrar para conversar sobre ele, revezando o local da reunião entre as casas dos participantes. Hoje somos um grupo aberto a toda comunidade Niteroiense, o que não significa que tenhamos perdido o espírito amistoso e festivo original, porque é ótimo fazer novas amizades em torno de algo tão enriquecedor como o livro.


2. Por que criar um espaço como esse de leitura em Niterói?


A criação do Clube de Leitura não foi premeditada, aconteceu espontaneamente. A gente percebeu que este era um anseio de muita gente que foi aderindo ao grupo inicial, até que recebemos o convite de uma Livraria do bairro para que abríssemos o movimento para mais pessoas. Foi uma oportunidade muito feliz criar esse espaço para mais pessoas participarem.


3. Quais temas vocês costumam abordar nos encontros?


Os temas são a literatura, as leituras realizadas, os escritores, o amor pelo livro, a amizade e tudo o que diz respeito a um ambiente em que estas coisas são vivenciadas com respeito à diversidade de opinião e fundamentadas na experiência de vida dos participantes. É uma oportunidade ímpar que coloca lado a lado pessoas das mais diferentes formações profissionais: psicólogos, engenheiros, donas de casa, estudantes, etc.


4. Qual é a importância que o Clube de Leitura traz para a cidade de Niterói e seu cenário literário?


Niterói é uma cidade eminentemente cultural e com grande produção literária. E cultura é como fogo, se intensifica e se alastra quanto mais gente culta e oportunidades de se encontrarem existirem. Um clube de leitura possibilita esse encontro, além de atrair grandes nomes da literatura brasileira para debater suas obras in loco. Já compareceram a debates na Livraria Icaraí nomes como, Rubens Figueiredo, Godofredo de Oliveira Neto, Silviano Santiago, Gustavo Bernardo, etc., e, também, autores locais, como Gracinda Rosa, Novaes Barra, Carlos Rosa, Dília Gouveia, entre outros.


5. Como surgiu a ideia de criar um novo clube que fosse direcionado para o público mais jovem? Qual é o propósito?


A ideia partiu da própria Editora da UFF quando percebeu que havia um gênero literário a ser explorado pelo clube de leitura, que funcionasse como porta de entrada na formação de um público leitor quando adulto. Uma livraria universitária como a Icaraí é a agente ideal para essa formação, porque dá a liberdade de escolha necessária para a formação de um leitor culto e crítico em relação à sociedade que o rodeia.
 


6. Acredita que os dois clubes de leitura já fazem parte da própria história da cidade? Qual é o significado disso?


O Clube de Leitura Icaraí já existe há dezessete anos e tem uma belíssima história que foi retratada no livro “Clube de Leitura Icaraí - 15 anos entre livros” publicado pela própria Editora da UFF por ocasião dos quinze anos do Clube. O Clube Jovem tem apenas dois anos e ainda está engatinhando, buscando sua identidade a partir dos interesses de leitura dos jovens que o frequentam. Para nós será uma honra se um dia formos lembrado como contribuintes para a bela história que tem a nossa cidade.


7. Afinal, literatura e Niterói se complementam? O que há de comum entre os dois?


A Arte, a grande Arte, porque Niterói é uma das cidades mais bela do mundo, e tanta beleza não deixa indiferente seus moradores, que encontram na Literatura a forma ideal de expressão do que vivem e sentem pela Cidade. O clube de leitura é certamente um lugar onde essa complementaridade acontece de forma prazerosa.


8. Acha que ainda faltam espaços para a literatura na cidade ou isso vem crescendo cada vez mais?

Existem diversos movimentos literários na cidade dialogando com espaços de leituras, música, filosofia, e diversas manifestações artísticas. A cidade de Niterói fervilha de eventos culturais em cafés concertos, associações e academias literárias, lançamentos de livros, clubes culturais, terapias com livros, corujões poéticos, etc. E que cresçam cada vez mais esses espaços, por toda cidade, nunca é demais.


