SEIS CONTOS DA ERA DO JAZZ
Recordo-me
de dois grossos volumes que enfeitavam a velha estante de meu pai: “A História
do Brasil”, de Hélio Vianna. À época, o desafio de enfrentar os dois “catataus”
me parecia à altura da chance de compreender tudo o que se passara no país
desde o seu “descobrimento” até meados dos anos 1960. Os tomos pouco
manuseados, mais que traduzir o cuidado que meu pai sempre teve com os livros,
parece traduzir seu desinteresse pelo ambicioso projeto do autor de resumir
quase quinhentos anos de história em pouco mais de mil páginas repletas de
ilustrações, tabelas e mapas.
O
principal desafio das grandes sínteses e dos grandes manuais de história sempre
foi a abrangência, desafio que cresce na proporção que o Big Bang do
conhecimento amplia seus raios em todas as direções. Desde o advento da chamada
“Escola dos Annales”, na França dos anos 1920, as concepções positivistas, que
tratavam a História como um amontoado de datas e nomes, revelaram seus
equívocos, dando lugar à ideia de que toda atividade humana é, por natureza,
histórica. Dessa forma, veio abertura para interpretações e recortes temporais
mais amplos, para abordagens temperadas pela Sociologia e para a identificação
dos interesses por detrás da construção do discurso histórico. Nesse universo,
há que se precaver contra o relativismo extremo, origem de um obscurantismo
ignorante que permite, por exemplo, a negação do Holocausto e a defesa do
terraplanismo.
Quando
se trata de ficção, as fronteiras se alargam. Mediante acordo implícito, o
autor pode se permitir ampla liberdade criativa na abordagem dos fatos. Mas é
fato que o ficcionista dificilmente escapa de retratar sua própria história,
mesmo que veladamente, como é o caso de F. Scott Fitzgerald, em “Seis Contos da
Era do Jazz”.
A
ideia de caracterizar uma denominada “Era do Jazz”, conforme aparece no título,
não se concretiza a partir de uma enumeração descritiva de sinais próprios às
primeiras décadas do século XX, nos EUA, onde nasceu Fitzgerald. Aliás, nos
contos que compõem a coletânea, o jazz comparece somente como música de fundo
para algumas cenas, caso o leitor tenha ouvidos apurados. O que surge, de fato,
é a crônica reveladora de um recorte temporal e espacial restritos, através do
olhar crítico e desolado de seu autor sobre esse panorama e, especularmente, sobre
sua própria vida.
O
esclarecedor ensaio introdutório de Brenno Silveira, bem como a introdução de
autoria do filho do escritor, trazem uma visão acerca da atribulada vida de
Fitzgerald: o talento literário precoce, a busca pelo reconhecimento, o
casamento com Zelda e, por fim, o carrossel de excessos – bebida, festas,
viagens – que destruíram a saúde de ambos. Mas é no conjunto de narrativas de
“Seis Contos da Era do Jazz” que afloram com nitidez as preocupações em torno
das barreiras sociais na conservadora sociedade dos EUA durante os anos 1920
como principais traços da literatura do autor de “O Grande Gatsby”.
Os protagonistas das histórias de Fitzgerald
ora lutam pela ascensão social, ora sofrem pela necessidade de manter as aparências
adequadas ao seu status. Homens e mulheres, aprisionados por padrões de
comportamento impostos por uma sociedade rigidamente estamentada, ensaiam uma
independência fadada ao fracasso, pois a hipocrisia, o preconceito arraigado, a
ditatura de costumes não dão chances aos desajustados e rebeldes. A sutil
ironia que o autor utiliza para forjar as histórias dessas vidas
representativas de um universo claramente delimitado não deixam dúvidas a
respeito do desencanto do escritor perante esse quadro. Nem mesmo em “O Curioso
Caso de Benjamim Button”, tratado fantástico sobre a juventude e a aparência,
Fitzgerald deixa de lado sua contundente veia crítica.
“Seis
Contos da Era do Jazz” oferece uma visão interpretativa da sociedade de uma
época como poucas vezes o relato histórico foi capaz de elaborar. A releitura
desse belo livro, por indicação da amiga Eloisa Rodrigues, do Clube de Leitura
Icaraí, trouxe, como em geral se dá com as releituras, um reencontro
surpreendente. No mais belo conto da coletânea, “Ó Feiticeira Ruiva” – também o
preferido de minha querida Eloisa – uma deslumbrante aparição feminina
enfeitiça a vida um empregado de livraria. A alegórica cabeleira vermelha de
Caroline, tingindo de vivas e ilusórias cores uma vida insípida, simboliza
brilhantemente o sonho de tantos que se movem no encalço das pegadas da ilusão.
FITZGERALD, F. Scott. Seis
Contos da Era do Jazz. Porto Alegre: L&PM. 1987, 264p.
Fiquei muito feliz com a atenção, com o comentário crítico do nosso querido escritor , Edmar M.Filho. O que mais me impressionou foi sua visão especialíssima da cabeleira ruiva. Nunca li nada sobre essa imagem. Mas Edmar, com sua sensibilidade, interpretou-a muito orinslmente! Creio que F. Scott concordaria satisfeito.Merci!
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