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21 de setembro de 2021

Meu Dom Quixote

 

 



Meu Dom Quixote(*)

Carlos Benites

Recebi bem cedo pelo Correio um Dom Quixote, que esperava há várias semanas. O atraso era decorrente da pandemia. O romance de Cervantes era um sonho de consumo que carregava há muitos anos. Comprei uma edição de 1940, de quase oitocentas páginas, do  sebo de um amigo livreiro de Recife.  Aberta a embalagem, ainda meio sonolento, além da bem cuidada capa vermelha, uma longa dedicatória na folha de rosto me chamou a atenção.

Rui. Quando neste fixares o seu olhar, lembrarás que a instrução é a mais sublime arma que o homem dispõe na terra. E para te aperfeiçoares, ofereço-te uma obra escrita pelo ídolo da juventude culta, esperando que sirva de marco inicial de uma preciosa existência.    Seu tio Antonio, 10-12-43

Na página seguinte, havia uma assinatura: Rui Lopes de Castilho.

Eu sempre tive paixão por dedicatórias e anotações em livros antigos. Adoro imaginar as histórias que o dono do livro teria vivido. Nesse caso, seriam duas histórias, do tio e do sobrinho. Ajeitei a almofada na poltrona e nela encostei a cabeça. Peguei o celular e visitei o sítio da Hemeroteca da Biblioteca Nacional para pesquisar nos periódicos antigos se havia alguma notícia sobre os personagens daquela dedicatória.

Os sobrenomes não eram tão comuns. Haveria homônimos? Se fizeram algo notável, poderiam ter estampado alguma notícia. Seria o tio um advogado famoso? Seria o sobrinho um médico que salvou vidas no incêndio do circo de Niterói?

O primeiro dado encontrado datava de 1950, infelizmente no Obituário. Antonio Lopes de Castilho, amado pai e avô. Foi um baque. Seria o tio? Ficaria sem saber sobre ele. Continuei. E, na busca, um ano depois, O Fluminense noticiou matéria com o título “Duplo atropelamento na capital fluminense”. Temi em ler a notícia, mas tomei coragem:

O automóvel dirigido por Ari Correia, de 23 anos, morador de Santa Rosa, trafegava em desabalada carreira pela Avenida Amaral Peixoto, quando nas proximidades do edifício do Polícia, atropelou a senhora Alda Torres, de 49 anos, que veio a falecer no local. Na ânsia de fugir, o motorista atropelou o jovem Rui Lopes Castilho, solteiro, 21 anos, que caminhava distraído com um livro na mão. Após colidir com um poste, Ari foi cercado por populares e algemado por policiais, que chegaram em segundos e evitaram o linchamento do motorista. O jovem Rui foi socorrido e levado ao Hospital São João e está salvo. Ao “Fluminense”, contou sobre o susto que tomou, mas confia na recuperação. Disse ainda da tristeza de perder o livro que carregava. 'Presente de um tio'.”


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(*) O presente conto foi selecionado entre os finalistas na categoria "Contos" do Prêmio Off Flip de 2021. Esta versão é a primeira. A versão que enviei para o concurso e que saiu publicada na coletânea, sofreu pequenas modificações, para atender as exigências de formatação do concurso.

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