SOBRE O PRIMEIRO PARÁGRAFO DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS
- Que nós rosianos leremos hoje em
voz alta às 19 horas, para comemorar o 113o. aniversário de Mestre Guimarães
Rosa
Para ajudar a compreender, eis a
minha interpretação desse parágrafo de abertura do livro:
Muita gente pensa que
"nonada" é uma palavra inventada por Rosa. Na verdade ela
existe e quer dizer "ninharia, insignificância". Aqui o
narrador, cujo nome ainda não sabemos, conta ao doutor que o som de tiros que
ele ouviu não foram de "briga de homem", o que poderia redundar
em mortes. Foi apenas o narrador fazendo treino de tiro, mirando em árvore,
algo que ele pratica todos os dias "desde mal em minha mocidade". Com
isso aprendemos que ele é um senhor de idade. Explica também ao interlocutor
vindo da cidade, desacostumado com aquilo, que quando é tiro "de
verdade", primeiro se ouvem os cachorros latindo e depois "se vai ver
se deu mortos". Aqui o narrador já revela uma dupla intimidade com as
armas: sabe utilizá-las e conhece bem o que resulta do seu uso, é um homem que
em algum momento da vida lidou com isso. Aponta, portanto, um primeiro tema: a
violência. Em seguida, o episódio do bezerro que "figurava rindo feito
pessoa" traz uma questão central, que estará presente em todo o livro: a
existência ou não do Diabo. Aqui, um fato excepcional, um animal com um aspecto
não-animal e sim humano, é interpretado pelo povo como sendo uma manifestação
demoníaca. Note que o narrador procura se diferenciar do "povo
prascóvio", isto é, ignorante, tentando granjear a simpatia do doutor da
cidade, que sem dúvida achava tudo aquilo uma bobagem. Diz inclusive que não
tem "abusões", ou seja, que não é supersticioso, não tem crendices, o
que é uma mentira deslavada, como veremos. Mas quando o doutor ri, o velho acha
por bem repreendê-lo com delicadeza, alertando que o tema era importante:
"O senhor ri certas risadas...". Embora o narrador diga não acreditar
naquilo, o que veremos não ser exatamente verdade, ele mesmo dá um sinal claro
do contrário: "eu não quis avistar". Por medo? De qualquer forma, é
ele que empresta as armas. Ao afirmar para o doutor que aquilo é o sertão, que
ali as coisas são assim, aparece mais um tema central: o sertão. Seus limites
não estão claros, cada um tem uma opinião sobre onde ele começa. Mas essa
opinião é relativa, literalmente, ao ponto de vista de cada pessoa. Para uns o
local onde está a fazenda não seria sertão, que só começaria bem mais ao norte,
nas terras altas do rio Urucuia. Já para os que vivem mais ao sul, em Corinto e
Curvelo, ali é sertão sim. Aqui, disfarçadamente, ele apresenta a perspectiva
relativista ("pão ou pães, é questão de opiniães"), muito importante
no livro. Mesmo assim, há características inegáveis no sertão. A primeira é a
escassez de habitantes, muito espelhados por um imenso território, onde alguém
pode atravessar quase cem quilômetros "sem topar com casa de
morador". A outra seria a ausência de uma autoridade firme, de uma
presença efetiva da lei. Por isso, sertão é "onde criminoso vive seu
cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade." Ou seja, é onde muitos
criminosos vêm se refugiar fugindo da lei. Veremos que no sertão o que manda e
comanda é a lei do mais forte. Por fim ele volta a falar no rio Urucuia, nas
pastagens, culturas e florestas que lá existem. O Urucuia, como iremos ver, é
um rio de predileção para Riobaldo. Em volta dele, correm os gerais "sem
tamanho", os campos do planalto central cobertos de grama, vastos e pouco
habitados. O fecho deste primeiro Passo é surpreendente: "O sertão está em
toda a parte." É um salto do sertão real para o sertão metafísico. Ele nos
diz que o sertão dele, embora descrito como o sertão realmente existente – e
Rosa será incansável com os detalhes – é, na verdade o cenário para o debate de
questões universais, presentes "em toda a parte". Voltando à palavra
inicial, "nonada". Por trás da humildade mineira, esconde-se o
propósito da criação, que inventa um mundo a partir do nada. Lembrando que a
palavra fictio significa fabricar, criar, exatamente o que Guimarães Rosa vai
fazer em sua obra. É preciso lembrar que o inventado não é sinônimo de falso,
ele existe enquanto obra de arte. Como vai dizer o narrador mais adiante,
acerca de um romance: "Nele achei outras verdades, muito
extraordinárias." Em "A hora e vez de Augusto Matraga", uma
novela maravilhosa que de certa forma antecipa Grande sertão: veredas, o
narrador diz que determinado fato ocorreu exatamente como ele diz: "sem
mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso
acontecido, não senhor." Portanto, se começamos no nada do papel em
branco, agora tudo é possível.
(Marcos Alvito)
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Nonada. Um vivente acorda com uma estranhez e o que vige é travessia. Antenas? Barata dentro do homem logo de manhãzim, bafo de baygon: coisa do demo, o que era são, vem a mão. Haja-o. As perninhas num faz-e-mexe. Nenhuma reprimenda fora do quarto, o sinhô seu pai e a irmã e-vém, não? Praga! O cuscuz, mire, ou o leite, mire-e-veja, já na mesa e o serzinho já nesse encosto de inseto, embaratamento e tontez. Diz o ditado: quem amanhece no chinelo ou é sonso ou é samsa. Samsamente sonso. (...)
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[Trecho de A hora e a vez de Augusto Barata]
“O SERTÃO ESTÁ DENTRO DA GENTE,
O SERTÃO ESTÁ EM TODA PARTE”
17/08/2017
esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. – “Redemunho!” – o Caçanje falou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga da banda do mar…” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, no meio do redemunho…Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor não deve nunca de renovar. Mas, me escute. A gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e o Diadorim se riram também. Aí, tocamos.” (p.262)
NONADA!
Um dos livros desta minha vida.
ResponderExcluirOlá amigas e amigos do providencial e agradável Clube de Leitura Icaraí, aposto que vocês irão gostar do vídeo abaixo. Curtinho (cinco minutos) e substancial. Parabéns pra YUDITH ROSENBAUM e pra Casa do Saber idem.
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=MNASGOrgG5c