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27 de setembro de 2021

Uma Estrela entre a beleza e a loucura: Chico Lopes



Tenho certeza de que, se um leitor jovem, da atualidade, for perguntado sobre quem foi Vivien Leigh, pensará muito para responder e, pensando muito, não responderá. Mas, se tiver alguma informação e interesse por Cinema, saberá quem foi Scarlet O´Hara. 

A heroína de “...E o vento levou” era – e talvez continue sendo (mas não para muitos, como no passado) a personagem feminina mais famosa da história do Cinema. E foi encarnada por Vivien. Quanto à atriz, porém, reina confusão: outro dia um conhecido meu jurava que quem fazia Scarlet era...Janet Leigh. Sua memória estava parcialmente certa, mas ficou espantado quando o corrigi. Perguntou, perplexo: “Quem é essa Vivien?”

Esse esquecimento é injusto porque nunca uma atriz serviu com tanta perfeição a um personagem. 

Reza o folclore da produção que seu produtor, o megalomaníaco David O. Selznick (que, entre outros diretores, atormentava Hitchcock com sua prepotência), em busca da atriz que encarnasse a heroína do romance popularíssimo de Margaret Mitchell, fez testes com atrizes consagradas da Hollywood dos anos 30 (Bette Davis entre elas), mas as filmagens já estavam sendo iniciadas e ele não havia ainda encontrado a atriz que queria. Sem saber o que fazer, foi filmando a produção já lá pelo meio, com o espetacular incêndio de Atlanta e dublês de Scarlet e Rhett Butler atravessando as chamas com carroças (quem se lembrar do filme, lembrará da cena, certamente). Myron Selznick, seu irmão, apareceu no pandemônio das filmagens com uma mulher desconhecida pelo braço. Apresentou-a para David: “Gênio, eis sua Scarlet O´Hara...”

Vivien era apenas uma atriz inglesa que ainda não era muito conhecida na América. Estava em Hollywood acompanhando o amante, Laurence Olivier, que fora para lá filmar “Rebecca”, também para Selznick. Na Inglaterra, Vivien tinha abandonado o marido para viver com Laurence, o que não escandalizava muito os ingleses, mas, na América, era um fato que precisava ficar em segredo. Ela lera o livro de Mitchell, e, em Londres, concebera o plano mirabolante de interpretar Scarlet na tela. Estava predestinada ao papel, sem dúvida alguma. Preparada para ser um mito.


TROCANDO O CINEMA POR OLIVIER

É impossível não admirar Vivien. Não fosse pela beleza e pelo talento de atriz, teria que ser admirada pela integridade, pelo caráter independente. Teve tudo aos pés, literalmente, pois, nos anos 40, depois do sucesso esmagador de “...E o vento levou”, foi certamente a estrela de cinema mais famosa do mundo. 

Mas o Cinema não a interessava tanto quanto o Teatro. Para desespero dos fãs eternos de Scarlet, não deu muita importância à carreira cinematográfica, rejeitou um papel atrás do outro e fez, sem acreditar nele, o papel de uma bailarina que se torna prostituta no melodrama “A ponte de Waterloo” para a Metro. O filme é um anacronismo lacrimejante, mas, quando a gente o revê, revendo Vivien, acredita-se piamente naquela tragédia, porque ela era perfeita para fazer mulheres trágicas e engole todo o resto, incluindo o galã, o apenas bonito Robert Taylor.

Vivien se lixava para os filmes. Queria era representar no palco ao lado de seu homem e seu ídolo, Olivier. Com ele, realizou incontáveis interpretações de textos de Shakespeare. Admirava o amante mais que tudo no mundo.

