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4 de julho de 2013

Trevas de novaes/ segundo William Lial


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PRIMEIRO PARÁGRAFO:
A CONFIGURAÇÃO DO MEIO!

Não me é fácil falar. Vinha pela rua escura, cabisbaixa, pensativa, sob o peso da noite, da minha vida à meia-luz, nada é claro[1], claro, apenas minha angústia perene[2], sei lá de quando ela vem, houve um dia em que a vida parou, partiu-se em duas metades – uma verde, brilhante, esperançosa e sorridente, que ficou para trás, outra cinzenta, turva, disforme[3], essa metade em que vivo agora, vida pelo meio[4], pisando em chãos inseguros, em superfícies suspensas, cambaleantes, que não me permitem nada mais além desse andar vacilante[5]. Apesar de todas as dúvidas em meu pensamento absorto, eu mantinha um passo que se tentava firme[6] naquela noite, naquela rua deserta, mais por medo do que por decisão[7].
[1] Tons de sombra, escuridão que revela tristeza.
[2] Concretude da tristeza intermitente.
[3] Oposto do verde esperança, citado no mesmo pensamento.
[4] Meio, meia-luz, turvo (nem claro nem completamente escuro; manchado o claro pelo escuro, ou seja, meio-claro, meio-escuro), indefinido, como ocorre ainda nos exemplos [5], [6], [7].
Dessa forma, tudo é meio alguma coisa, mais especificamente, vacilante, frágil.
SEGUNDO E TERCEIRO PARÁGRAFOS: A VERBORRAGIA DA SOMBRA INTERIOR – quanto ao ex-marido.

Pensei em Alberto. Não sei por que esse marido, na verdade ex, diria ex...tinto[8] se pudesse, surgiu em minha vida e por que fez o que fez, sua covardia, seu medo, sua fraqueza. Se o desgraçado não estava preparado para um filho, para um filho com problemas, se o babaca não estava ciente do que é ser companheiro e do que é ser pai, por que diabos se apresentou à minha pessoa? Pelos meus belos olhos? Meu par de coxas? Minha bunda? Puta que pariu! Avisasse de seus limites e nós poderíamos ter feito uma troca mais justa, sexo por sexo, prazer por prazer – e ponto final. Sem devaneios de casamento, de filhos, de responsabilidades. Mas o energúmeno teve medo de que eu não quisesse essa troca simples, desejo puro, coisa de homens, ele deve ter pensado. Enredado nessa e noutras neuras masculinas, nutriu fantasias e se fez casar. E teve filho comigo talvez pensando em me fazer mãe, na acepção caseira da palavra, mulher comportada, atarefada com filho, para me ter em casa, “trabalhadora da família”, essa categoria ainda não classificada no Ministério do Trabalho, mas muito bem definida em mentes masculinas medíocres.
[8] A expressão tanto pode significar ex-algo (como ex-marido), como também antes o marido possuía cor, vermelha do vinho feito paixão, força, vitalidade amorosa, um significado de romance do casal, agora acabado, ex...tinto.

As demais palavras e frases em negrito são a expressão do que é o ex-marido. Nesse parágrafo, as palavras e frases que marquei falam do caráter do marido, da sua fraqueza moral, o que intensifica a representação do por que da revolta da mulher.
SEGUNDO E TERCEIRO PARÁGRAFOS: A VERBORRAGIA DA SOMBRA INTERIOR – quanto ao vazio e afastamento da protagonista.

