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18 de outubro de 2020

Me tornei um comalense (ou será comaliano?): Emmanuel Paiva de Andrade


Como acontece uma vez por mês, neste outubro de 2020, o fatídico ano da pandemia, comecei a ler o livro selecionado do Clube de Leitura Icaraí (Clic). O escolhido da vez era o “Pedro Páramo”, do escritor mexicano Juan Rulfo(1). Como um “leitor prático”, à moda dos antigos “práticos” das profissões, ou talvez um “leitor leigo”, daqueles que rondam a periferia da centralidade das coisas, ou qualquer outra classificação que se queira aplicar àqueles que leem apenas por prazer e não por função, embora já tivesse ouvido falar do autor, jamais lera qualquer coisa dele antes.  

A leitura começou difícil, daquelas que você quase para no meio do caminho, encontrando uma desculpa qualquer para tão drástica decisão, seja porque os tempos estão difíceis, muita coisa pra fazer, conflito de prioridades, o tema é muito cavernoso (e bota cavernoso nisso!) ou, last but not least, porque, afinal de contas não gostei. O autor não me cativou e a história não me convenceu. Quer dizer, o repertório de possibilidades pra ficar bem na fita é imenso. Dá pra se safar! 

Mas ao mesmo tempo, vou me dando conta que o autor foi uma referencia importante para Gabriel Garcia Marques, Jorge Luís Borges, Guimarães Rosa e tantos outros ícones da literatura latino americana. Aí entra aquela pulguinha atrás da orelha, que vira um anjo acusador, te dizendo: o errado é você, meu caro, suas referencias intelectuais ainda não te permitem aquilatar o valor estético da obra de arte. 

Nesse momento, o orgulho toma posição e você parte pra luta. Foi o que eu fiz, visitando o Santo Google em busca de referencias que me permitissem compreender um pouco mais do que é que se passava com a minha experiência arrastada de leitura de Juan Rulfo. E toca a baixar resenhas, notícias e discussões sobre o autor e o livro, incluindo aquelas inúmeras curiosidades YouTubianas. 

Pra meu consolo imediato, descubro que a dificuldade inicial da leitura de Pedro Páramo é mais comum do que supunha a minha vã filosofia. Já mais aliviado, continuo a leitura, ao mesmo tempo em que aprofundo um pouco mais o conhecimento das histórias, circunstâncias e perspectivas do autor e do livro. E eis que minha sintonia com o romance vai aumentando, aumentando, aumentando, até virar uma avalanche. Ou talvez, eu é que tenha virado uma daquelas vozes, vindas não se sabe de onde, que atravessam a história o tempo inteiro. Sim! Deve ser isso. Eu virei um dos fantasmas que habitam Comala!  

Dentre todas as descobertas que fui fazendo, a que mais me impressionou foi a de perceber uma história que se conta por si própria. As muitas vozes, os muitos narradores que ali surgem, configuram, na verdade, uma espécie de inexistência de um “dono” único da história, de um narrador-mor. É como se pessoas, vivas ou mortas, lugares, circunstâncias, acontecimentos, valores, pecados, alegrias e tristezas se reunissem e contassem, por si mesmo, como sujeitos de mesma estatura ontológica, tantas histórias quanto são as experiências ancestrais de latino-americanos, submetidos, dominados ou em luta permanente, por um paraíso que não coincide em nada com aquele que os colonizadores quiseram impor ao continente. 

E pra finalizar, em diálogo durante o encontro do clube, nos vem a descoberta de que nessa história que se auto-narra, não adianta repetir a leitura de nenhum trecho, em busca de alguma lógica inteligível. As conexões não se fazem por proximidade, mas por uma espécie de “hipótese Gaia”, de James Lovelock(2), onde humanos e não humanos se falam, se combinam, se articulam e se comovem. Tem que ler a história toda, várias vezes. E isso só pode aumentar em nós a sensibilidade poética que Juan Rulfo tão incrivelmente nos comunica.

(1) RULFO, Juan. Pedro Páramo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2020. 

(2) LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu Editora, 2020


17/10/2020


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