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3 de outubro de 2020

Ensaio sobre a Cegueira: José Saramago





"Não há no mundo nada que em sentido absoluto nos pertença."

"Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira."


Deitados nos catres, os cegos esperavam que o sono tivesse dó da sua tristeza... Vamos todos cheirar mal. 


A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que cá já não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala, Será, mas este homem está morto e é preciso enterrá-lo.


"A alegria e a tristeza podem andar juntas, não são como a água e o azeite."




Os Filhos da Morte Burra
Blake Rimbaud

Jovens sem nenhuma utopia
Caminham tensos pelas ruas de suas casas velhas
Sem nenhuma luz, sem nenhuma luz de Fernando Pessoa
Fechados nas sexuais telas da impotência
Se masturbam contemplando corpos em decomposição!
Morte da minha fé,
Onde estavam o beija-flor e o arco-íris
Na hora do nascimento dessas criaturas
Quantas gotas de flor restam nos corredores dos céus
De vossas bocas.
Quais fontes clamam por vossos nomes?
Eu entrando na virtuosa idade
E eles entrando em idade nenhuma.
Os filhos da morte burra
Cheiram o branco pó da anemia
Esqueceram que um dia tocaram na poesia da
Transgressão em pleno ventre de suas esquecidas mães
Esqueceram de colar o ouvido ao chão
Para ouvir as ternas batidas do coração das borboletas.
Os filhos da morte burra
Jamais levantam uma folha para conhecer o amor dos incertos
Jamais erguem taças ao luar para brindar a
Vigorosa lua
Os filhos da morte burra,
Desconhecem ou jamais ouviram falar em iluminação
Apenas abrem a boca para vomitar




Quem disse que um raio não cai três vezes no mesmo lugar?

Terceiro debate do ensaio sobre a cegueira,  agora no clube jovem!




Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas,
ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais. 

Descuidados do dia de amanhã,
esquecidos de que quem paga adiantado,
sempre acaba mal servido.

No fim das contas o que está claro é que todas as vidas acabam antes do tempo.

É como tudo na vida, deem tempo ao tempo que ele se encarrega de resolver.

As lágrimas que sentido têm quando o mundo perdeu o sentido?

Como a vida é frágil se a abandonam!

Tinham passado já o corredor, o fedor tornara-se insuportável. Na cozinha, mal iluminada pela escassa luz de fora, havia peles de coelho pelo chão, penas de galinha, ossos, e, sobre a mesa, num prato sujo de sangue ressequido, pedaços de carne irreconhecíveis, como se tivessem sido mastigados muitas vezes.



Após período de quase um ano e meio do fechamento da livraria Ver & Dicto, o Clube de Leitura voltou a se reunir, desta vez acolhido pela Livraria Icaraí da Editora da Universidade Federal Fluminense - EdUFF. Na primeira reunião, em setembro de 2008, os participantes votaram o livro de estréia da terceira fase dos encontros. O eleito para a retomada das discussões, foi o romance “Ensaio Sobre a Cegueira”, do escritor português José Saramago. Para os participantes veteranos esta foi uma releitura, uma vez que estes já o haviam lido em janeiro de 1999.

A reunião de “Ensaio Sobre a Cegueira” ocorreu em 31 de outubro de 2008. A trama transporta o leitor para um mundo repentinamente dominado pelos instintos mais primários de seus habitantes. De modo violento, coloca questões sobre a evolução humana, gerando reflexões sobre degradação social e dilemas éticos. A narrativa, representada de forma crítica, não aponta uma direção específica a ser seguida, sendo uma história que gera perguntas, não respostas.

Tudo começa quando uma misteriosa doença que deixa as pessoas cegas se alastra por um país, atingindo toda a população, com exceção da personagem, que representa a esposa do médico que trata do primeiro homem a manifestar a desordem. Tal situação põe em interdição a moral e as normas de comportamento e tem como consequência a degradação que dominaria a sociedade. “Ensaio sobre a cegueira” nos faz lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.

O livro é essencialmente uma crítica social, e revela a cegueira do mundo contemporâneo.

Uma das questões apresentadas durante a leitura do livro foi “por que a mulher do médico não ficou cega?”. Saramago, em entrevista, comenta que “ ‘mulheres do médico’ são… aquelas pessoas que estão conscientes do verdadeiro caráter do mundo em que vivem e que sofrem por não ver sinais positivos de mudança, mas também pela sua própria impotência perante o desastre que se tornou a vida humana”. "O livro não passa de uma pálida imagem da realidade.