Pensava eu nesse estrupício de homem e concluí pelo despropósito de nosso casamento, faz tempo terminado – ele fugiu, como fogem os ratos. Entre uma passada e outra, no breu da rua sem vida, enxerguei que sempre estive , sobretudo casada, pois aquela companhia foi apenas ilusão, não era nada, era pior que nada. Era muito pior que nada: me fez perder tempo, nem que fosse um tempo precioso comigo mesma. E fechou-me para um amor de verdade, usando uma chave de papel: aquela certidão de casamento. Não consigo explicar agora por que o papel, tão frágil, tão rasgável, tem esse poder todo que lhe damos. Até as minhas lágrimas poderiam ter desfigurado, destruído facilmente aquele papel, bastaria que caíssem, não dos olhos para o meu peito, que se manchava de dor, mas sobre aquele papel infeliz, que ali estava quase me dizendo: “eu não valho nada, chore em mim, cuspa em mim, ponha-me no meu lugar, picote-me!” – eu é que não ouvia, não traduzia suas palavras, pensando que aquele era um papel indestrutível, ou deveria ser. Eu sim, que me destruísse em pedacinhos, meu Deus, como foi fácil me destruir, me amassar, rasgar, cuspir em mim, enquanto aquele papel me parecia mais valioso do que eu mesma, do que a minha felicidade. Seria ele a me fazer feliz, eu pensava, e no dia em que tudo acabou, ah, naquele dia aquela certidão – deveria chamá-la de “erratidão”? – estava lá, olhava para mim e não dizia nada. Nada. Nem mais o que nela jazia escrito fazia mais sentido, se é que fez algum dia. Nem uma verdade factual aquilo não era mais. Um tempo depois, naquele mesmo papel, um carimbo no verso dizia-me divorciada. Quer dizer, virou um papel esquizofrênico, que pela frente diz uma coisa e por trás diz o oposto. Que papel é esse que me deram, meu Deus? Certamente ele sempre disse outra coisa por trás, em tinta invisível, mas indelével.
As palavras e orações em negrito dão o tom do vazio, do afastamento, da derrota e da fragilidade em que vivia a relação do casal e que sobrepujou a esposa, agora abandonada pela vida, mas do que pelo marido.
Além disso, todo o texto segue num fluxo de consciência que se derrama continuamente nos parágrafos, porém, nestes dois, o fluxo é mais representativo, mais intermitente – longo e com pausas de vírgulas, ou mesmo pontos, que quase nada dizem, num vômito de palavras e consciência, numa corrida para não perder nada do que é ruminado no instante, o que reproduz o estado de ânimo da protagonista.

TERCEIRO PARÁGRAFO: O RECONHECIMENTO DA TREVA QUE PENETRA

É. As trevas, pelo visto, não estavam apenas naquela rua sombria, naquela noite sem lua, estavam um pouco dentro de mim. Um negrume pegajoso, que deixei grudar na alma, e agora não consigo separar os fatos dos pensamentos, as dores dos medos, o passado do futuro. Mas eu preciso separá-los. Preciso trazer de volta a minha alma limpa. A minha beleza radiante.
E aqui se passa do meio-tom, do cinza, para a escuridão, “Um negrume pegajoso”. A representação da alma, do sentimento da ex-esposa agora se expõe frustrado, acachapado, negro.
O parágrafo anterior não chegou a ser um mediador propriamente dito do meio-tom para a escuridão, mas, de certa forma, assim funcionou para expor motivos dessa mudança de tom, mostrando o que levou a cor a mudar, o tinto do vinho esmaecer e o que já era cinza enegrecer.
Até aqui, tudo é em volta do relacionamento.

O MOMENTO DO EMBATE COM A VIDA E COMSIGO MESMA

Pensava nessas coisas, caminhando pela rua vazia, pela noite calada, quando me apareceu aquele sujeito. Não sei de onde ele tirou um fiapo de luz, mas foi o brilho que me fez ver a faca. Colocou-me contra a parede, num canto perdido, e exigiu silêncio e sexo. Veio das trevas, pensei. Ele repetia: silêncio e sexo, rápido, na escuridão sem sentido, em palavras descabidas que não ouso reproduzir. Aqueles segundos pareceram uma eternidade, uma viagem no tempo, silêncio e sexo, silêncio e sexo, rápido, como pode isso?, tudo o que Alberto sempre reivindicara, sutilmente, agora aquele homem colérico, agressivo, também queria, exigia, tentava impor desesperado[9] valendo-se da lâmina brilhante. De minha parte, eu mais me surpreendia do que temia. Como era possível que as trevas me viessem assim, que insistissem em permanecer emaranhadas à minha vida, grudadas na minha alma, eu que acabara de decidir-me pela luz, pela integridade radiante do meu ser?
Incrível, controverso no clima da personagem é que tudo o que disse até aqui foi relacionado com a bruma, com o turvo até chegar à escuridão; mas ao ser abordada por um marginal, esse encontro traz como uma nova leitura da própria situação amorosa em que vive, ou viveu, a protagonista: primeiro ela ver um fiapo de luz – o que podemos encarar como o meio-tom em que estava o casamento, antes do fim –, e depois o brilho [da faca], e não o breu, causando um choque com  o andamento do texto; ou seja, no momento em que tem a luz (na forma do brilho), essa é má, e não salvadora, a luz que brilha também é treva, e aquilo que, segundo ela, poderia ter sido acordado com o seu marido, no começo do relacionamento, um envolvimento baseado apenas em sexo, é o que terá agora, contudo, em mais uma inversão, sem que ela deseje[9].
O sexo era o que seu ex-marido queria, porém, o que está prestes a ganhar, é ainda mais cru, ainda mais distante de qualquer sonho romântico.

