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18 de março de 2020

Livro do Desassossego: Fernando Pessoa



"Onde está Deus, mesmo que não exista?"


"Ler é sonhar pela mão de outrem."


Um dos melhores livros lido no clube de leitura em 2012

"As viagens são os viajantes"


Algumas conchas

  Sonhei, sim, também, que era a página de um livro ou que a página vivia dentro de mim. Uma menina de tranças caminhava para escola e o caminho era longo, arejado. Ela levava uma pasta. E ia saltitante. Ansiosa por saberes. Comeria aquela página, se pudesse. Seu colorido me alimentava em algo. Ninguém sabia. Só Pessoa, vejo agora.

   Outro dia, na infância, amei aquela tampa de lata, uma lata cheia de riscos e bordados de bebê e eles eram tudo que eu queria. Roubei a lata, que, minha pressa e pouca  altura, deixara cair da cômoda, fazendo enorme barulho  A dona espantou-se com a correria após a quebra do silêncio.

  Eu ficara olhando o bebê enquanto ela fazia uma mamadeira. Meti a lata sob a roupa e desci escadas em desabalada correria. Com o coração disparado, coloquei a lata embaixo de minha cama. Era a minha joia, que mal podia admirar, mas estava ali, e vez em quando,  uma  olhada furtiva. Um dia, morta de vergonha, tive de a lata entregar.

  Nunca mais eu seria a mesma sonhadora. Só agora poderei de novo sonhar, pois Fernando –Bernardo  ama os supérfluos, as conchas!


Elo , após  leitura do Livro do Desassossego.


Clube de Leitura Icaraí debate livro de Fernando Pessoa

O “Livro do desassossego” (Editora Companhia de Bolso), de Fernando Pessoa, é o próximo escolhido para o debate do Clube da Leitura Icaraí no dia 13 abril, das 19h às 21h. O encontro será na Livraria Icaraí, que fica na Reitoria da UFF, Rua Miguel de Frias, 9, Icaraí, Niterói.

Resultado da reunião de textos avulsos de Fernando Pessoa encontrados após sua morte, o “Livro do desassossego” assemelha-se a um diário com as vivências e devaneios do autor, disfarçado com o heterônimo Bernardo Soares, um ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa.

Na obra, Fernando Pessoa se aproxima como nunca do gênero romance. Os temas, dignos de um diário íntimo, são permeados por um tom de intimidade revelador e, ao mesmo tempo, instigante que deixa no ar aspectos da personalidade do autor. Nessa prosa metódica, Pessoa cria um mundo e nele faz fluir todas as suas perspectivas poéticas.  


* * * *

De fato, esse é um livro que nunca se termina de ler.

É como na faixa de Moebius, caminha-se sobre ele, sempre em frente, para voltar ao ponto original, e recomecar tudo. [Sol]



A falta de um encadeamento narrativo claro ou de uma noção de tempo definida torna o livro singular. Não há um início, meio e fim, ou mesmo uma colocação temporal que condicione as impressões do leitor, que logo se torna responsável pelo encadeamento da leitura. Esta liberdade inédita confere à obra um fulgor apenas ao alcance dos grandes mestres da literatura.


Quero me ver como você me vê
Desencantar a minha fantasia
Ser mais que alguém a minha revelia
Ser menos frágil do que você lê.

Quero dançar a minha melodia
Ser-me no espelho d'água que me crê;
Mesmo que eu mesma não saiba porque
Quero viver bem mais que mais um dia.

Quero ou não quero? É dúvida e porque
Da vida inteira e do que eu não sabia,
Mas cega e livre sou como um morcego.

Já não sou mais aquele que descrê
Se nem me entrego à melancolia
Mas nado o mar do meu desassossego.

(I, em 11/04/2012)


POEMA DO DESASSOSSEGO


Quanto desassossego no mundo
por conta do outro não me aceitar
como sou ou como penso que sou,
múltiplo como as cores,
infinito como os números,
impreciso como as certezas.

