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14 de setembro de 2021

LEREIAS - O EXÉRCITO DE CAVALARIA: Edmar Monteiro Filho



Umberto Eco afirma que todo escritor cria seu texto imaginando um leitor em especial, aquele que possui informações tais que lhe permitam aceitar as premissas impostas, deixando-se conduzir pelo caminho indicado. Segundo Eco, Alexandre Dumas, em “Os Três Mosqueteiros”, descreve um trajeto percorrido pelo personagem D’Artagnan através de Paris, de tal forma que, de posse de um mapa de época, é possível acompanhar passo a passo seu itinerário. Mas ressalta que, num certo instante, Dumas comete um erro, citando uma rua inexistente no momento histórico retratado no romance. É de se supor que tenha cometido um deslize perdoável. Mas, que dizer se, no mesmo livro, D’Artagnan fosse descrito entrando em uma taberna e se deparando com Cristóvão Colombo? 

O enredo de “Os três mosqueteiros” pede que o leitor ignore um possível deslize quanto ao traçado das ruas de Paris, mas perderia toda a sua credibilidade caso descrevesse o encontro de um aspirante a mosqueteiro com o navegador genovês, nascido dois séculos antes. Dumas situa a trama do livro num momento histórico identificável, povoando-o de personagens cuja existência pode ser comprovada documentalmente, como o cardeal Richelieu e lorde Buckingham. Contracenando com estes, Athos, Porthos, Aramis e outros tantos saídos da sua imaginação. 

Assim, numa obra de ficção, o autor estabelece implicitamente os limites que entende aceitáveis para sua criação, um espaço dentro do qual sua imaginação se movimenta. Mas quando se trata de usar explicitamente as memórias pessoais na criação ficcional, a questão se complica. 

Graciliano Ramos escreve “Infância”, livro de memórias, anos depois do lançamento de “Angústia”, texto ficcional. Pelas páginas do primeiro desfilam personagens extraídos das lembranças infantis do autor. No segundo, personagens fictícios surgem revestidos com as características daqueles surgidos de sua memória. Por fim, em “Memórias do Cárcere”, Graciliano afirma que indivíduos que compartilham seu calvário durante o período em que amargou os cárceres getulistas são personagens que criou em “Caetés” ou no próprio “Angústia”, embaralhando definitivamente as referências. 

Processo semelhante ocorre com relação aos contos do escritor russo Isaac Babel. 

Babel lutou pelo exército vermelho após a revolução de 1917, assim como o protagonista das narrativas reunidas em “O Exército de Cavalaria”. Também como ele, Babel era judeu e combateu ao lado de regimentos de cossacos, conhecidos por seu orgulho, por serem excelentes cavaleiros e por seu ancestral anti-semitismo. Babel, além de intelectual, judeu, carregava outro estigma que atraía para si o ódio de seus camaradas de farda: usava óculos. Seu prestígio literário atingiu o auge com a publicação de “O Exército de Cavalaria”, em 1932, mas o escritor cairia em desgraça durante os expurgos stalinistas de 1937 e acabaria preso, morrendo em um campo de prisioneiros em 1941, provavelmente fuzilado. 

A biografia do escritor registra os fatos acima. Seus contos narram as experiências de um soldado durante a campanha russa na Polônia. Em “A Morte de Dolguchov”, um dos grandes contos do autor, é descrita a revolta de um comandante cossaco contra outro, incapaz de pôr fim ao sofrimento de um camarada que agoniza. Em “O Peru”, o narrador tem que usar de violência contra uma velha camponesa para adquirir o respeito dos comandados que o desprezam. No belíssimo “Gedali”, Babel narra a experiência de um soldado judeu, perdido entre os dogmas da Internacional Comunista e os apelos ancestrais de sua religião. Até que ponto é possível separar esses relatos ficcionais das reminiscências do escritor? Ou antes: Por que fazê-lo? 

Nos contos de Babel, as cenas de violência descritas com a crueza de um balé mórbido, os dramas da indiferença diante do sofrimento e da desgraça, narrados “com uma poesia raramente vista em textos em prosa”, e as raras fugas à objetividade crua, que brotam com a intensidade de confissões, coroam-se com imagens que o crítico Lionel Trilling chama de “epifanias”. O dicionário Aurélio define epifania como: “manifestação ou percepção da natureza ou do significado essencial de uma coisa”. Assim, o escritor parece mergulhar em suas memórias para extrair delas um feixe de revelações, coroando os acontecimentos com uma luminosa compreensão sobre as vidas de seres sujeitos aos extremos da dor. Nesse sentido, ocioso distinguir o quanto de ficção e de fatos reais compõem os contos de “O Exército de Cavalaria”, textos mergulhados na força de sua própria verdade.

BABEL, Isaac. O Exército de Cavalaria. São Paulo: Cosac Naify, 2006, 259 p.

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