21 de novembro de 2015

Uma homenagem a Zumbi dos Palmares




O Dia da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro como forma de homenagem a Zumbi dos Palmares, um dos maiores heróis da história do Brasil. A data marca o dia de sua morte, ocorrida no ano de 1695, por ocasião da guerra travada entre o governo brasileiro e os negros inseridos no Quilombo dos Palmares.

A comemoração do 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra surgiu na segunda metade dos anos 1970, no contexto das lutas dos movimentos sociais contra o racismo. E o ano de 2011 foi instituído pela ONU como Ano Internacional dos Afrodescendentes, para fortalecer o compromisso político de erradicar a discriminação a descendentes de africanos.

Quilombos eram locais de refúgio para escravos no Brasil. Geralmente eram estabelecidos em locais de difícil acesso, embrenhados em matas, florestas ou montanhas. O mais famoso dos quilombos foi o de Palmares - localizado na Serra da Barriga, região pertencente ao atual estado de Alagoas -, criado no início do século 17.

Os relatos históricos existentes são muito controversos e pouca certeza há na origem de Zumbi. Isso se deve ao fato de que os relatos acerca de sua vida foram feitos por seus inimigos: os colonos e portugueses que se puseram a combatê-lo, pagos por senhores escravagistas. Entre as diversas versões, conta-se que era um chefe africano trazido à força para ser escravo, ou um homem livre que nasceu em Palmares, ou ainda um filho de escravos que foi criado por um padre até os 15 anos, tendo aprendido a ler, a falar e a escrever em português e em latim.

O que se sabe com mais certeza é que Zumbi foi o grande líder do Quilombo dos Palmares. Sua lendária imagem o apresenta como um homem forte, orgulhoso e inconformado com sua condição social, que resolveu enfrentar aqueles que torturavam seu povo.

Palmares, durante quase todo o século 17, foi alvo de mais de 40 incursões militares, que buscavam terminar com o quilombo. Afinal, a autonomia dos negros ameaçava a hegemonia dos senhores de engenho, pois seguidamente seus escravos fugiam para a Serra da Barriga, ou eram libertos por guerreiros quilombolas, em expedições ocasionais.

Durante o tempo em que liderou seu povo contra a ganância e o ódio dos escravagistas, Zumbi organizou uma resistência poderosa, que conseguiu manter a estabilidade do quilombo por muitos anos. Em 1694 e 1695, ocorreu uma verdadeira cruzada contra Palmares. O drama finalmente terminou quando o mulato Antônio Soares (ex-companheiro de Zumbi que foi capturado e torturado pelos expedicionários paulistas), atraiu o grande líder para uma emboscada e apunhalou-o no estômago, dando sinal para os paulistas avançarem. Zumbi lutou até o fim.

Depois disso, muito da história se perdeu, mas a história legendária de Zumbi permaneceria. Foi citado pelos abolicionistas, no século 19, como grande herói e mártir.

A partir da década de 1980 novos estudos buscaram traçar a real identidade de Zumbi e dos quilombolas e, em 1995, a data da morte do maior herói negro e símbolo da liberdade foi adotada como o Dia da Consciência Negra.


(Texto enviado ao CLIc por Daniel Chutorianscy)

11 de novembro de 2015

Dicas da Elizabeth para escolha do livro do mês



Tudo que é explora o curso de uma vida num mundo em transformação. Depois de participar da Segunda Guerra Mundial como soldado no Japão, Philip Bowman retorna aos Estados Unidos para recomeçar a vida. Pelas décadas seguintes, acompanhamos sua carreira, seu casamento e divórcio. Novas relações amorosas aparecem sendo a mais significativa delas marcada por uma traição que Bowman vinga de forma particularmente cruel. Este não é um livro de grandes mistérios ou acontecimentos marcantes. É uma história sobre as pequenas coisas da vida e um teste para qualquer grande escritor. Depois de 35 anos sem publicar um romance, Salter mostra por que é considerado um dos maiores nomes da literatura americana atual.









