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29 de junho de 2014

Por que leio Paul Auster? - Roberto Pedretti


Não porque li ou lerei, mas porque LEIO constantemente, consistentemente, cada texto por ele publicado que me cai nas mãos, mesmo quando sou avisado de um certo "esgotamento temático" ou uma "tentativa frustrada de inovação"? No último mês dediquei duas semanas à leitura, entremeada com outras coisas de não ficção, de "Travels in the Scriptorium" e "Man in the Dark", reunidos numa edição inglesa pela Picador, com o nome de "Day/Night" - uma esperta sacada editorial que considera os romances, de fato siameses, como as versões solares e lunares um do outro. Lia no horário de almoço. Lia na fila do supermercado. Lia nos prolongados hiatos em que David engrenava no sono. Eu estava avisado das múltiplas insuficiências desses livros, quando comparados aos evidentemente grandiosos "New York Trilogy", "Moon Palace" ou "The Book of Illusions". Estava avisado e reparei em cada uma delas - muita repetição, algum tédio, algum cansaço, soluções pouco inventivas para as narrativas. Eu não os indicaria abstratamente a nenhum leitor de outros autores somente por indicar. Mas a verdade, é que em nenhum momento me passou pela cabeça interromper a leitura. Através do tédio ou de alguma decepção, eu avançava, confortado, abraçado por aqueles textos. 

Isso porque eu não estava propriamente avaliando livros isolados, se eram clássicos ou lixo, se eram inovadores ou derivativos: eu estava estabelecendo uma conversa.

Que posso fazer? Eu gosto da forma como Paul Auster escreve - não da forma como pensa, porque não posso garantir que ele pense da forma como escreve; como numa conversa, temos o prazer da conversação pelo que o conversador dispõe-se a exibir-nos. E o que ele me exibe é um mundo com o qual eu consigo me conectar, em sua melancolia, em sua absurdidade e, em medidas diversas, em seu senso de humor.

Eu tenho esta relação com outros autores (Haruki Murakami, Philip Roth, Gonçalo Tavares...), mas acho que com nenhum deles estabeleci esta conversa que tenho com Paul Auster, e talvez por isso hoje em dia eu tenha lido praticamente tudo que ele publicou (e já esteja me preparando para "Report from the Interior", um livro de memórias que promete ser arrastado e hermético para qualquer pessoa que não seja seu interlocutor, a partir do começo do mês).

Digo isso tudo porque suponho, sinceramente, que a diferença entre um leitor ocasional e um leitor consumado está nesta relação. 


O leitor ocasional procura as listas de mais vendidos ou mais premiados, ou aquilo sobre o que seu grupo está falando mais constantemente (o que está na moda entre seus pares) e entrega-se àquilo também ocasionalmente, insularmente, passando à moda ou à obra prima seguinte assim que surge a oportunidade, e quando ele é conclamado a falar sobre o que leu, pode vestir-se da autoridade dos críticos que consultou a respeito do que deveria achar, e passar ao autor seguinte depois de ter feito seu comentário erudito do dia. Este leitor ocasional pode passar a vida toda neste expediente sendo permanentemente considerado uma referência cultural para todos à sua volta - pode ser a forma como ele conseguiu e mantém seu emprego, pode ser a forma como ele se diverte, pode ser a forma como ele conquistou sua atual esposa. E ele terá feito por merecer! Ele terá se esforçado, feito seu dever de casa, e não há nenhum desmerecimento moral embutido em ser um leitor ocasional - assim como não há nenhum engrandecimento moral em ser um leitor consumado. As pessoas apenas são o que são. Mas arrisco dizer que o último detém ao menos um segredo importante, que é uma bizarra capacidade de burlar a solidão.


Escolhemos certos autores pela capacidade que têm de levar-nos a determinados lugares a que estamos predispostos. Quando abro um livro do já citado Murakami, eu sei aonde ele pretende me levar - a um mundo onde o que conhecemos como realidade se volatiliza, mas onde os sentimentos são verdadeiros e, muitas vezes, dolorosamente contidos. Caso ele não me leve até onde pretendo ir, eu não pretendo me sentir traído, mas incorporar o novo desvio ao “longo diálogo” (um pouco da “conversa infinita” de Maurice Blanchot), e aguardar até que essa nova perspectiva tenha seus desdobramentos num momento futuro.

Essa longa conversa está na forma como estabelecemos relações de confiança com os músicos, diretores e mesmo atores cujas realizações seguimos ao longo dos anos. E isso nada tem a ver com obsessão - eu não pretendo conhecer pessoalmente Paul Auster e, para ser franco, não há nenhuma pergunta em particular que eu queira fazer caso ele se sente para bebermos uma taça de vinho num restaurante do Brooklyn. Até onde me consta, ele pode ser um grande chato pessoalmente. Talvez ele responda, com seus livros, a uma parte muito chata de mim mesmo que é suavizada justamente porque ele a exorciza para mim. Vá saber!

O que sugiro a todos é verificar se são leitores ocasionais ou consumados – ou se são de um tipo agora, mas tem o potencial de ser de outra forma. Se estão abertos às novidades, ou apegados às mesmas sensações proporcionadas pelos mesmos autores ou seus derivativos. Se estão dispostos a estabelecer uma relação com uma obra de longa duração, ou se sentem-se tentados pelas luzes brilhantes de uma “nova visão revolucionária de tudo que nos rodeia”, ou mesmo oprimidos pelas bocas torcidas de nossos pares, enunciando elegantemente que estamos lendo um sujeito “fora de moda”. Quero aqui mencionar que há reveses e delícias em ambos os campos...

Por enquanto, lá vou eu para “Report from the Interior”. Eu sei que posso não gostar. Mas sei que vou apreciar. Como com nossos melhores amigos, há dias bons e ruins.



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