Mas havia aí um problema, um desses cenários atormentados apenas suspeitados por trás de casais onde os dois têm grande talento: nunca se sentia inteiramente à altura dele, um narcisista implacável. E ele a invejava porque, na tela, nunca conseguiu tornar-se um mito como era no palco. Vivien se tornou um mito do cinema, ele não. Portanto, por compensação, era muito exigente em seu território: o teatro. Vivien se arrebentava para ser elogiada por ele, colocando-se numa posição de dependência obviamente neurótica. Uma relação infernal entre dois egos imensos. Eram, àquela altura, o casal de atores mais famoso do planeta.

DIVA MANÍACO-DEPRESSIVA

O que informo aqui, soube pelo livro “Vivien Leigh”, da biógrafa Anne Edwards, lançado há muito tempo (anos 80) pela Francisco Alves e encontrável, hoje em dia, apenas nos sebos. Não tem outro interesse além de ser a biografia mais acessível de Leigh que há por aí, porque Edwards é uma escritora chata e dispôs o material, que poderia ser palpitante, de maneira muito reverente e árida.

Mas a personalidade de Vivien consegue sobreviver ao livro. O caso complicado com Olivier é mais sugerido, em tudo quanto devia conter de infernal, do que relatado cuidadosamente. É possível que Olivier tenha carregado até a morte a culpa de ter atraído para si aquela mulher, que abandonou um casamento convencional sólido, com uma filha, para segui-lo nos palcos. Que fazer? Homem algum teria resistido heroicamente a ser admirado por Vivien, linda daquele jeito. Mas o pior veio depois que eles estavam há bom tempo juntos, quando ela passou a ter crises de psicose maníaco-depressiva.

O grande público mal podia suspeitar que sua eterna “Scarlet O´Hara” tinha surtos de loucura. Sempre finíssima e aristocrática, Vivien, ao “surtar”, tornava-se uma mulher debochada, histérica, que às vezes até queria se despir em público e era contida à força por amigos. Ficava agressiva, assustava os colegas de palco, se desesperava, caía em prostrações que duravam dias e, depois de ter destratado e insultado meio mundo com uma infinidade de palavrões, se arrependia e mandava flores e presentes aos ofendidos. Não bastasse isso, tinha períodos de ninfomania. Marlon Brando, que fez com ela “Uma rua chamada pecado”, sabia que ela “traçava” com freqüência os atores com os quais contracenava, traindo Olivier. Em respeito ao grande ator, conteve-se. É o que ele diz em sua autobiografia “Canções que minha mãe me ensinou”.

Até onde isso é fofóca, quem algum dia saberá? O certo foi que Vivien Leigh estaria tendo um caso também com o ator Peter Finch, com quem começou a filmar, em meados dos anos 50, no Ceilão, o filme “O caminho dos elefantes”. Teve um de seus surtos e abandonou a produção. Para substituí-la, contratou-se Elizabeth Taylor, devido à sua semelhança com ela. E o filme ajudou Liz em sua carreira de estrela dos anos 50.

Mas foi ao lado do Brando em “Uma rua chamada pecado” (triste versão brasileira para “Um bonde chamado desejo”) que Vivien fez seu segundo grande papel na tela. Curiosamente, encarnando outra dama sulista, mas certamente muito mais mórbida e neurótica. Sua Blanche Dubois é perfeita, embora quem reveja o filme hoje em dia talvez ache a interpretação muito teatral. Vivien não é “naturalista”, não é adepta de “less is more”, não procura imitar a realidade sendo displicente e à vontade. Como toda atriz que se arrisca em patamares mais elevados, parece exagerar, mas é porque está lidando com material artístico de feitura mais exigente e traz à vida, com tanta ternura e força, a personagem de Blanche, que o texto poético de Tennessee Williams nunca encontrou uma intérprete tão definitiva. Pauline Kael dizia que, ao lado da de Falconetti para a “Joana D´Arc”, de Dreyer, essa era a maior interpretação feminina existente na história do Cinema.

Depois disso, a verdade é que não há nada muito notável de Vivien na tela, e é quase certo que o público tenha se esquecido de filmes como “Profundo mar azul”, “Em Roma, na primavera”, “A nau dos insensatos”. Já estava madura, aquela mulher, não tinha mais a fantástica atração de Scarlet e mesmo, em certa medida, a de Blanche Dubois, a despeito da carga de desespero deste personagem que certamente não é tão popular quanto Scarlet.