Em seu castelo na Hungria, na região dos Cárpatos, um velho general do Império austro-húngaro é visitado por um homem de quem foi amigo inseparável na infância e na juventude. Não se vêem desde 1899, há quarenta e um anos, quando um dia o amigo desapareceu inexplicavelmente. 'As Brasas' é um romance sobre a amizade, a paixão amorosa e a honra. Também procura ser uma representação da vida da aristrocacia no Império austro-húngaro.


As brasas já foi lido no Clube de Leitura e debatido em 24/08/2002




Neste livro, o autor traça uma história afetiva de sua cidade e revela os personagens, as ruas e os becos, os grandes e os pequenos acontecimentos que definiram sua vida. O centro de tudo é o Edifício Pamuk, construção que no início da década de 50 abrigava, espalhada em seus andares, toda a família do autor. Circulando pelos corredores do edifício, o pequeno Orhan tenta dar sentido a coisas que vê, mas não entende por completo - as ausências do pai, as fotografias espalhadas pela avó, o indefectível piano que todos seus parentes têm nas casas, mas que nunca tocam. Conforme cresce, ele ganha as ruas, em longos e solitários passeios, e começa a se impregnar dessa tristeza coletiva que assombra a cidade. Mas, ao mesmo tempo em que de certo modo o oprime, Istambul fornece um repertório de imagens - as casas na beira do Bósforo, os incêndios das mansões dos paxás, as enciclopédias de curiosidades compradas em sebos. Pamuk tira da cidade a experiência que o conduziu à arte.






O universo do samba, as culturas africana e brasileira, as tradições populares. Nei Lopes, pesquisador, compositor, escritor e cantor, transita por esses temas com a mesma naturalidade com que passeia por diferentes tipos de linguagem e registros sociais. Em 'Contos e crônicas para ler na escola', o autor, que usa suas próprias memórias e experiências para inventar saborosas histórias, resgata personagens e reescreve eventos do passado mantendo um olhar atento para o futuro. Sua escrita é, nesse sentido, extremamente moderna e atual. Ao circular entre o universo popular e o erudito, o escritor rompe barreiras sociais e aborda a realidade cultural brasileira de um jeito singular. Em sala de aula, o professor pode aproveitar diversos aspectos de seus textos para trabalhar as diferenças entre linguagem informal e formal, e ainda mostrar como as palavras podem mudar de significado e uso com o passar do tempo e de acordo com as transformações sociais e culturais do ambiente em que estão inseridas. Os contos e as crônicas reunidos no livro são breves, precisos e asseguram, invariavelmente, boas risadas no final. Inteligentes, bem-humorados, os textos Nei Lopes acolhem um sem números de adjetivos, mas que podem ser resumidos a uma só palavra - imperdíveis.







Tendo como ponto de partida a intersecção entre uma espiral e um quadrado, nos quais se inscreve uma curiosa frase em latim, o romance cria uma trama de texto e mundo, em que a imagem dos nomes sobrepõe-se à imagem dos seres e das coisas, compondo um terceiro destino que cabe necessariamente ao homem decifrar. 'Avalovara' intercala oito temas narrativos que atravessam tempos e espaços distintos, de Amsterdã a Recife, do Recife à Roma Antiga, daí a São Paulo e vice-versa, numa narrativa notável, que ambiciona abarcar o mundo e a linguagem em sua totalidade.









Uma Luanda dos anos 1980 com professores cubanos, escolas entoando hinos matinais e jovens de classe média é o cenário de 'Bom dia, camaradas'. Do universo do romance também fazem parte as lembranças dos cartões de abastecimento, as desigualdades sociais e os conflitos entre modernidade e tradição. Através do olhar lírico de um garoto, o leitor é levado a uma Angola que acabou de se tornar independente e é obrigada a repensar as regras sociais e a questionar as causas da desigualdade. Ondjaki nos conduz aos pequenos acontecimentos do cotidiano que mostram como é preciso mais que um decreto para que as mudanças de fato aconteçam. Assim como em outros livros de Ondjaki, o mundo dos jovens e a descoberta da vida adulta e seus conflitos são retratados sem o tom irritadiço das militâncias nem a condescendência do lirismo excessivo.



