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10 de julho de 2023

Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa


"Sertão, - se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem."




"Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é."

 "Pouco se vive, e muito se vê... – Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém..."

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou."


SOBRE O PRIMEIRO PARÁGRAFO DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

 

- Que nós rosianos leremos hoje em voz alta às 19 horas, para comemorar o 113o. aniversário de Mestre Guimarães Rosa 

 

Para ajudar a compreender, eis a minha interpretação desse parágrafo de abertura do livro: 

 

Muita gente pensa que "nonada" é uma palavra inventada por Rosa. Na verdade ela existe   e quer dizer "ninharia, insignificância". Aqui o narrador, cujo nome ainda não sabemos, conta ao doutor que o som de tiros que ele ouviu  não foram de "briga de homem", o que poderia redundar em mortes. Foi apenas o narrador fazendo treino de tiro, mirando em árvore, algo que ele pratica todos os dias "desde mal em minha mocidade". Com isso aprendemos que ele é um senhor de idade. Explica também ao interlocutor vindo da cidade, desacostumado com aquilo, que quando é tiro "de verdade", primeiro se ouvem os cachorros latindo e depois "se vai ver se deu mortos". Aqui o narrador já revela uma dupla intimidade com as armas: sabe utilizá-las e conhece bem o que resulta do seu uso, é um homem que em algum momento da vida lidou com isso. Aponta, portanto, um primeiro tema: a violência. Em seguida, o episódio do bezerro que "figurava rindo feito pessoa" traz uma questão central, que estará presente em todo o livro: a existência ou não do Diabo. Aqui, um fato excepcional, um animal com um aspecto não-animal e sim humano, é interpretado pelo povo como sendo uma manifestação demoníaca. Note que o narrador procura se diferenciar do "povo prascóvio", isto é, ignorante, tentando granjear a simpatia do doutor da cidade, que sem dúvida achava tudo aquilo uma bobagem. Diz inclusive que não tem "abusões", ou seja, que não é supersticioso, não tem crendices, o que é uma mentira deslavada, como veremos. Mas quando o doutor ri, o velho acha por bem repreendê-lo com delicadeza, alertando que o tema era importante: "O senhor ri certas risadas...". Embora o narrador diga não acreditar naquilo, o que veremos não ser exatamente verdade, ele mesmo dá um sinal claro do contrário: "eu não quis avistar". Por medo? De qualquer forma, é ele que empresta as armas. Ao afirmar para o doutor que aquilo é o sertão, que ali as coisas são assim, aparece mais um tema central: o sertão. Seus limites não estão claros, cada um tem uma opinião sobre onde ele começa. Mas essa opinião é relativa, literalmente, ao ponto de vista de cada pessoa. Para uns o local onde está a fazenda não seria sertão, que só começaria bem mais ao norte, nas terras altas do rio Urucuia. Já para os que vivem mais ao sul, em Corinto e Curvelo, ali é sertão sim. Aqui, disfarçadamente, ele apresenta a perspectiva relativista ("pão ou pães, é questão de opiniães"), muito importante no livro. Mesmo assim, há características inegáveis no sertão. A primeira é a escassez de habitantes, muito espelhados por um imenso território, onde alguém pode atravessar quase cem quilômetros "sem topar com casa de morador". A outra seria a ausência de uma autoridade firme, de uma presença efetiva da lei. Por isso, sertão é "onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade." Ou seja, é onde muitos criminosos vêm se refugiar fugindo da lei. Veremos que no sertão o que manda e comanda é a lei do mais forte. Por fim ele volta a falar no rio Urucuia, nas pastagens, culturas e florestas que lá existem. O Urucuia, como iremos ver, é um rio de predileção para Riobaldo. Em volta dele, correm os gerais "sem tamanho", os campos do planalto central cobertos de grama, vastos e pouco habitados. O fecho deste primeiro Passo é surpreendente: "O sertão está em toda a parte." É um salto do sertão real para o sertão metafísico. Ele nos diz que o sertão dele, embora descrito como o sertão realmente existente – e Rosa será incansável com os detalhes – é, na verdade o cenário para o debate de questões universais, presentes "em toda a parte". Voltando à palavra inicial, "nonada". Por trás da humildade mineira, esconde-se o propósito da criação, que inventa um mundo a partir do nada. Lembrando que a palavra fictio significa fabricar, criar, exatamente o que Guimarães Rosa vai fazer em sua obra. É preciso lembrar que o inventado não é sinônimo de falso, ele existe enquanto obra de arte. Como vai dizer o narrador mais adiante, acerca de um romance: "Nele achei outras verdades, muito extraordinárias." Em "A hora e vez de Augusto Matraga", uma novela maravilhosa que de certa forma antecipa Grande sertão: veredas, o narrador diz que determinado fato ocorreu exatamente como ele diz: "sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor." Portanto, se começamos no nada do papel em branco, agora tudo é possível.