Em relação aos “possíveis significados da cegueira branca”, começando por uma analogia ao conceito físico, que diz que o branco é a mistura de todas as cores e o preto e a ausência delas, foi comentado que “Talvez a cegueira branca tenha muito mais a ver com o brilho excessivo dos egos e do poder, que impedem de ver o que não é ‘eu’, do que com a ausência dos dispositivos e aparatos pra ver...
"A cegueira da ideologia, de que falava Marx, também parece uma espécie de ‘cegueira branca’, a alienação talvez. É significativo também, por essa linha de especulação, que a mulher do médico, que topa dar a vida pelo outro, experimente, talvez por isso mesmo, uma espécie de antídoto… Significativo também o mecanismo de contágio da ‘cegueira branca’. Propaga-se através de uma rede de relações. O contágio não é pelo contato (físico), mas pelas relações. E por isso mesmo, o remédio é a quarentena, o isolamento, o rompimento da rede de relações. Remédio que pressupõe o germe da doença nos que tentam tratá-la. Eu quase diria que o círculo é absolutamente vicioso e a quebra da epidemia passa por alguém ‘negar’ essa lógica, a exemplo do que Gandhi fez com a ‘não-vîolência-ativa’ no processo de libertação da India.
O convívio forçado dos cegos no livro levou uma das integrantes a fazer interessante analogia com a obra “Huis-clos” (“Entre Quatro Paredes”), escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) para o teatro em 1945:
Li a peça ‘Entre quatro paredes’ há muitos anos, … Nesta peça três personagens se encontram depois da morte, no inferno. Cada um acha que está ali por engano e esperam o carrasco quando um deles percebe que não chegará ninguem, cada um será o carrasco do outro, o inferno é estarem confinados, serem obrigados a conviver (‘L'enfer c'est les autres’, ‘O inferno são os outros’). Através do outro cada um começa a ‘confessar seus pecados’, a entender porque estão ali, é pela presença do outro que cada um se conhece. Nas cameratas, a convivencia forçada também faz com que cada um mostre como realmente é.
Na mesma linha, foi sugerido influência da corrente filosófica existencialista na criação literária de Saramago. A temática existencialista, foi justificada através da consideração das “personagens em situação, cegueira, para daí buscar construir o sentido da existência delas, debatendo questões atinentes à ética e que pertinem a toda humanidade.

A temática existencialista, contudo, foi questionada. Apesar de apresentar traços existencialistas, foi argumentado que a temática da obra de Saramago seria “fundamentalmente humanista”.
É verdade que Sartre tentou ligar existencialismo e humanismo, (O existencialismo é um humanismo, Sartre, 1946). Lukács não aceitou isso (Existencialismo ou Marxismo, Lukács, 1967) e denunciou como ‘forçação de Barra’ a tentativa de conciliar a noção existencialista de liberdade, entendida como decisão exclusivamente individual, e as circunstâncias históricas e sociais em que essas decisões individuais são tomadas.
Tento compreender quanto de existencialismo tem por trás da cena em que o primeiro cego encontra o escritor que havia se alojado no seu apartamento e, quando sua mulher pergunta o nome do escritor este responde ‘... os cegos não precisam de nome, eu sou esta voz que tenho, o resto não é importante’...(p. 275)… Finalmente, entre o ‘estou cego’ das primeiras páginas e o ‘vejo’ das últimas, assistimos a um drama apocalíptico em que os inidíviduos em sua liberdade sobreviveram ou sucumbiram mas não compreenderam nem foram capazes de mudar efetivamente as condições de contorno de sua existência (a menos do momento em que inexplicavelmente, talvez como eco de sua essência, a mulher do médico grita ‘Ressurgirá’), qual seja a de verem, estarem cegos e verem novamente.
E por favar em releituras, a versão cinematográfica “Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness)”, adaptada pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, valeu, para os que a assistiram, também como uma. Saramago descreve a adaptação de Fernando Meirelles como sendo mais do que satisfatória:
Considero-o até brilhante. O essencial da história está ali, como seria de esperar, mas, sobretudo, encontrei na narrativa fílmica o mesmo espírito e o mesmo impulso humanístico que me levaram a escrever o livro.
Fernando Meirelles, por sua vez, em comentário sobre a epígrafe “Se pode olhar, veja. Se pode ver, repara, do livro de Saramago, nos deixa a seguinte mensagem
“Olhar com a percepção mecânica da visão, ver como uma observação mais atenta do que nos aparece à vista, uma visão analítica, e finalmente reparar no sentido de se libertar da superficialidade da visão e se aprofundar no interior do que é o homem e assim conhecê-lo.



4 comentários:

  1. O autor está no livro todo!

    "...O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se. Não esqueçamos, porém, que assim como as verdades puras não existem, também as puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, quanto mais não seja por insuficiência expressiva das palavras, também certo é que nehuma falsidade pode ser tão radical que não veicule, mesmo contra a intenção do mentiroso, uma parcela de verdade...
    De fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se fazem, pois, as histórias. Contudo, em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se nos apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deveria interessar não é a que, liminarmente, lhe é proposta pela narrativa.
    Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripércias, surpresas, efeitos de estilo...um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro - mais do que a história que lhe será narrada - a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor.
    Tal como entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista. Com isto não pretendo sugerir ao leitor que se entregue durante a leitura a um trabalho d edetetive ou antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, ao cabo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o autor...
    Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor..."
    José Saramago/1997

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  2. Que estranho esse livro! Falta a estrutura convencional dos diálogos. Deixa a gente num incrível desassossego, desagradável inquietação. Sonhei com ele na noite passada e acordei assustado na escuridão do meu quarto, achando que estava cego. Achei curioso que fosse mantida a edição portuguesa, com várias palavras em português de Portugal.

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  3. Pessimismo absoluto.
    Fim das ilusões.
    Realidade nua e crua.

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  4. Quando li esse livro, na parte em que os cegos começam a se organizar no manicômio, a impressão que tive foi de que toda organização social, em qualquer tempo e lugar, se fundamenta no medo. Assim como o narrador da trama, desconfio de que não há limites para o mau, para o mal que a natureza humana excreta.

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