7 de novembro de 2015

O menino do pijama listrado: John Boyne



"O trabalho liberta"

A menina que dançou para o anjo da morte
KCTV5



Usando a roupa certa, você se sente como a pessoa que está fingindo ser.

O amigo imaginário

"Em um dos maiores conflitos da história, senão o maior, John Boyne mostra a visão de um menino alemão, filho de um oficial do exército nazista e admirado pelo Fúria, sobre o campo de concentração. No início, tudo é muito chato e ele não entende, só quer voltar para casa. Seu sonho de ser explorador, porém, muda tudo. Bruno conhece Shmuel, um judeu de nove anos que foi para o campo com toda a sua família. Todas as tardes os meninos se encontravam e conversavam sentados separados pela cerca do campo." (fonte)


Haja Vista
O menino do pijama listrado é uma obra infanto-juvenil que se ajusta à alma dos adultos sensíveis. Sua narração retrata a crueza que cerca a execução de judeus durante o nazismo, e a pureza ou ingenuidade de um menino de 9 anos.

Shoah

"Aos nove anos, vivendo numa família rica de Berlim, sua única preocupação é azucrinar a irmã de 12 anos, Gretel. Sua maior ocupação é brincar com os amigos inseparáveis Karl, Daniel e Martin, aliás, dos quais, passados poucos meses, já não consegue lembrar, com segurança, o nome e detalhes, numa mostra incontestável de que as lembranças se esvaem. As cicatrizes ficam: vestígios de dores sofridas ou de amores idealizados. A tranqüilidade da família se esvai com a transferência súbita do pai-militar para uma zona longínqua, desolada e feia, a quem o autor chama de Haja-Vista (no lugar de Auschwitz), do mesmo jeito que troca o odioso Füher por Fúria. Na casa feia, faltam amigos e alegria. A saudade da avó, a quem o nazismo causa náuseas e indignação, lhe tortura. A presença do odioso tenente Kotler lhe apavora, embora, estranhamente, somente o militar traga sorriso aos lábios da mãe.

Sobra a Bruno solidão intangível e indizível, que só encontra eco na compreensão e nos gestos de carinho cuidadosamente emudecidos dos empregados judeus Maria e Pavel (médico a quem é imposto o encargo de cozinheiro). Como únicos vizinhos, estranhos homens, mulheres e crianças, sempre portando pijama e boné, ambos em cinza listrado. Vizinhos inacessíveis, separados por uma cerca. De sua janela, Bruno vislumbra silhuetas frágeis e esqueléticas.

Até que... num belo dia (na verdade, não há dias belos naquela região marcadamente longínqua, desolada e feia), um ponto se converte numa mancha pequena, que se converte num “borrão”, que se converte numa figura, que se converte num menino...

Bruno descobre o pequeno Shmuel. Incrível coincidência: dois meninos e uma mesma data de nascimento (15 de abril de 1934); dois meninos e destinos tão diversos, que eles não conseguem entender o que lhes separa tão profundamente. Desde o primeiro encontro, afora os dias chuvosos e impiedosos, as crianças conversam todos os dias. Nada compreendem. Daí, a idéia “mágica”: providenciar um pijama de listra para que Bruno conheça o outro lado... Eis traçado o destino fatal da criança. Em meio à multidão de pijamas listrados, é empurrado para a morte junto com o amigo Shmuel. Não há escapatória. Tarde demais, descobre o trabalho do pai e as atrocidades cometidas em nome da grandeza de uma pátria pura... Tarde demais, descobre a indignação da avó falecida..."

* Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto Interuniversitario de Iberoamérica.





24 de outubro de 2015

Singrando entre ideias e sonhos.

