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6 de julho de 2023

Mar azul: Paloma Vidal


Revertere ad locum tuum


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Até Papai Noel foi ver o mar azul... 








"cozinhar corre o risco de se tornar um dos modos da memória. Por sorte o tipo de concentração que a tarefa exige deixa pouco lugar para que a mente fuja. No máximo são voos curtos que têm como motivação sentidos mais fugazes como o que desperta um cheiro ou uma urdidura."




"O café da manhã, o maiô, a camiseta, o short, os chinelos, o pátio, a rua e um passo depois do outro. Essa ordem poderia ter levado o dia para que a noite me dissesse se a visão inusitada de horas atrás havia sido uma ocasião nova ou uma interrupção na sequência de sempre.
...
Ele imaginava as palavras como ventosas que se grudariam às coisas para salvá-lo do que o esperava."



"As mantas, os lençóis, as almofadas, uns sobre os outros, numa desordem calculada para criar um terreno próprio, macio, abafado, como o corpo de um bicho sobre mim, me protegendo do mundo. Esse espaço em outra época foi uma forma de estar longe do alcance dos meus pensamentos. Não é esse um ideal, simplesmente estar no mundo, como o ar?"







"... quando chegamos ao nosso destino havia no para-choque um pequeno pássaro morto. Nós o tínhamos atropelado. Ele estava grudado na lataria do carro. Me surpreendeu tanto sua posição rígida, com as asas e as patas muito abertas, que demorei a assimilar que ele estava sem vida.
...mas que havia uma vida que continuava. Não uma vida depois da morte, mas a vida mesma, que não me pertence, como o mar não é dos peixes."




Ainda assim na minha memória há lugar para sua generosidade. Afinal nesse silêncio ele me deixava livre. Havia um espaço de visão que era meu e tudo o que um pai poderia ter me ensinado não se equivaleria ao que virtualmente me era oferecido quando ele preferia não dizer nada. 




Solitária numa cidade estrangeira, uma mulher no começo da velhice se dedica a tarefas corriqueiras. Observa o voo dos pombos no pátio, frequenta a piscina, marca consultas médicas que considera cada vez mais urgentes. Mas, dentro de casa, empreende uma atividade peculiar, quase clandestina: lê os diários de seu pai. E escreve suas próprias linhas nos versos das páginas. O contato entre as duas grafias vai desvelando as pistas de uma história sempre incompleta.

Mar azul retoma alguns dos elementos que consagraram Paloma Vidal como uma das vozes mais marcantes da prosa brasileira contemporânea. A memória – zona opaca de elipses e de impasses – é pedra de toque para uma trama que nunca se deixa ver por inteiro. No compasso melancólico de um cotidiano marcado pelo exílio, o passado ressurge em fiapos, peças de um quebra-cabeça naturalmente movediço, no qual os nomes de personagens e cidades, a cronologia ou os fatos não exigem evidência; em geral, não passam de insinuações.

A ausência e o luto, a distância e o esquecimento pairam sobre Mar azul. Apenas a água, o oceano e as lembranças de uma viagem à praia parecem um norte possível, alento para a dificuldade de fixar afetos e decifrar as próprias dores. A solidão – fruto do hábito paterno de estar sempre de partida – aproxima a protagonista de Vicky, que se tornará sua melhor amiga. É a experiência desse convívio que abre o livro, cujas primeiras páginas são tomadas por fragmentos de diálogos entre as duas, ainda adolescentes.

São diálogos forjados pelo constante jogo de revelar e esconder, inquirir e insinuar, contornar o perigo e as ameaças secretas com um jeito ora titubeante, ora luminoso. Nesse jogo, perseguem a dúvida como elemento precioso e aflito da intimidade, enquanto refletem a identidade, marcada simultaneamente por vertigens de silêncio e ímpetos de violência, de quem foi jovem na América Latina, em algumas décadas do século passado.


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