Sem grandes sucessos no cinema em seus últimos anos, Vivien se voltou muito mais para o teatro, seu amor maior. Mas Hollywood nunca a esqueceu. Aliás, Vivien é a matriz de certo tipo de estrelas que o cinema de Hollywood sempre procurou e consagrou: a mulher clara, mas de cabelos negros e de olhos intensamente verdes ou azuis fazendo um contraste adorável. Heddy Lamarr, Elizabeth Taylor, Jean Simmons e outras tinham acentuada semelhança com ela. Era como se Hollywood, não podendo tê-la, se empenhasse em substituí-la, até mesmo inconscientemente. Atualmente, todo mundo reconhece com naturalidade que, por trás do tipo, reina a esquecida Vivien. Haveria dificuldades para fazer uma cinebiografia, no entanto. Que atriz seria bonita e talentosa à altura dela? Não Kate Beckinsale, atriz inglesa atual que tem o tipo, mas certamente jamais encarnaria Vivien com justiça. É engraçado ver no recente “Uma semana com Marilyn”, a atriz Julia Ormond tentando encarnar Vivien com um fracasso constrangedor. Julia não é nem bonita nem talentosa o suficiente para sugerir a beleza de Vivien, que atingiu um status lendário.

Ela morreu em 1967, esquecida pelo cinema. Tinha se separado de Olivier havia muito tempo, porque o ator não tolerava mais suas crises. Cercada de admiradores, chegou a passar pelo Brasil dos 60 com a companhia teatral inglesa Old Vic.

Morreu de tuberculose, na mais clássica adequação à sua aura de heroína romântica. Com aquele rosto e aquela classe, imortalizados numa fotografia de Cecil Beaton que o livro de Edwards traz, ela foi uma diva ajustada à perfeição aos ideais de poetas e pintores. Mulheres com sua fragilidade e aura de delicadeza (sob as quais reinava uma grande turbulência) já não existem mais no cinema.

Nascera para musa. No que isso tem de mais belo, inspirador e trágico.

Chico Lopes é autor do romance "O estranho no corredor", debatido no clube de leitura em 3/5/2013


4 comentários:

  1. Pensarei nisso amanhã!Hoje eu vou comemorar o cine-CLIc!

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  2. "...quem foi Scarlet O´Hara." Chico Lopes, esta é a minha personagem de cinema preferida, sem dúvida.Nos momentos difíceis, é dela que me lembro,com aquele punhadinho de terra nas mãos, esperança e vontade imensas.Parabéns ao cLIc por contar com sua colaboração!
    Viva o cinema e literatura unidos!
    Elô

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  3. "..quem foi Scarlet O´Hara. " Minha inesquecível e preferida personagem! Parabéns ,Chico Lopes, por sua etreia, no Blog do CLIc, com ela. Viva o cinema e a literatura unidos pela escrita de nosso amigo Chico Lopes.Muito honrados!
    Adorei ler vc aqui.
    Elô

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  4. Chico,
    É impressionante o seu conhecimento cinematográfico, memória prodigiosa para nomes e datas!
    Quando vi, aos dez anos de idade, "...E o vento levou", na TV, fiquei deslumbrada, embora não o compreendesse perfeitamente. Tenho ainda na memória aquele tom rosado que envolvia a atmosfera da película, uma memória sinestésica. Era colorizado ou defeito na minha TV?
    De todo modo, foi precisamente esse filme que posteriormente (não me lembro por quais razões, talvez a temática, mas recordo-me claramente da remissão a ele) à leitura das irmãs Brontë e, depois, Jane Austen.
    Gostei muito deler mais sobre a mítica Scarlett O'Hara!
    Abraços, meu caro,
    Vanessa Maranha

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