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9 de junho de 2021

Felicidade suprema: Rita Magnago


    Luana pulou do sofá e rodopiou de alegria, gritando que a felicidade chegou para o mundo. Tudo isso porque leu no jornal que descobriram o Eclante, substância capaz de anular o poder engordativo dos açúcares e derivados e ainda com consumo liberado para diabéticos.

    — Que venha o leite condensado, o chocolate, os refris normais, as tortas, bolos, doces, sorvetes... meu Deus, que maravilha, comer sem culpa! Vamos comemorar.

    E colocou a música alta, cantarolando sozinha, girando até ficar tonta e parar às gargalhadas. Depois abriu o freezer, tirou um pote de sorvetes de passas ao rum e sentou-se no sofá, deliciando a iguaria com leite condensado cozido e dois biscoitos tipo wafer, de chocolate. Puxou o recamier, pegou o controle remoto e não quis nem que Deus ajudasse. Comeu e repetiu, chegando a fechar os olhos de prazer. Neste momento deslumbrante, chegou a mãe e foi logo pagando geral.

    — Mas não é possível, já está você aí pasmada comendo que nem uma vaca? Não chega dessa barriga, celulite por tudo que é poro? Você vai ficar ainda mais gorda, garota. É isso que quer? Como vai arrumar um marido assim?

    — Pode jogar seu veneno, que hoje nem te ligo. Ô desinformada, pega aí o jornal e lê. De vez em quando é bom exercitar outra coisa que não seja a língua, esbravejou no mesmo tom.

    A mãe pegou o jornal e foi folheando. Inflação deve ficar acima da expectativa... Governo adia reforma fiscal... Cinco mortos e 13 feridos em acidente na Dutra. Não podia ser nada daquilo. Até que no pé de página ela viu: Médico brasileiro descobre substância que inibe poder engordativo do açúcar e derivado. E ainda o sub-título: Revelação promete revolução na indústria e na estética. Devorou a matéria com a mesma voracidade que a filha engolia as colheradas de sorvete ao doce de leite. Ao final, duvidou.

    — Isso é o que eles dizem hoje. Mas aqui fala que ainda faltam meses para o produto ser comercializado e nem fala o preço nem nada. Daqui a pouco começam a surgir as contraindicações, efeitos colaterais e o produto pode ser proibido antes mesmo de ir para a farmácia.

    — Que farmácia, ô agourenta. Lê direito. Vai vender nos supermercados. Não é remédio, é uma enzima naturalmente produzida pelo organismo, mas não sintetizada na maioria dos obesos. É tipo uma pílula antigordura, sacou?

    — Sei, sei, vai sonhando. Mas olha, mesmo que seja, você ainda não está tomando nada, a não ser essa glicose na veia aí. Como é que é isso? Nem testou nem nada, já vai engordando mais?

    — É, isso é só pra comemorar. A pílula tem efeito retroativo, não leu não, mamãezinha? Quando eu começar a tomar, tudo que eu ingeri de gordura nos últimos três meses vai sair na urina.

    — Haja xixi, minha filha, haja xixi.

    E Luana seguiu feliz feito pinto no lixo, lambendo os dedos que recolhiam o pouco que restou no pote. Ligou para as amigas e contou tudo sobre o Eclante, tim-tim por tim-tim. Já estava na internet e tudo. Marcaram um jantar só de sobremesas, na verdade um luau no sábado seguinte, que era noite de lua cheia, sem previsão de chuva. Cada uma levaria um prato mais gostoso do que o outro. Adeus tirania do regime!

    Suzana, a colega chiquérrima, levaria profiteroles, receita da mãe dela que não fazia há anos. A Marilza, um bolo de sorvete que era uma loucura — a turma já conhecia porque no aniversário dela, foi o melhor da festa. A Marcela, sua melhor amiga, diabética, gordinha pra elogiar, tão radiante estava que confirmou duas sobremesas: quindim e cuscuz, afinal ela era baiana, não podia deixar por menos. Tinha uma recém chegada magrela que não se entusiasmou muito, disse que levaria uns brigadeiros porque era só o que ela sabia fazer. Ah sim, e a Luana. Ela preparava um bolo de cenoura com cobertura de chocolate de babar, mas não queria isso não, a ocasião merecia algo especial. Repassou todas as guloseimas maravilhosas que já havia provado: torta de limão, cocada mole, doces em calda com chantily, pudim surpresa, mousses de todos os tipos, nada parecia bom o bastante. Por fim optou pelo pavê de bombom porque chocolate era sua paixão. Cardápio resolvido, foram às compras.

    A mãe continuava com a mesma ladainha. Segundo ela, a notícia deveria ser falsa, só podia, onde se viu uma coisa dessas?

    — Se for verdade vai dar câncer, sentenciou, mas Luana nem aí, era puro contentamento. E assim ficou até o dia do luau.

    Armaram uma barraca branca bonita, coberta com fotos coloridas de sobremesas enlouquecedoras coladas sobre o tecido, uma técnica de retalhos que a Marilza aprendera em uma viagem ao exterior. Ao sabor do vento, a barraca destacava ora uma, ora outra sobremesa, um verdadeiro banquete aos olhos e ao estômago.

    Levaram o violão e começaram a dedilhar músicas que falavam de doces, para entrar no clima da noite. A primeira canção foi do Chico, Com Açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa... palmas e mais palmas, e a mulherada ria que só.

    Assim começaram o banquete. Uma música, uma sobremesa. A segunda foi Doce mel, que virou febre com a Xuxa: Doce, doce, doce / A vida é um doce, Vida é mel / Que escorre da boca / Feito um doce pedaço do céu. Relaxaram e liberaram a criança dentro delas.

    Em seguida foi a vez da Marisa Monte em Não é proibido: Jujuba, bananada, pipoca / Cocada, queijadinha, sorvete / Chiclete, sundae de chocolate / Paçoca, mariola, quindim / Frumelo, doce de abóbora com coco, bala. E acenderam um, porque a lua pedia. O clima esquentou.

    A próxima música foi Beijinho Doce, de José Augusto: Que beijinho doce / Que ele tem / Depois que eu beijei ele / Nunca mais amei ninguém. A mulherada já estava ligadaça. E uma começou a dar selinho na outra, para acompanhar a letra.

    A canção seguinte foi novamente do Chico, Sem Açúcar, imortalizada na voz da Betânia: Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de brisa / Dia útil ele me bate, dia santo ele me alisa / Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo / Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo. As meninas se animaram pra valer, e duas a duas começaram a alisar-se. Despiram-se, lamberam-se, apertaram-se, esfregaram-se em movimentos sincopados. Lânguidas, sussurraram indecências, confundiram membros, tornaram-se uma e outra ao mesmo tempo. Um gozo conjunto ecoou na Prainha às 22 horas. Exauridas, suadas, felizes e satisfeitas receberam o aplauso de uma multidão que a tudo assistia, perplexa e radiante.

    Passaram a noite no xadrez, enquadradas em ato obsceno, sem saber que às 22:20h o vídeo libertino já estava no youtube. Como explicar que tudo isso foi por causa do Eclante, elas ainda não sabiam.


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