Por Wagner Medeiros Jr

Quando o príncipe herdeiro D. João decidiu pela tomada da Guiana Francesa, em 1808, em represália à invasão de Portugal por Napoleão, a preparação da expedição militar para a invasão de Caiena por terra concentrou-se no Grão-Pará. O efetivo das tropas de linha de frente contava então com 800 homens. A população do Grão-Pará, que incluía o atual Amazonas, somava quase 90 mil habitantes, enquanto a cidade de Belém não passava dos 25 mil. Pode-se mensurar, portanto, que o contingente das tropas egressas do Grão-Pará era bastante expressivo.
Integravam as fileiras luso-paraenses soldados das mais diversas etnias. Brancos, negros, índios, mestiços e tapuios, isto é, descendentes de índios que moravam em cabanas espalhadas pelo estuário do Amazonas em condições de grande pobreza. O baixo valor do soldo e os constantes atrasos dos pagamentos tornavam a carreira militar pouquíssimo atrativa. Isto obrigava as forças regulares a apelar para o recrutamento forçado, o que gerava grande terror à população civil. Os postos de comando invariavelmente destinavam-se aos oficiais de origem portuguesa.
Durante o período de ocupação da Guiana (1809-1817) intensificou-se a comunicação e a movimentação de tropas entre Caiena e o Grão-Pará. Belém também passou a ser um importante interposto das tropas que vinham do Ceará, de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Segundo a historiadora Magda Ricci “só em 1809 o rei mandava ir de Pernambuco ao Pará 800 homens do regimento de artilharia. Esses, de fato, se apresentaram em Belém com reforço constituído por recrutas cearenses”.
Outro fato marcante é que o Grão-Pará passou a interagir com mais efetividade com Rio do Janeiro, agora sede do reino e residência oficial da família real portuguesa. Antes todo intercâmbio paraense estava restrito à Lisboa.
É nesse movimento constante que foi transposta de Caiena uma grande coleção de especiarias e espécies frutíferas, que seriam introduzidas no Grão-Pará, Pernambuco e no atual Jardim Botânico no Rio de Janeiro. Entre os sacarídeos veio a “cana-caiana”, hoje muito difundida em nossa cultura. Mas, além das espécies botânicas vieram também as idéias do iluminismo. Ainda aflorava na Guiana a revolução escrava (1791-1804) que tornara independente o Haiti, depois da morte de mais de 24 mil brancos e 100 mil escravos. Muitos dos colonos franceses haviam buscado refúgio na Guiana.
Quando, por fim, as tropas luso-paraenses regressam da Guiana o constitucionalismo espraiava-se por toda Península Ibérica e D. João VI era forçado a retornar a Portugal. Tudo isto marcaria profundamente a vida social e política do Grão-Pará, depois de 1817. Se ante o magnífico esforço de guerra contribuíra para união luso-paraense, a concentração de poder e riqueza na mão da minoria portuguesa, agora associada a estrangeiros, sobretudo a ingleses, despertaram um sentimento de ódio, já que a maioria da população vivia em condições miseráveis.
Para os paraenses a solução dos problemas sócio-econômicos estava na criação de uma nova República. Só assim julgavam possível diminuir o poder político das classes dominantes. Os negros buscavam a abolição da escravatura, conforme nas colônias francesas, enquanto os índios e os mestiços lutavam por não ter que trabalharem tais como escravos, sem qualquer forma de direito. As idéias libertárias espraiavam-se por toda bacia amazônica, singrando por todas as partes.
Ao final de setembro de 1822, quando chegou a Belém as primeiras notícias de que o príncipe herdeiro D. Pedro havia decretado a independência do Brasil de Portugal, o sonho de liberdade do Grão-Pará ainda pulsava enormemente.  

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Preto no Branco por Wagner Medeiros Junior

17 de outubro de 2015

Livro: O Sonâmbulo Amador, de José Luiz Passos

Olá queridos!
Vou publicar aqui o post que fiz no meu blog Mar de variedade.

A escolha de outubro do Clube de Leitura Icaraí foi esse livro, que gostei bastante.