O ABISMO TRANSFORMADO EM FORÇA: DIANTE O NADA, NADA A PERDER

A premência do sujeito, aquelas ordens que lhe saíam violentas pela boca como se fossem a energia nervosa de seu próprio sêmen, uma ansiedade expressa pela saliva que espirrava gotas em meu rosto[10], fazendo-me sentir aquela urgência fluidal antes mesmo de qualquer ato sexual, tudo isso mais me paralisava, como se fosse um contraponto, uma resistência pela imobilidade. O sujeito nada entendeu quando larguei-lhe na cara uma risada nervosa, que logo interrompi, ainda mais apreensiva. Eu não disse a ele, mas é que pensei naquele momento que o meu contraponto precisava ser, naquela situação, um “contrapinto”, o que me fez rir absurda, numa hora impossível, e senti-me ridiculamente alheia àquele drama, como se dramas não mais me ferissem, tão acostumada eu estava com as trevas de minha vida cinzenta[11]. Antes que o sujeito, que obviamente não estava achando graça, saísse de seus poucos segundos de estranhamento e desse cabo de sua raiva usando aquela faca que ele não parava de agitar, fingi que meu riso despropositado fazia parte da minha intenção de entregar-me àquele pretenso garanhão. Voltei a sorrir e encarei-o com desejo. Abri dois botões de cima da minha blusa. Dei um passo em sua direção, mirando-o. Sexo e silêncio? Só se for nas minhas condições, pensei. Avancei, com volúpia e decisão, fazendo-o vacilar. Quando, por cima de sua calça, cravei a mão firme sobre seu sexo e o encarei com a vontade mais determinada que consegui, ele fugiu, assustado e apressado como se tivesse visto o próprio demônio[12].
[10] A urgência do estuprador, nesse trecho, lembra a sua urgência, a velocidade e violência dos pensamentos da protagonista sobre seu casamento e sua vida, como vimos há pouco.
[11] E aqui, uma curva para o abismo de Nietzsche em Genealogia da moral (foi o que me veio à mente de imediato): “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”, o que se conclui no exemplo a seguir.
[12] A conclusão do abismo de antes. Aqui, contudo, não se trata expressamente de a protagonista agora transformar-se num monstro, mas de encarar seus medos e usar do abismo em que se encontrava para enfrentar o próprio abismo, um instante do monstro de Nietzsche, “o próprio demônio”; em outras palavras, diante o abismo em que vivia, o estuprador, que também podemos ver como uma representação do abismo, olha de volta para ela, e ela, olhando para ele, revida com o seu abismo somado na alma.

Outro ponto interessante aqui, no exemplo [12], é a fuga do marginal; essa fuga do pretenso estuprador pode ser comparada à fuga do marido que também partiu, segundo ela, por medo.

O RECONHECIMENTO FINAL DO EU, FRUTO DO QUE SOFREU

Olhei para a noite deserta. Pensei em Alberto. Pensei nas trevas. Pensei em mim.
No final, depois das ruminações, da verborragia intempestiva sobre sua vida, depois do abismo – fora e dentro de si –, alimentado no último ato de revolta e resposta ao estuprador, depois da agressão e da sua resposta na forma da lei de Hamurabi, “olho por olho...”, ela se vê desamparada diante do breu (noite), do vazio e da solidão (deserto). Daí, pensa, lembra das trevas. E nesse momento, a narração a coloca no mesmo nível das trevas. Nesse momento, protagonista, ex-marido e treva são a mesma coisa escura e abismal: “Pensei em Alberto. Pensei nas trevas”, diz ela, e a seguir, “Pensei em mim”, logo: EU+Alberto = Trevas. E Alberto, nome que antecede o nome trevas, pode ser lido como o que produz a treva; por conseguinte, mim, pronome de identificação da protagonista, pode ser lido como a consequência da treva, a vítima de Alberto e das trevas.

