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8 de agosto de 2021

Levantado do chão: Edmar Monteiro Filho




            O escritor tcheco Milan Kundera, em "A arte do romance", cita a obra "Os sonâmbulos", de Hermann Broch, como uma das reflexões mais importantes acerca dos eventos que marcaram os primórdios do século XX na Europa. Broch apresenta a Primeira Guerra Mundial como o ápice de um processo de degradação dos pilares que sustentavam a civilização ocidental desde o início da Idade Moderna. O espetáculo da mortandade em escala inimaginável colocou em cheque valores morais, éticos, religiosos. Kundera mostra que, a partir do tema do homem confrontado com a derrocada de uma era, Broch aponta três alternativas. Na primeira delas, diante da ruína inevitável dos valores fundamentais, restaria ao homem apegar-se fanaticamente aos fragmentos desse mundo em decadência. Uma segunda possibilidade seria a busca irracional por novos valores. Assim, o homem se entregaria a filosofias com as mais disparatadas propostas, comportamentos extremos, cultos a personalidades aberrantes, refugiando-se sob o manto da ilusão para fugir ao desamparo. Por fim, numa terceira hipótese, tudo seria permitido diante do vazio; cada um criaria suas próprias leis, mergulhando o mundo num caos de egoísmo e violência.

            Pensadores das mais diversas áreas refletiram acerca desse momento da história humana, quando uma espécie de decepção generalizada se abateu sobre o mundo, fruto das promessas não cumpridas pelo sistema capitalista e pela tecnologia, incapazes de promover o advento de um mundo melhor e mais justo. Dentre esses pensadores, Marx teve papel fundamental, na medida em que suas ideias inspiraram as alternativas mais importantes ao sistema econômico e social em que vivemos, nitidamente baseado na desigualdade e na exploração. Na literatura, não foram poucos os autores cuja escrita sofreram forte influência do pensamento marxista, dentre eles o português José Saramago.

            "Levantado do chão", de 1980, é o terceiro dentre os numerosos romance publicados pelo escritor, e aquele em que mais se evidencia sua opção pelos oprimidos dentro das relações de poder. A ação transcorre na região do Alentejo, num período que vai do início do século XX até meados da década de 1970. Nesse cenário, um narrador onisciente – com o qual é fácil identificar o próprio autor – faz o papel de mestre de cerimônias, convidando o leitor a acompanhar a história de gerações de camponeses pobres da família Mau-Tempo. Sobre o pano de fundo das transformações políticas que levam Portugal da monarquia à república e depois à ditadura, transcorre a existência dos trabalhadores, marcada pela opressão e pela miséria. Se os regimes políticos alteram as formas de acesso ao poder, deixam intocadas as relações sociais no campo. Patrões, autoridades e Igreja mantêm seus privilégios, enquanto os camponeses lutam pela sobrevivência num cenário imutável de verdadeira escravidão.

            Mas esse narrador que opina, toma partido, compondo sua narrativa com a marca da oralidade, vai dando voz aos personagens, num movimento que tende a apresentar uma tomada de consciência. Na primeira geração, os Mau-Tempo pouco dizem por si mesmos. Mas essa mediação vai sendo progressivamente substituída, a atitude submissa e conformada dando lugar ao anseio por mudanças. E se o narrador segue tutelando esses personagens, vai também se "ficcionalizando", declarando suas opções narrativas, misturando-se, de certa forma, a essa massa de descontentes que começa a se erguer e desafiar sua condição. Vão rareando as repetidas comparações dos trabalhadores com animais; multiplicam-se os trechos em que a dura realidade vai sendo retratada com emocionantes toques de poesia, à medida em que aflora a consciência crítica dos camponeses, conduzindo-os da passividade à ação.

            O anticlericalismo de Saramago faz-se presente em diversos momentos. Não por acaso, será Padre Agamedes, guia espiritual da comunidade explorada e aliado dos poderosos, a apontar o declínio da "Santíssima Trindade" do poder instituído: o latifúndio abandonado em prol da urbanização que se anuncia, o Estado conservador ameaçado pelo socialismo e a Igreja perdendo fiéis. Assim, o narrador/Saramago mantém a esperança na redenção de sua gente. Se Hermann Broch enxerga o fanatismo, a ilusão ou o desencanto como opções para o mundo, Saramago acredita numa salvação por obra da conscientização e organização das massas oprimidas. É assim que o escritor acaba fazendo de "Levantados do chão" uma grande profissão de fé.

SARAMAGO, José. Levantado do Chão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2ª ed., 1989, 366p.



2 comentários:

  1. Edmar, muito obrigada pelo excelente texto que nos motiva a ler mais essa obra do grande José Saramago.Já tinha vontade de conhecer esse enredo e, diante de seus comentários, essa vontade só fez aumentar. Tomara que o CLIc o eleja como leitura, pois aí, mais interessante ficará esse compartilhamento.
    Um abraço da admiradora desse intelecto brilhante,
    Eloisa Helena

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  2. Aprendendo e refletindo muito Edmar...Voce nos estimula a pwnwtrar no mundo de Saramago

    Ceci Lohmann

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