Sinopse: "O sonâmbulo amador é um romance original, cativante e por vezes irônico, sobre os feitos nem sempre memoráveis de um homem marcado pela perda. Apesar de suas crises e incertezas, ele tenta se corrigir e acertar como marido, como funcionário, como amigo e até mesmo como herói.

Jurandir é um pequeno funcionário da indústria têxtil pernambucana. Dias antes de se aposentar como chefe de segurança no trabalho numa tecelagem no interior de Pernambuco, empreende uma viagem ao Recife para resolver um processo trabalhista. A jornada prova-se um pesadelo; sem motivos aparentes, ele incendeia o carro da empresa e perde o controle de suas ações. Dois meses depois, é internado numa clínica psiquiátrica na cidade alta de Olinda e, a pedido de doutor Ênio, começa a escrever seus sonhos, que entrelaça com eventos do passado, relatos da juventude, suas opiniões e sua rotina de interno.

Ao perder o limite das suas convicções, esmagado por eventos trágicos, tenta aceitar o passado e conviver com a precariedade do presente com a ajuda de um enfermeiro e de uma interna. Através do que Jurandir vê e narra, através mesmo do que ele tenta esconder, o leitor vai tomando consciência das tragédias que cercam a vida desse homem aflito: o acidente na juventude que o deixou manco; suas reflexões sobre a fragilidade das amizades; a traição e a crise no casamento; o desenlace fatal de seu único filho.

Em quatro “cadernos”, José Luiz Passos mescla formas distintas de narrar — a vivência diária de Jurandir, seus sonhos, suas lembranças da juventude e do casamento, seus próprios textos sobre figuras do passado — para compor, gradualmente, um retrato comovente, que revela o personagem tanto no que ele diz quanto no que procura esconder."


Com esse livro, o autor venceu o 11 º prêmio literário Portugal Telecom. 
A narrativa se passa, na maior parte do tempo, em uma clínica psiquiátrica onde Jurandir ficou internado por vários meses. 
O livro contém alguns diálogos, mas é o próprio Jurandir o narrador.
A obra é interessante, pois se trata das memórias do Jurandir, antes da internação. Em algumas partes, ele narra seus sonhos, em outras, momentos que realmente aconteceram. 
O Jurandir passou por momentos bem difíceis ao longo da vida, e é interessante a sua descrição, que é de um interno, de uma pessoa abalada emocionalmente.
Ele acaba fazendo amizade com uma interna e com o enfermeiro Ramires. Com este, ele vive algumas aventuras, mesmo estando internado em uma clínica psiquiátrica. 
De uma forma geral, a leitura flui bem. O livro é muito bem escrito. 
Recomendo!

9 de outubro de 2015

Indicações para escolha do livro do mês






Em 1977, Mario Vargas Llosa começou a escrever um romance que seguia um caminho diferente - em vez de usar suas memórias para compor uma história de forte veia cômica, ele decidiu recontar a dramática Guerra de Canudos, impressionado pela leitura, alguns anos antes, de 'Os Sertões', de Euclides da Cunha. Em 1980, após exaustivas pesquisas em arquivos históricos e viagens pelo sertão da Bahia, ele terminava 'A guerra do fim do mundo'. Nele, o escritor peruano constrói uma saga que engloba tudo - honra e vingança, poder e paixão, fé e loucura. O autor dá uma nova dimensão à história de Antônio Conselheiro, em que personagens de carne e osso, alguns reais, outros imaginados, empreendem uma saga sem paralelos na história do país.


Esta obra mostra a história de um burocrata medíocre, Ivan Ilitch, um juiz respeitado que depois de conseguir uma oferta para ser juiz em uma outra cidade, compra um apartamento lá, para ele, sua mulher, sua filha e seu filho morarem. Ao ir para o apartamento, antes de todos, para decorá-lo, ele cai e se machuca na região do rim, dando início à uma doença.












