O livro, Elogio da Madrasta, de Mário Vargas Llosa, nos apresenta uma novela bem medida: um pouco de sofisticação, com incursões pelo universo mitológico e pelas artes, mais uma pitada de humor e ironia. Junte-se a isso o controverso erotismo contido na trama. Há quem afirme que “o livro foi escrito sob encomenda para um amigo cineasta que coordenava uma coleção de narrativas eróticas”. Mas não importa o motivo que tenha levado Mário Vargas Llosa a escrever o livro, a sorte foi toda nossa; afinal, o Elogio da Madrasta é uma jóia bem lapidada pelo peruano.
Dom Rigoberto, dona Lucrécia e Afonso, ou Fonchito, o filho de Dom Rigoberto, são os três personagens significantes da trama de Vargas Llosa. Antes do desenrolar fatídico do triângulo amoroso: pai, filho e madrasta, o autor faz uso de um recurso que lembra a obra machadiana. Em Dom Casmurro, no capítulo 10, o narrador — no contexto de uma ópera—, diz metaforicamente:
“Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor”.
Era a previsão do romance de Capitu com Bentinho, depois, o suposto triângulo amoroso envolvendo o amigo Escobar, e adiante o nascimento do filho, que se tornaria uma angustiante dúvida para ele, que às voltas com a idéia da infidelidade de Capitu, chegaria a ver no menino os traços de Escobar. Para Dom Rigoberto as coisas não se tornarão tão dramáticas, mas prevê algo em relação a um triângulo amoroso:
“Porque a felicidade era temporária, individual, excepcionalmente dual, raríssima vez tripartida”.
É a previsão do triângulo amoroso entre Dom Rigoberto, Lucrecia e Afonso.
ALGUMAS IMPRESSÕES:
Dona Lucrecia, a adorável esposa de Dom Rigoberto, é lindamente bem representada nos recortes “histórico-mitológicos”, que a meu ver são recursos bem utilizados pelo autor para representar o essencial erótico da obra. Numa hora é a esposa e objeto de “Voyeur” de Candaules, rei da Lídia, e do seu guarda e ministro, Giges.
“Enquanto a acariciava, me aparecia na mente a cara barbada de Giges e a idéia de que ele estava nos vendo me efervescia ainda mais, polvilhando meu prazer com um tempero agridoce e picante até então ignorado por mim. E ela? Adivinhava alguma coisa? Sabia de algo? [...] quem sabe pressentia que, nessa noite, quem gozava naquela habitação avermelhada pelo fogo e pelo desejo não éramos dois, e sim três.”
Noutra, é Diana, a deusa romana, que logo após o banho, bem que poderia eternizar, com Justiniana, um poema de Safo, a ilustre poetisa de Lesbos.
“À minha direita, inclinada, olhando o meu pé, está Justiniana, minha favorita. Acabamos de tomar banho e vamos fazer amor.”
Naqueloutra, é também Vênus, a quem Dom Rigoberto gosta que o entreguem assim:
“...ardente e ávida, com todas as prevenções morais e religiosas suspensas, e sua mente e seu corpo sobrecarregados de apetites.”
Nesses episódios, o que poderia despertar os protestos feministas seria a representação bem humorada de dona Lucrecia como a mulher de Candaules, rei da Lídia. O seu gosto pela garupa da esposa, a posição submissa da mulher cavalgada como uma égua: Que maldade!
“Não traseiro, nem bunda, nem nádegas nem rabo, e sim garupa. Porque quando eu a cavalgo, a sensação que me arrebata é essa: a de estar sobre uma égua musculosa e aveludada, puro nervo e docilidade.”
É claro que tudo se desenrola como representação da felicidade erótica, que é, certamente, o que Dom Rigoberto e dona Lucrecia experimentam com maior intensidade na narrativa principal. Para Dom Rigoberto, Lucrecia era a sua fonte de felicidade, assim como as suas abluções intermináveis e obsessivas. Para Dom Rigoberto, a felicidade passa pelo corpo, o de Lucrecia e o dele, por isso a obsessão pelas abluções, a purificação do corpo como num ritual religioso.
“Ouvir a voz dela, confirmar a sua proximidade e a sua existência, encheu-o de satisfação.”A felicidade existe”, repetiu, como todas as noites. Sim, desde que fosse procurado onde era possível, no corpo próprio e no da amada, por exemplo; a sós e no banheiro; durante horas ou minutos numa cama compartilhada com o ser tão desejado.”
“Espaço mágico, território feminino, bosque dos sentidos”, procurou metáforas para o pequeno país que Lucrecia habitava. “Meu reino é uma cama”, decretou. “O banheiro era seu templo, a pia, o altar dos sacrifícios; ele era o sumo sacerdote e estava oficiando a missa que toda noite o purificava e o redimia da vida”.
Há também, é claro, a possibilidade de as abluções de Dom Rigoberto representarem um recurso satírico, destinado a alimentar, como não poderia deixar de ser, suas sempre polêmicas incursões pelo universo político.
“Quando jovem tinha sido militante entusiasta da Ação Católica e sonhado mudar o mundo. Logo entendeu que, como todos os ideais coletivos, aquele era um sonho impossível, condenado ao fracasso. Seu espírito prático o induziu a não perder tempo travando batalhas que mais cedo ou mais tarde ia perder. Conjecturou então que o ideal de perfeição talvez fosse possível para o indivíduo isolado, restrito a uma esfera limitada no espaço (o asseio ou a higienização corporal, por exemplo, ou a prática erótica) e no tempo (as abluções e borrifamentos noturnos de antes de dormir).”
Pelo contexto histórico da obra, talvez tenha sido um recado aos extratos progressistas da Igreja Católica, então organizados sob a bandeira da Teologia da Libertação, para muitos, filha da velha Ação Católica, originalmente conservadora, mas convertida aos ideais socialistas. Vejamos esta outra frase:
“Meu Corpo é aquele impossível, a sociedade igualitária”.
O autor, num tom irônico, sugere através do personagem de Dom Rigoberto, que a conquista da felicidade, sendo individual, passa pelo culto ao corpo (as abluções também têm sentido religioso, mas não interessam a Dom Rigoberto), a personalidade e a prática erótica, como já explicitado pelo próprio autor. Se a felicidade de Dom Rigoberto depende de tais elementos, a profanação do corpo de Lucrecia, sua hóstia consagrada e depois ofendida pela violação da pertença, quando lhe é revelado que Lucrécia teria tido um “orgasmo gostosíssimo” (sem que tenha sido com ele, é claro), significa uma ruptura num dos elementos, o corpo de Lucrecia. Com isso, desmorona todo o microcosmo da felicidade de Dom Rigoberto.
Já o “caso Fonchito” é enigmático. Creio que o menino dissimula bem seu verdadeiro objetivo: livrar-se da madrasta. Vargas Llosa genialmente constrói uma figura ingênua, frágil, dócil, mas que demonstra astúcia ao longo da trama. É provável que a história do suicídio tenha sido premeditada pelo menino, como forma de “chantagear” a madrasta. Toda a devoção de Fonchito, toda ingenuidade, me parece parte de um plano macabro. Que outro intento teria o menino ao mostrar uma redação reveladora ao pai, e que viria a causar a separação dos dois, de Dom Rigoberto e Lucrecia? Será que o menino tinha toda aquela inocência em relação ao sexo a ponto de nem saber o que era um orgasmo? O desfecho do livro parece revelador, pois Fonchito não demonstra nenhum remorso.
(Contribuição de Antonio Rodrigues)
A reunião ocorreu em 31/07/2009.