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14 de julho de 2021

Antefinal Noturno & Brevíssima reflexão sb um livro imenso: Edmar Monteiro Fo.

 

Antefinal Noturno



BREVÍSSSIMA REFLEXÃO SOBRE UM LIVRO IMENSO

Edmar Monteiro Filho

 

No conto intitulado “Pierre Menard, Autor do Quixote”, inserido no livro “Ficções”, Jorge Luis Borges imagina um escritor que se aprofunda no estudo de “Dom Quixote” até ser capaz de reescrever integralmente a obra prima de Miguel de Cervantes. A história, salpicada de elementos do fantástico, gênero de preferência do mestre argentino, traz interessantes discussões acerca do tema da autoria, propondo que Pierre Menard, ao reproduzir “Dom Quixote” palavra por palavra, em uma época posterior à escrita do Quixote de Cervantes, cria uma obra distinta da original, tendo em vista as diferentes influências utilizadas por seu “novo” autor.

Em meu último livro, “Atlas do Impossível”, imaginei processo semelhante, buscando levar adiante o jogo de espelhos criado por Borges. Um personagem, de nome Barros, secretário do escritor, decide reescrever o conto “Pierre Menard”, também palavra por palavra. Se a inspiração provocada pela fascinante história escrita por Borges suscita tais aventuras literárias, é preciso reconhecer que, neste caso, o ponto de partida é a monumental obra de Cervantes.

Quando examinamos uma obra artística que deixou marcas substanciais em nossa cultura, estamos pensando não apenas nessa obra, mas em tudo aquilo que já se produziu a partir dela. Ao analisarmos o romance “Dom Quixote”, é impossível ignorar a imagem criada por Pablo Picasso, a ideia dos moinhos de vento como símbolos da ilusão, ou mesmo o adjetivo quixotesco, apropriado a todo aquele que é excessivamente sonhador ou atrapalhado. Impossível estimar ainda a quantidade de estudos existentes acerca do livro. Assim, desobrigado de qualquer tentativa de abrangência ou originalidade, concentro esta breve conversa justamente na qualidade que eleva Dom Quixote a um patamar de distinção na história da literatura ocidental: a de obra fundadora do gênero romance.

A primeira parte das aventuras do "Cavaleiro da triste figura" foi publicada em 1605 e se tornou tão popular, que obrigou seu autor a escrever uma sequência – que veio a público em 1615 –, a fim de fazer frente a inúmeros "falsos Quixotes" que passaram a circular. Numa leitura inicial, é possível identificar que o livro satiriza a novela de cavalaria, gênero que já fora bastante popular na Espanha e que começava a experimentar seu declínio. Cervantes apresenta o personagem Alonso Quijano, fidalgo que teria perdido a razão em virtude da leitura continuada de tais livros e que acaba imaginando a si próprio como um cavaleiro andante, vestindo-se com uma improvisada armadura e montando um arremedo de corcel – Rocinante – para partir em busca de aventuras, acompanhado pelo simplório Sancho Pança, à guisa de escudeiro.

O livro se funda numa série de contrastes que traduzem sua vocação de obra bifronte: olha para a tradição, representada pela literatura medieval e pela fantasia, ao mesmo tempo em que vislumbra os horizontes da prosa moderna, através do romance, gênero burguês, por excelência. Assim, os protagonistas Dom Quixote e Sancho Pança são figuras opostas: o cavaleiro louco, em busca da glória proporcionada pelos grande feitos, e o escudeiro ignorante, afeito à realidade e ocupado com a satisfação de necessidades como o alimento, o repouso, o sustento material. A alternância entre momentos de serenidade e desatino que constitui a figura de Dom Quixote permite um constante embate entre a imaginação e a concretude, entre a mulher idealizada pelos paradigmas do amor cortês e a camponesa de formas e modos grosseiros, entre os nobres ideais e a falsidade.  

“Dom Quixote” também dialoga com distintas formas e gêneros literários, como a sátira e a narrativa pastoril. O burlesco aparece já no prólogo, por meio de poemas supostamente escritos por conhecidos protagonistas dos livros de cavalaria e dedicados aos principais personagens do livro. Assim, por exemplo, o famoso cavaleiro Amadis de Gaula homenageia Dom Quixote, o escudeiro deste louva Sancho Pança, a formosa donzela D. Oriana escreve para Dulcineia, a amada do herói, havendo, inclusive, um diálogo entre Babieca, a montaria do cavaleiro El Cid, e Rocinante. À medida que a narrativa avança, vão sendo intercalados diversos episódios paralelos, bem como poemas e canções, todos ligados de forma harmônica ao eixo principal, o que confere ao livro a característica de um discurso múltiplo, próprio de um gênero em gestação.

Ao longo de todo o romance, Dom Quixote parece entabular uma difícil negociação, agarrando-se como pode aos restos de fantasia que se sustentam precariamente contra os avanços implacáveis do real. Quando, ao final do livro, o herói fecha os olhos, assistimos não ao encerramento de um texto literário, mas ao fim de uma era. 



2 comentários:

  1. Dom Quixote é um livro maravilhoso, divertido, inteligente, questionador. A questão do real e do fantástico permeia nossa vida em tantos momentos... Acreditamos no que queremos que seja verdade (real) e não necessariamente no que é. Muito legal as ligações que Edmar fez, como por exemplo os moinhos de vento serem símbolo de ilusão, o que torna a obra pra lá de especial.

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