3 de outubro de 2015

Clube do Conto - Pintor de paredes: novaes/



Durante todo o tempo ouvi daquela nobre senhora as mais veementes recomendações. A reforma em seu grandioso apartamento de frente para a floresta haveria de ficar perfeita. Meu trabalho era emassar as paredes e pintá-las, tudo com muito cuidado, sem deixar pingo no sinteco e com os recortes feitos na maior retidão. Ouvi daquela senhora todos os avisos, do quão importante seria respeitá-los, segui-los como se minhas mãos robóticas fossem programadas para aquela função precisa, matemática, infalível.

Juro que olhei para sua boca falante espantado com tamanha capacidade de predizer meu fracasso, pois seus repetidos alertas só me faziam acreditar que, de fato, sua reforma corria perigo em minhas mãos. Meu Deus, cheguei a culpar-me pela imprudência e canalhice profissional de aceitar aquele trabalho, pois com certeza meus quinze anos de experiência na profissão não eram suficientes para tamanha responsabilidade na casa de tão importante senhora.

Talvez ali as paredes não fossem de tijolos, nem de blocos de concreto, quem sabe tenham sido feitas de um material flexível, fofo, escorregadio, que me impedisse de aplicar a massa com perfeição. Ao invés de nivelar a parede, minhas tentativas com a espátula criariam ondas, cavidades, bolhas, protuberâncias inconvenientes que me projetariam, de imediato, ao inferno incandescente nas palavras daquela educada senhora.

Confesso que estava trêmulo nas mãos e frouxo nas pernas durante todo o emassilhar, o que fez daquela atividade quase um livre criar de desenhos brancos na parede velha, amarelada. Busquei as falhas na parede, que cobria com golpes de massa, espremida e espalhada como se estivesse em guerra contra aquela alvenaria, ocupando espaços, calando para sempre rachaduras, furos e antigas infiltrações inimigas.

Meu trato com a parede era um só: eu a venceria. Mas admito que meu diálogo com a massa e com a tinta seria muito mais difícil. Ao aplicar a massa, antes da lixa, aquelas ranhuras formavam desenhos, texturas, que me encantavam, me intrigavam e, sobretudo, me paralisavam. Como lixá-los? Como destruir aquelas obras de arte, aquela comunicação visual intensa com os visitantes? Será que aquela instruída senhora não permitiria que sobrevivessem? Não, óbvio que não. Parede é parede, não é obra de arte.

O fato é que sou um operário incomum. Meu pai sempre foi peão de obra e chegou a mestre. Já minha mãe, que era professora e militante comunista, via em meu velho seu operário idealizado, força motriz da sociedade, como dizia, futuro de um sonho igualitário. Aproximara-se dele através de sua militância nas construções, caminhando toda sem jeito entre entulhos, tijolos, tábuas e trabalhadores surpresos com sua presença naquele tumulto rude e masculino. Isto é o que os dois me contaram, mas desconfio de que minha mãe intelectual gostava mesmo era da pegada do meu pai, um cara firme, objetivo, sem refinamento, mas que carregava nas palavras e nas ações o carinho de um grande homem. De meu pai, herdei a facilidade para a ação, não há trabalho que não possa ser feito. O legado de minha mãe é essa coisa de enxergar mensagens humanas na massa espalhada pela parede, é imaginar que espátula, pincel e rolo podem pertencer ao mundo da arte, mesmo que sejam vendidos em lojas de tinta.

Esta senhora distinta que me contratou para regularizar suas paredes castigadas pelo tempo, nada mais esperava além da obviedade: superfícies lisas e cor uniforme. Obviamente, ela desconhece que os trabalhos manuais remontam aos artesãos de uma era anterior às fábricas, às indústrias, à divisão do trabalho, essas coisas que nos tornaram, a cada um, uma pequena parte da produção, onde o toque pessoal, o dom de cada um, foi para as cucuias. Ela desconhece que somos descendentes dos velhos artesãos e que nossas mãos, portanto, não são um dispositivo autômato. Afirmo sem medo de errar que todos nós, pintores de paredes, encaramos com esmero artístico cada empreitada. O mesmo posso dizer dos marceneiros e até no levantar paredes é preciso arte para juntar os tijolos com perfeição.

