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30 de junho de 2022

Imprevidência: Adriana Mendonça

Terceiro plantio do domingo, terceiro morador ausente e a gente sem uma gota d'água. Nem foi imprevidência, afinal, quando foi que em três plantios não se encontrou nenhum morador? Levamos dois galões de cinco litros que foram esgotados na secura de uma estação muito quente. Fiquei levemente aflita: fazia um sol para cada pessoa, a terra estava estorricada. Enquanto cavava, olhava ao redor a procura de uma torneira. Ainda bem, vi uma na casa bege da esquina, de portão bege e calçada cinza - de verde, nem um pé de couve. Um senhor repousava à sombra da parede, sentado em uma cadeira de tirinhas de plástico.


Passei a mão no galão vazio, me acheguei ao portão, arriscando um bom dia todo sorrisos. O senhor pareceu não me ouvir, mas notei que seus pés tatearam o chão a procura dos chinelos esquecidos. Vi os dedos tendinosos pescar um, depois o outro chinelo, vi seu peso leve ser alçado da cadeira com dificuldade e, imersa nessa observação, se esvaiu de mim toda pressa, nossos tempos eram diversos. O velho veio ao meu encontro e pensei em como o cansaço dos muitos anos acaba por vergar a gente, não escapam nem os cantos da boca. 


Expliquei calmamente a situação e, ato contínuo, fui entregando o galão vazio, era tudo simples. Mas, contrariando minhas certezas, o velho disse não, ele não me daria a água. À força fiquei paralisada porque toda a ação do meu corpo ia já pelo muito obrigada! Retesei, não discuti, não insisti, me virei e antes da indignação me tomar, outro vizinho discretamente me estendia um bico generoso de mangueira.


Pronto, o plantio continuaria sem ameaças. Jogamos água e adubo no bercinho, colocamos a muda, devolvemos a terra, pisamos em volta, peguei o galão pesado desse líquido benfazejo que é a água fresca e verti calmamente para deixar bem úmida a terra que cobriu a muda. Enquanto escutava o gorgolejar da água que saía do galão vi que o velho atravessou a rua. Não me mexi, continuei mirando a água que escorria vagarosa do galão para a terra, evitando que se perdesse pela calçada. O velho parou do meu lado e puxou conversa. Contou-me que seu único filho morrera em um acidente de carro, filho varão, ótimo homem. Ele queria se justificar. Contou-me que o filho morreu saindo de uma festa, coisa de jovens… que o carro ficou completamente destruído ao se chocar com uma árvore do canteiro central de uma avenida. Fiquei perplexa. Ele prosseguiu, disse-me que a mulher mandara cortar as árvores da própria calçada…


Fiquei seca como o galão por ele rechaçado, soube o que ele queria de mim, mas eu não era capaz de dar. Não o fiz por vingança, mas pelo aturdido da situação. Ele se afastou, eu não o segui com os olhos. Recolhemos todos as ferramentas e partimos com alívio. Ao passar pela Major Nicácio (seria ali?) ensaiei meio sorriso,  arqueei os cantos da boca ao imaginar as inconsequentes árvores bêbadas, colocando em risco os responsáveis automóveis que circulam nas madrugadas festivas.



Um comentário:

  1. Foi um texto muito bem escrito e emocionante. Saudade dessa querida leitora e escritora de Franca.

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