 

(Marcos Alvito)





E se...Guimarães Rosa tivesse escrito A metamorfose?
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Nonada. Um vivente acorda com uma estranhez e o que vige é travessia. Antenas? Barata dentro do homem logo de manhãzim, bafo de baygon: coisa do demo, o que era são, vem a mão. Haja-o. As perninhas num faz-e-mexe. Nenhuma reprimenda fora do quarto, o sinhô seu pai e a irmã e-vém, não? Praga! O cuscuz, mire, ou o leite, mire-e-veja, já na mesa e o serzinho já nesse encosto de inseto, embaratamento e tontez. Diz o ditado: quem amanhece no chinelo ou é sonso ou é samsa. Samsamente sonso. (...)
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[Trecho de A hora e a vez de Augusto Barata]





“O SERTÃO ESTÁ DENTRO DA GENTE,
O SERTÃO ESTÁ EM TODA PARTE”






17/08/2017
19:00h

Varanda do Teatro da UFF







“Diadorim levantou o braço, bateu mão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope, para logo alcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo f’losofou: refugou baixo e refugou alto, se puxando para a beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orêlhas dele. Do vento. Do vento que  vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe – a briga de ventos. O quando um esbarra com o outro, e se enrolam, o dôido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo,
esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. – “Redemunho!” – o Caçanje falou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga da banda do mar…” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, no meio do redemunho…Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor não deve nunca de renovar. Mas, me escute. A gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e o Diadorim se riram também. Aí, tocamos.” (p.262)


NONADA!

O alemão Berthold Zilly foi o tradutor da última versão de Grande Sertão para o alemão. Quando estava em processo de tradução, o "Jornal Cândido", da Biblioteca Pública do Paraná, publicou uma entrevista com ele, que já havia traduzido para o alemão "Lavoura Arcaica", Os sertões e "O triste fim de Policarpo Quaresma. Deixo aqui a pergunta sobre a questão da palavra "nonada": 

- A primeira palavra de Grande sertão: veredas é “nonada”, um termo que tem um significado enigmático na boca de Riobaldo. O senhor poderia explicar como verterá ao alemão esse tipo de palavra, que, ao longo das mais de seiscentas páginas do livro, se prolifera?


- “Nonada” realmente é uma palavra-chave, com seis ocorrências no total em Grande sertão: veredas, a primeira abrindo o romance e a última, de certa maneira, fechando-o, já que ocorre na penúltima linha da última página. Esta palavra constitui, além disso, o antônimo ao último sinal gráfico do livro, que é o símbolo do infinito. Assim, o movimento da trama e das ideias de certa maneira vai do quase nada ao infinito. Assim como muitas outras palavras e frases do livro, esta é por um lado coloquial e quase banal, tão banal quanto o sentido dela, ou seja: “coisa sem importância, um quase nada”, sendo por outro lado palavra estranha, rara, enigmática, principalmente no início, sendo esclarecida depois, parcialmente, pelo contexto. Esta tensão entre o corriqueiro, o popular, o cotidiano por um lado e o estranho, o enigmático, o hermético, por outro lado, é também uma característica do romance todo. Aliás, diferentemente de muitas outras palavras do livro, esta não é um neologismo rosiano, pois é uma palavra popular e meio antiquada, caída em desuso hoje, que se encontra em vários autores do século XIX e do início do século XX, inclusive em Os sertões, de Euclides da Cunha. Como vou traduzi-la? Ainda não sei, estou procurando uma expressão mais ou menos equivalente que também seja curta e concisa, popular, meio datada, e que tenha, no plano sonoro, pelo menos um elemento repetitivo, já que “nonada” tem até dois fonemas repetidos, o “n” e o “a”. Infelizmente, em alemão não temos uma palavra equivalente em termos semânticos, estilísticos e fonéticos, diferentemente do italiano, que tem “nonnulla”, ou o francês, que tem “que nenni”, e também não posso fazer o que fizeram os tradutores para o espanhol, que simplesmente mantêm “nonada”, que é neologismo em espanhol, mas que funciona nesse idioma, já que tem aí uma qualidade auto-explicativa. Em quatro das seis ocorrências, a palavra “nonada” constitui uma frase, o que não facilita a tarefa do tradutor. Estou cogitando diversas soluções, mas nenhuma me agrada muito. Antes de tomar uma decisão sobre a tradução desta palavra introdutória do livro todo, tenho que ver como os possíveis equivalentes funcionam nas outras cinco ocorrências de “nonada”. Pois quando a gente traduz uma palavra-chave com várias ocorrências, a gente deve tentar manter essa isotopia, ou seja, a igualdade do meio expressivo em todas as suas ocorrências, para que ele possa ser identificado pelo leitor do texto-alvo como elemento estruturador e orientador, função que tem no texto de partida e que o tradutor precisa respeitar. Em outras palavras: é desejável traduzir “nonada”, nas suas seis ocorrências, sempre de modo idêntico.





Viver - não é? - é negócio muito perigoso!


2 comentários:

  1. Olá amigas e amigos do providencial e agradável Clube de Leitura Icaraí, aposto que vocês irão gostar do vídeo abaixo. Curtinho (cinco minutos) e substancial. Parabéns pra YUDITH ROSENBAUM e pra Casa do Saber idem.

    https://www.youtube.com/watch?v=MNASGOrgG5c

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