Mas esta senhora tão chique desconhece esses assuntos, não tem tempo para meus alongamentos filosóficos (enquanto meu pai gostava de malhar o corpo de vez em quando, minha mãe me ensinava a fazer alongamentos na mente). O que esta senhora requintada me pede é para lidar, unicamente, com as paredes. O mais engraçado é que ela quer ter paredes que não se notem. Tão regulares que passem despercebidas. Jamais se ouviu alguém dizer: “nossa, que linda parede!”, “veja, que parede tão bem emassada e pintada!” Nada disso. Se não houver quadros e a parede estiver exposta, o que se comenta é que está nua, ausente de arte. A parede pode ser perfeita, lisa, sem estrias, sem desconformidades, com o melhor colorido, mas sua nudez é mal vista. Vá entender!

Lixei todas as ranhuras e excessos de massa e encarei todo aquele pó branco que se espalhou pela sala como um subproduto cultural. Havia naquelas partículas poesia e fiquei com o corpo impregnado de versos. Minhas pegadas ficaram marcadas no chão empoeirado, como se fossem marcações de um balé único, dedicado à importância das paredes na vida humana. Estes limites criados pelo homem que, se ensina desde criança, devem ser resistentes a tudo, e sem os quais não teríamos casas, escritórios, fábricas, prisões. 

Alisadas as paredes, muni-me dos galões da tinta branca que iria descolorir o ambiente. A sala daquela impecável senhora seria alva como supõe-se a pureza, casta de emoções, neutra como se pretendem os hospitais e os hospícios. É de se imaginar que nestes locais as paredes são brancas numa tentativa desesperada de que elas não participem, de forma alguma, dos dramas contundentes que ali se desenrolam. Chega a impressionar como loucos, doentes e ricos precisam do branco em volta de si.

Após o primeiro banho de tinta branca fosca e de ter completado a segunda demão em três das quatro paredes, percebi que o último galão de tinta disponível não era fosco. Havia um brilho intenso naquele branco e decidi que aquilo só poderia ser um aviso, um convite, uma oportunidade para que eu desse meu toque pessoal. A parede faltante era a de fundo, que acolhia e apresentava a todos a mesa de jantar, a localização perfeita para uma obra de arte. Busquei na mochila um livro de Vinícius de Moraes, presenteado por minha mãe, e, com um pincel fino e a caligrafia que se assemelhava aos manuscritos portugueses de antanho, nos azulejos de séculos passados, reproduzi naquela parede os versos mais lindos que encontrei. A escrita com tinta brilhosa sobre o fundo fosco não era percebida à primeira vista, senão quando sobre ela batiam os raios de sol das seis horas da manhã ou, à noite, quando eram acesas as dicróicas que se ocultavam no gesso a fim de iluminar as obras de arte que ali se imaginava pendurar. Terminei a obra satisfeito e fui-me embora.

Soube mais tarde que a elegante senhora que me contratara, ao ser surpreendida pela artimanha criativa, tivera uma síncope, um faniquito daqueles, e ameaçara com todas as salivas caçar-me por toda a cidade, estrangular-me com as unhas, derrubar aquela parede infame e outras providências escalafobéticas. Fora impedida por sua filha, uma jovem cheia de decisão que estudava filosofia, contestava os valores burgueses da família e que, encantada, vira em meu trabalho o anúncio de um mundo novo, onde as capacidades individuais podem florescer sem as amarras de um capitalismo que precisa predeterminar todos os papéis sociais.

Hoje aquela agradável senhora é minha sogra. Permaneço estarrecido com sua capacidade de predizer o fracasso do nosso casamento. Sua filha ama esse meu jeito de tratar o trabalho como poesia e espera que, seguindo a evolução da espécie, nossos filhos cuidem da poesia como trabalho. Isto é o que ela diz. Mas eu acho mesmo é que ela gosta da minha pegada.