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25 de fevereiro de 2022

A tragédia brasileira: Sérgio Sant'Anna



A garota devolve a Cristo um sorriso puro de dentes branquíssimos e é esse sorriso que exorciza de verdade o Demônio, que pode ser visto num relance, a afastar-se de Cristo na forma de uma velha beata e corcunda que sai de cena resmungando, com o rosto escondido por um xale.  Cristo percebe, nesse momento, que o Demônio era uma presença dentro dele próprio e não da garota.


Já com Buda não pode haver Demônio, pois ele próprio é, simultaneamente, Deus e o Demônio. Não lutando contra ou a favor de um ou de outro, Buda permite que os dois opostos dentro de si estejam conciliados e não em conflito.



A alavanca de mudança é um símbolo fálico. (Freud)



Também diante de Buda, agora, no espaço cênico, passam guerreiros. São guerreiros chineses e dirigem-se a derrubar uma dinastia. Vêem Buda, a princípio, com o desprezo com que o forte examina o fraco. Por puro tédio, ou crueldade, um daqueles guerreiros aproxima-se de Buda, desembainha a espada e pensa em atravessar com ela as carnes flácidas de Buda. Buda, que sabe ler a alma de um homem, pressente o perigo, mas se limita a cheirar uma flor e, nesse instante limítrofe da morte, descobre novas sutilezas na fragrância da flor. Pois é a possibilidade de morrer que faz Buda tornar-se ainda mais atento, embora sem intencionalidade, a seus sentidos. E ele sorri para essa nova oportunidade de penetrar no âmago da vida. Buda sopra a flor e suas pétalas voam ao vento. Buda sabe que nenhum homem é tão forte que não se defronte um dia com algo mais forte do que ele. E, como as pétalas de uma flor, às vezes a maior força de um homem é deixar-se ir, carregado pelo vento. 
O guerreiro chinês dá uma gargalhada, porque captou num relance a mensagem de Buda. Ele e seus companheiros, agora, estarão carregando Buda consigo para a China e o Japão e, sendo guerreiros, serão como uma revitalização de Buda. Atravessarão impiedosos os inimigos com as armas e, ainda assim, serão como Buda. Buda é todos os homens e assim passa por todas as provações e sentimentos deste mundo; deve-se sentir como o vencedor e como o vencido. Deve descer ao inferno, como Cristo em suas dúvidas, e ser o espectador e participante de acontecimentos tão terríveis quanto o de uma criança que perdeu os pais e mutilou-se numa guerra que não é sua. E que permanece ali, à margem, desamparada e sem nenhuma probabilidade de ter esperança. Mas é também nesse terreno que pode germinar a paz, o Nirvana, de Buda. Antes, porém, sentirá o gordo Mestre, diante de tal espetáculo, o desespero e a revolta contra o Poder Supremo. Até que, por exaustão, conheça que não há Poder Supremo a dirigir o Grande Espetáculo e que Deus - ele próprio, Buda - é apenas o fluir assim, eterno, daquilo que é comparado a um rio. 

Maomé e seus seguidores, ao contrário, combaterão pelos tempos afora o Mal e o Demônio, como se fosse possível aniquilá-los um dia. No Corão busca Maomé, através da certeza, a morte de toda angústia. Sem se dar conta de que o Mal e o Demônio se encaravam dentro dele mesmo e que, para destruí-los, deveria degolar a própria cabeça e não dos infiéis. 


Maomé e seus discípulos jamais beberão uma gota de vinho, porque esse vinho soltaria o Demônio tão sufocado dentro deles e os deixaria enlouquecidos. 

"Estou me acostumando com a ideia de considerar todo ato sexual como um processo em que quatro pessoas estão envolvidas" - (Freud)


O poeta é aquele que em primeiro lugar decifra, mergulha, (n)aquilo que ainda se encontra invisível para seus semelhantes. 