Concluindo, o conto traz uma mulher fragilizada, vítima da derrota amorosa, do abandono, perdida, vagando, tanto quanto os seus pensamentos, na rua, onde é abordada, atacada e submetida aos desejos de um criminoso que, assim como a vida e os sofrimentos que vivencia, a quer submeter a ele, dominá-la para servi-lo como a “mulher comportada”, “trabalhadora da família”, feita para servir; salva no instante crucial de sua inferioridade pela fúria silenciosa que lhe emana de dentro, do medo, e mais do que tudo, do nada, como um nada a perder. E o marginal foge, como fugiu seu marido, assustado com a força e imposição da mulher (como já tivemos notícias de outros casos semelhantes em que os estupradores desistem de estuprar se a vítima permitir consensualmente o ato).

Enfim, o conto nos traz alguém que, subjugada pela vida que não esperava e que a maltratava e sucumbia na escuridão, acabou por se tornar a própria escuridão. Escuridão do abandono do outro, da vida e, por fim, de si mesma. E talvez daí – agora fazendo uma projeção não para a personagem do conto em si, tendo em vista que esta se nos desaparece aqui, ao fim da leitura; mas projetando para além, para outras mulheres em situações semelhantes –, talvez daí, eu dizia, essa mulher possa se libertar e acreditar que, para não mais ser subjugada pela vida e pelas suas forças contrárias, é preciso, e talvez seja o bastante, enfrentá-la de peito aberto como no enfrentamento com o marginal (“Abri dois botões de cima da minha blusa. Dei um passo em sua direção, mirando-o. [...] Avancei, com volúpia e decisão”), e partir para a vida sem dúvida, sem nada mais do meio-tom do início do texto.


"Trevas" integra o livro de contos "letras rebeldes, fluidos insensatos" que será debatido esta semana no nosso clube de leitura


William Lial é escritor (poeta, cronista, contista, romancista de um romance ainda não publicado), ensaísta literário, e mestre em Literatura Comparada. Autor de três livros de poemas, Sombras (2001), Noturno (2003) e O mundo de vidro (2005). Além de colaborar com jornais e revistas do país. Para saber mais sobre o autor e seus livros basta acessar e/ou seguir seu blog: http://williamlial.blogspot.com/, curtir sua página no Facebook: https://www.facebook.com/WilliamLialEscritor ou contatá-lo por e-mail: wlial1208@gmail.com.



3 comentários:

  1. Evandro,

    Obrigado pela postagem das minhas observações sobre o conto do Novaes. Você, sempre alerta, rs!

    Abraço!

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  2. Olá, William, tenho acompanhado seus textos e comentários no blog e no e-mail do grupo, e se não parabenizei-o antes foi por absoluta falta de tempo, já que estas duas últimas semanas foram especialmente corridas para mim.

    Gostei muito de saber que o CLIc ganhou mais um entendedor em literatura disposto a compartilhar seus saberes conosco. Pena vc não poder comparecer às reuniões para conhecer o Benito Petraglia. Ele também disseca os livros e faz ótimas análises. Temos ainda a Dilia Gouveia, que além de literata é também brilhante professora de filosofia, e dezenas de participantes, leigos ou não, sempre dispostos a dividir emoções e sentimentos despertados por uma leitura de qualidade, de modo que o clube oferece um verdadeiro banquete aos amantes das letras.

    E por falar em letras, especialmente as rebeldes, sobre suas observações acerca do conto Trevas, do novaes/, devo dizer que achei-as muito pertinentes e bem formuladas. Eu gosto muito desse conto, acho super bem escrito, sensível, me toca e inspira a novas atitudes para novos resultados. Isso é o meu sentimento. Aí quando encontro a ressonância que essas palavras me provocaram explicadas, é assim como uma exclamação "Ah, então era por isso". Valeu. Grande abraço.

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    1. Oi, Rita.

      Não é necessário desculpar-se, mas obrigado pela gentileza em fazê-lo. Quanto aos outros participantes do clube, seria bom conhecê-los pessoalmente, e acredito que isso ainda ocorrerá, ainda participarei de alguma reunião ou reuniões. E sobre o texto do novaes/ (grande ideia imagética essa escrita, sobretudo a da barra no final substituindo o sobrenome), sobre o texto do novaes/, eu dizia, tive um sorriso com a sua exclamação "Ah, então era por isso", rs! Não sei se meus comentários merecem a exclamação, mas gosto de dizer o que acredito ter visto nos textos.

      Enfim, obrigado pelo contato, pela conversa, pela recepção!

      Um abraço!

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