Fundado em 28 de Setembro de 1998

20 de abril de 2020

Mise en Abyme e as Pequenas Maravilhas Especulares: Roberto Pedretti





Durante a live que inaugurou o projeto "Para Ler o Século...", na última quinta-feira, Evandro Paiva De Andrade, grande leitor e fomentador literário que conheço de longa data, colocou a questão sobre o possível pioneirismo de André Gide no "mise en abyme" na literatura francesa com "Os Moedeiros Falsos". Na ocasião, respondi que Huysmans o precedia em algumas décadas no recurso, e no entusiasmo de falar de Huysmans, não falei sequer o que era o recurso. Grande falha, e maior ainda porque só depois fui constatar que ao próprio André Gide é creditada a invenção do termo. Não sabia disso.


De fato, o recurso é imemorial. Entre autores daqui costuma ser apelidado de "Boneca Russa", as matryoshkas que começam às vezes imensas, para conter bonecas cada vez menores em seu interior. Do ponto de vista da autoria, elas servem para "descarregar" pequenas peças narrativas no interior da narrativa principal, na esperança, nem sempre realizada, de que elas se conectem semioticamente em algum momento.

Como isso funciona na mente do autor? Enquanto estava no processo de construção cuidadosa de sua narrativa principal, chega essa história errática. Ela é curta, sucinta... mas ao mesmo tempo é sedutora, pungente, tem impacto. Ele poderia inclui-la num futuro livro de contos, mas não gostaria de perder o impacto emocional que existe pelo fato de que ela surgiu conectada com aquela na qual ele trabalhava prioritariamente. Qual é a solução? Colocá-la ali, na fala de um personagem, numa notícia de jornal, no tecido colateral do romance - na esperança de que ela reencontre o trilho principal a seguir.

A primeira boneca russa de que se tem notícia está n"As Mil e Uma Noites", compiladas lá pelo século IX - há que ressaltar o quanto a língua árabe trouxe a todas as línguas românicas inovações de escrita que achamos incrivelmente contemporâneas sem nos darmos conta. Todo o primeiro livro é uma sequência vertiginosa de parênteses que se abrem e fecham em sequência. E se para nós é preciso ter atenção ao ler, imagino a atenção que nossa protagonista, Scherazade, precisava manter para não perder a atenção do príncipe que mantinha a espada sobre seu pescoço.

Respondendo a Evandro, enfim, posso dizer que nem considero que os moedeiros falsos faça propriamente uso do mise en abyme - isso justamente porque Gide era organizado demais. As conexões entre as narrativas intrusas e a principal são muito evidentes, muito utilitárias. O naufrágio do Bourgogne narrado por Lady Griffith, o romance postiço de Édouard, as observações de biologia marinha de Vincent - todos esses episódios mostram sua função para o romance quase imediatamente. Logo, mostram-se rapidamente integrados na tapeçaria narrativa, e não "colapsados" ali.

Tenho frequentemente a impressão de que André Gide é organizado demais para deixar grandes pontas soltas. Por isso Les Faux Monnayeurs é uma obra sem retoques. Foi pensada longamente o bastante para ser sólida como um monumento.

Se isso é bom ou ruim,claro que cabe a cada leitor refletir a respeito.

Um comentário:

  1. Salve, Pedretti, salve Evandro, meu eterno concièrge. Muito bom saber da troca fecunda entre vocês, o que sempre nos abrilhanta.
    No tocante às bonecas russas, será que elas também carregam uma forma de conexão com nosso lado criança, despertando a curiosidade, o interesse, a vontade de aprofundar o conhecimento para então ter acesso ao que se lapida? Vejo uma conexão com o profundo, a alma, o cerne de tudo, não sei.

    ResponderExcluir

Prezado leitor, em função da publicação de spams no campo comentários, fomos obrigados a moderá-los. Seu comentário estará visível assim que pudermos lê-lo. Agradecemos a compreensão.