Na foto o Cliceano que indicou o romance-teatro
Entreatos
Dezoito anos depois, A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, é uma representação quase perfeita do país nas últimas décadas  
A primeira impressão provocada por A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, é a de que estamos diante de uma obra datada. Com uma trama que se passa em 1962, o livro foi publicado com uma tiragem reduzida pela Editora Guanabara em 1987 — um tempo em tudo distante do que vivemos agora, em 2005. A passagem do tempo, entretanto, acaba contando a favor deste livro definido como um “romance-teatro”, numa feliz convergência entre suas técnicas narrativas, o acaso do mercado editorial e a própria história do Brasil nestas últimas quatro décadas.
Dividido como uma peça de três atos, o livro tem justamente nas suas várias gradações, internas ou externas, seu elemento-chave. No primeiro ato, predomina a linguagem teatral, embora seja evidente que o palco a que Sant’Anna recorre não se presta à representação cênica; ele é uma fórmula que serve para agregar novos recursos à narrativa. É por meio dessa dramaturgia imaginária que se conta, logo de início, a história do atropelamento da menina de 12 anos Jacira, morta pelo personagem do Motorista quando lhe despontavam os pequeninos seios, surgiam as penugens púberes, manchava-se o vestido de sangue pela primeira vez.
Não faltará o erotismo típico de Sant’Anna, que vai de um tom rodriguiano de dessacralização da inocência até um mais provocador, com um pouco de pedofilia, e resvala em sugestões de necrofilia. Aqui e ali, apresenta-se um pouco daquele país que saía do pós-desenvolvimentismo de JK, preocupado com a contusão de Pelé na Copa do Chile e em dúvida se a solução para o Brasil estava nas mãos de Deus ou nas dos militares. Perguntas de quem se pôs a escrever duas décadas depois, quando já se tinha passado pela ditadura e o país do futebol andava meio traumatizado com o jejum de títulos.
Novas possibilidades, então, vão surgindo. À medida que Sant’Anna investe mais na prosa, desenham-se outros cenários e personagens. No segundo ato, Jacira se confunde com a atriz que a representa; o Negro misterioso, que espreitava a menina de um terreno baldio, reaparece como contra-regra; e o melancólico e apaixonado Poeta Roberto, que de sua janela viu a tragédia, mostra ser, em parte, uma idealização pessoal do demasiadamente humano Autor-Diretor, que é, lá pelas tantas, um eco do próprio Sant’Anna.
A partir do terceiro ato, a encenação se apresenta mais como ideia, e é quase como um romance de ideias que se cria um terceiro nível de ficção, em que já não há mais limites: unem-se as pontas da dramaturgia e da prosa, da representação e da “realidade”. Como num círculo, voltamos à tragédia por meio de Maria Altamira, Virgem pura transformada em estrela radiante no momento em que estava também prestes a deixar a infância, atropelada por um Motorista de caminhão na Belém-Brasília — um dos símbolos de uma já antiga concepção de progresso e, também, esboço de metáfora religiosa.
Já aqui, na própria narrativa, as perguntas são outras. E hoje, quase 20 anos depois de o livro ter sido escrito, temos tantas outras a acrescentar. No ato que encerra as três épocas da história da obra, a tragédia persiste. Orgulhosos de um futebol pentacampeão, também nos vemos — arrasadas de vez quaisquer ilusões políticas construídas desde os anos 80 — sem rumo. É como se Jacira renascesse e morresse perpetuamente, deixando no céu a luz de uma estrela incerta, que talvez leve a um lugar que não este.
BRAVO!, outubro de 2005
© Almir de Freitas




Existe algo à beira da possessão demoníaca no Islã. Como se o Fundador fosse um dos anjos aliados de Lúcifer que no último momento se houvesse contido. Esse anjo se embevecera com a arrogância de Lúcifer e sua beleza feminina, mas teve medo de Deus e do castigo. E também de um desejo seu, inexplicável e tido como terrível: o desejo da treva total que há dentro de um regaço feminino antes de um homem haver nascido. Mandou então que se cobrisse a beleza feminina e a rotulou para sempre como impura. Enquanto eles próprios, os homens muçulmanos, estarão condenados a cavalgar loucamente pelos tempos afora, brandindo a espada contra os infiéis. Fugindo, talvez, no eco das patas de seus cavalos, da parte de seu corpo e alma que é mulher.





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