Quanto desassossego no mundo
por eu não me aceitar
como sou ou como penso que sou
e querer sempre ser o que não sou
ou mesmo o que já fui
quando não sabia que era.

Quanto desassossego no mundo
por conta de eu não aceitar o outro
em suas perfeitas imperfeições
de artista, aprendiz e fazedor,
forjador de si, realizador do outro,
sonhador de todas as utopias
em sua condição de humano.

Quanto desassossego no mundo
por conta do outro não aceitar o outro
como não aceita a mim,
que tampouco aceito o outro
do outro que há em mim.

É nostalgia, é tristeza, é amargor
de beber dessa água que nunca
mata a sede que tenho
de aprovação dentro de mim.

Sou estranho, frágil sim,
me escondo atrás das palavras,
as mesmas que uso para expressar-me,
oh ironia, mostrar para esconder,
viver para sofrer...

Quero jogar fora a vergonha,
da humilhação não quero saber,
posso ser qualquer Maria ou qualquer José
superar minha própria insensatez,
da dicotomia do mundo
não ser mais vítima nem algoz.

Quero reinventar a máquina fotográfica
só para revelar-me por inteiro,
um slide da minha alma de cancioneiro
sempre em busca das ilusões perdidas.

Guardar minhas justas fotos,
sem cadeados, à vista do mundo
que não conhece o tesouro
de paz que hoje guardo fora de mim.

Não tenho forma, sigo sem molde
e é debalde que me tentam enquadrar,
vou como a água, penetrando em lugares...
onde nada mais cabia, caibo eu

mas também não tenho rumo,
não me aprumo nem me vejo
nos espelhos que criamos,
há muita insatisfação...
Assim, sou só reflexo, desconexo,
do que seria o existir.

Rita, 10/04/12




Desassossego


Entro...O silêncio me angustia.

Saio...a agitação me atordoa.

Entro... lembranças adormecidas escondem-se na poeira.

Saio...lá fora o presente intimida.

Entro, saio, saio, entro...

Os espaços são enormes e definem meus vazios.

No corredor, ouço vozes, muitos passos,

muitos risos... Espero... Ninguém vem.

Nas paredes descascadas, ecos dos sons de outrora.

Prisioneiros das molduras, de viés, olhos me seguem.

“Vovô”, o velho relógio que acalantava meu sono

com seu lento tic-tac, tornou-se, agora, implacável!

Fazendo correr o tempo já não me deixa dormir.

Esquecidos sobre a mesa,

um píres, um punhado de cinza,

um toco de vela, o pavio retorcido,

e as contas de um rosário,

retornam aos meus  ouvidos a  reza, há muito esquecida,

rezada por minha mãe nas noites de temporal:

“Santa Bábara, São Jerônimo.

Santa Bárbara se vestiu,  Santa Bárbara se calçou...”

Querendo ficar,  eu parto.

Querendo partir, permaneço.

No tormento desses contrastes, anseio por teu abraço.

Pelo calor de  teu corpo, de leve, roçando o meu.

Por tuas mãos como barcos navegando meus cabelos,

Trazendo de volta o sossego.

Redescobrirei quem sou?


        (Elenir  M.  Teixeira)




3 comentários:

  1. Elenir, por suas mãos naveguei também na minha infância, minha avó, a queima de ervas quando chovia...Amei seu poema, sua imagem e mãos nevegando como barcos. O minha linda, como é bom navegar em suas palavras-relembranças.
    Bjs e parabéns!
    Elô

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  2. Eloísa e Elenir, com que jóias vocês nos presentearam. Parabéns a ambas, e um abraço carinhoso.

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  3. É claro que gostei de rever esse momento...Um momento em que Pessoa foi tão forte (como sempre é) e remexeu minhas memorias e expressão.Um rio, ou riacho, jorrou! Foi bom rever as poesias de membros de nosso Clube e ainda ler esse comentário carinhoso de Antônio. Antônio, você também é uma concha que guardo num lugar especial, uma concha cujo continente é uma brilhante pérola.
    Bjs.
    Elô, Helena, Helentry

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