Fundado em 28 de Setembro de 1998

15 de junho de 2021

Amarração: Edmar Monteiro Filho

 


Bateu palmas. Insistiu na demora. A mulher apareceu no corredor lateral da casa, enxugando as mãos no avental. Era consulta? Que entrasse, então. O moço não tivesse medo, que o vira-lata era manso. Nos fundos. Chão batido. Varal empinado com bambu, lotado de roupa branca. O tanque cheio. Fogão, geladeira azul, a pia, despensa, tudo no terraço de piso vermelhão. Entraram no cômodo atulhado, cortina de fita separando outro, decerto quarto. Ali, de tudo. A mesa desocupada sem cuidado. Não reparasse a bagunça, quem tem criança em casa. Que fosse avó, que era velha para ter criança sua. Ou então judiada. Ela tirou o avental. Ele que se acomodasse que ela ia vestir a saia. Voltou de pronto, em branco. Sentou-se. Perguntou há quanto tempo ele roía unha. Ele perguntou como a dona sabia. Era só olhar, ela disse. Ele levou a mão à boca, para acertar um cantinho. Ela quis saber quem tinha dado indicação. Uma colega da empresa, ele era vendedor. Ela dispôs as figurinhas de santo – seis – no canto da mesa. O baralho diante dela, o copo com água ao centro, com a pirâmide de acrílico. O terço ficou na mão, enrolado. Ele derramou a fala ensaiada, com a sinceridade de aflito. Ela ouviu, perguntou o que ele fazia, onde morava, se tinha carro. Era alugada, a casa? As mãos finas de vendedor apertadas na aspereza. Reza incompreensível. O baralho mexido com habilidade. Ele cortasse. Uma carta virada: o bobo. Mandou que ele apertasse a pirâmide na mão direita. Rezou um pai-nosso, uma ave-maria. Chorou um pouco. Ele era inocente, havia confiado demais em quem não devia. Verdade. Era passivo, não tomava atitude. Às vezes. Preferível arranjasse outro amor. Mas queria aquele mesmo? Era nervoso demais, sofria com culpa. Verdade. Sentia fraqueza. Nem uma fraqueza assim, por dentro, quando tinha que decidir? Isso sim. Diagnosticou: trabalho feito, poderoso, para causar dor e atrasar a vida. Quem? Ele voltasse dali dois dias para desfazer, dar jeito em tudo. Trazia o amor de volta, escrava. Não queria dinheiro, que consertar maldade assim e cobrar, Deus castigava. Ele trouxesse documento de tudo de seu, para fazer reza e proteção. Ele seguiu aflito, o sofrimento de espantar o sono não deu trégua. Voltou no dia marcado. A mulher chamou para dentro. Sentaram-se. Dessa vez, a mesa com toalha plástica branca, crucifixo, copo d’água, um santo só, buquê de ervas. Rezar outra vez. Concentração, ela pediu. Primeiro no amor, depois no patrão, um vizinho com alguma desavença, parente próximo. A mulher estremecendo toda, virando os olhos. Pediu os documentos: o carro, a casa. Mais algum bem que quisesse proteger? Tinha uma folha de cheque? Deixasse tudo lá. Confiava? Voltou em dois dias, ansioso. Bateu palmas até arderem as mãos. Abriu o portão, veio entrando. Apareceu um velho na porta: tomasse cuidado com o vira-lata, malvado feito um demônio.


Texto integrante do livro "Clube de Leitura Icaraí - Modo de Fazer"


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