O escritor tcheco Milan Kundera, em
"A arte do romance", cita a obra "Os sonâmbulos", de
Hermann Broch, como uma das reflexões mais importantes acerca dos eventos que
marcaram os primórdios do século XX na Europa. Broch apresenta a Primeira
Guerra Mundial como o ápice de um processo de degradação dos pilares que
sustentavam a civilização ocidental desde o início da Idade Moderna. O
espetáculo da mortandade em escala inimaginável colocou em cheque valores morais,
éticos, religiosos. Kundera mostra que, a partir do tema do homem confrontado
com a derrocada de uma era, Broch aponta três alternativas. Na primeira delas,
diante da ruína inevitável dos valores fundamentais, restaria ao homem
apegar-se fanaticamente aos fragmentos desse mundo em decadência. Uma segunda
possibilidade seria a busca irracional por novos valores. Assim, o homem se
entregaria a filosofias com as mais disparatadas propostas, comportamentos
extremos, cultos a personalidades aberrantes, refugiando-se sob o manto da
ilusão para fugir ao desamparo. Por fim, numa terceira hipótese, tudo seria
permitido diante do vazio; cada um criaria suas próprias leis, mergulhando o
mundo num caos de egoísmo e violência.
Pensadores das mais diversas áreas
refletiram acerca desse momento da história humana, quando uma espécie de
decepção generalizada se abateu sobre o mundo, fruto das promessas não
cumpridas pelo sistema capitalista e pela tecnologia, incapazes de promover o
advento de um mundo melhor e mais justo. Dentre esses pensadores, Marx teve
papel fundamental, na medida em que suas ideias inspiraram as alternativas mais
importantes ao sistema econômico e social em que vivemos, nitidamente baseado
na desigualdade e na exploração. Na literatura, não foram poucos os autores cuja
escrita sofreram forte influência do pensamento marxista, dentre eles o
português José Saramago.
"Levantado do chão", de
1980, é o terceiro dentre os numerosos romance publicados pelo escritor, e
aquele em que mais se evidencia sua opção pelos oprimidos dentro das relações
de poder. A ação transcorre na região do Alentejo, num período que vai do
início do século XX até meados da década de 1970. Nesse cenário, um narrador
onisciente – com o qual é fácil identificar o próprio autor – faz o papel de mestre
de cerimônias, convidando o leitor a acompanhar a história de gerações de
camponeses pobres da família Mau-Tempo. Sobre o pano de fundo das
transformações políticas que levam Portugal da monarquia à república e depois à
ditadura, transcorre a existência dos trabalhadores, marcada pela opressão e pela
miséria. Se os regimes políticos alteram as formas de acesso ao poder, deixam
intocadas as relações sociais no campo. Patrões, autoridades e Igreja mantêm
seus privilégios, enquanto os camponeses lutam pela sobrevivência num cenário
imutável de verdadeira escravidão.
Mas esse narrador que opina, toma
partido, compondo sua narrativa com a marca da oralidade, vai dando voz aos personagens, num movimento que tende a apresentar
uma tomada de consciência. Na primeira geração, os Mau-Tempo pouco dizem por si
mesmos. Mas essa mediação vai sendo progressivamente substituída, a atitude submissa
e conformada dando lugar ao anseio por mudanças. E se o narrador segue
tutelando esses personagens, vai também se "ficcionalizando", declarando
suas opções narrativas, misturando-se, de certa forma, a essa massa de
descontentes que começa a se erguer e desafiar sua condição. Vão rareando as
repetidas comparações dos trabalhadores com animais; multiplicam-se os trechos
em que a dura realidade vai sendo retratada com emocionantes toques de poesia,
à medida em que aflora a consciência crítica dos camponeses, conduzindo-os da
passividade à ação.
O anticlericalismo de Saramago faz-se presente em
diversos momentos. Não por acaso, será Padre Agamedes, guia espiritual da
comunidade explorada e aliado dos poderosos, a apontar o declínio da "Santíssima
Trindade" do poder instituído: o latifúndio abandonado em prol da
urbanização que se anuncia, o Estado conservador ameaçado pelo socialismo e a
Igreja perdendo fiéis. Assim, o narrador/Saramago mantém a esperança na redenção
de sua gente. Se Hermann
Broch enxerga o fanatismo, a ilusão ou o desencanto como opções para o mundo,
Saramago acredita numa salvação por
obra da conscientização e organização das massas oprimidas. É assim que o
escritor acaba fazendo de "Levantados do chão" uma grande profissão
de fé.
SARAMAGO, José. Levantado
do Chão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2ª ed., 1989, 366p.
Edmar, muito obrigada pelo excelente texto que nos motiva a ler mais essa obra do grande José Saramago.Já tinha vontade de conhecer esse enredo e, diante de seus comentários, essa vontade só fez aumentar. Tomara que o CLIc o eleja como leitura, pois aí, mais interessante ficará esse compartilhamento.
ResponderExcluirUm abraço da admiradora desse intelecto brilhante,
Eloisa Helena
Aprendendo e refletindo muito Edmar...Voce nos estimula a pwnwtrar no mundo de Saramago
ResponderExcluirCeci Lohmann