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1 de maio de 2020

A idade viril: Michel Leiris

Hoje tendo facilmente a ver o órgão feminino como uma coisa suja ou como uma ferida, não menos atraente por isso, mas perigosa por si mesma, como tudo que é sangrento, mucoso, contaminado. (p.78)




Quase não concebo o amor senão no tormento e nas lágrimas.

A balsa da Medusa: JEAN LOUIS THÉODORE GÉRICAULT

      Sem querer comparar-me a ele do ponto de vista da coragem, sinto-me muito próximo desse tio que durante toda a vida buscou, com uma constância admirável, o que para os outros não era senão um rebaixamento, e recolheu suas mulheres, uma da serragem dos picadeiros, a outra quase do meretrício, porque era grande seu gosto pelo que é despojado e autêntico, o que pensava só poder encontrar junto aos humildes, e porque devia encontrar satisfação também em sacrificar-se, nisto era extremamente semelhante a mim, que por muito tempo busquei  (ao mesmo tempo que temia), sob diferentes formas, o sofrimento, o fracasso, a expiação, o castigo.  


Em edições anteriores em português, "L'Âge d'Homme" aparece com o título um pouco desconcertante de "Idade de Homem". A edição da Cosac e Naify, de 2003, é que vem trazer esta opção mais elegante de "A Idade Viril" - que ganha em impacto, mas gera obviamente desentendimentos notáveis à primeira vista.
Isso porque, em meus tempos de livreiro, já tive a oportunidade de encontrar muitos leitores que tomavam o livro por um apanágio da masculinidade - talvez um efeito também da figura circunspecta e encapotada de um Michel Leiris bem assenhorado na capa. Não se pode desprezar o efeito de primeiras impressões...
No entanto, essa antropologia de si mesmo levada a cabo pelo autor (não, não é uma autobiografia) acaba sendo a deixa para a apresentação de uma existência marcada por aspectos ridículos, bizarros, eventualmente doentios e povoados de reticências e pesadelos. Ao evidenciar sua condição genital no título desse exame, Leiris deixa claro que aposta nessa condição de "homem" na sociedade em que vive para explicar a origem de boa parte de seus comportamentos.
E ele não será nem um pouco reservado ao falar sobre isso no que se refere à sua relação com o Feminino - relação profundamente mitologizada, cruzamento de admiração e terror. Salomé, Lucrécia, Judite, Ana Bolena, Joana D'Arc - as figuras históricas e mitológicas femininas se agrupam para fundar o painel de uma potência assustadora e ancestral, que será a grande fixação de Leiris rumo às profundezas.
Grande etnólogo, provavelmente tão célebre como pesquisador quanto como literato, Michel Leiris criou este clássico esquisito aparentemente como se contemplasse o membro de uma tribo isolada, uma tribo estabelecida na Paris da virada do século, com seus dogmas, superstições e ética próprios.
Sua "virilidade", neste contexto de franqueza quase escatológico por vezes, não tem nada de celebratória.

Roberto Pedretti


Eternidade tanto mais embriagadora quanto se mantém apenas por um fio




1909: Apollinaire


La dame avait une robe
En ottoman violine
Et sa tunique brodée d'or
Était composée de deux panneaux
S'attachant sur l'épaule

Les yeux dansants comme des anges
Elle riait elle riait
Elle avait un visage aux couleurs de France
Les yeux bleus les dents blanches et les lèvres très rouges
Elle avait un visage aux couleurs de France

Elle était décolletée en rond
Et coiffée à la Récamier
Avec de beaux bras nus

N'entendra-t-on jamais sonner minuit

La dame en robe d'ottoman violine
Et en tunique brodée d'or
Décolletée en rond
Promenait ses boucles
Son bandeau d'or
Et traînait ses petits souliers à boucles

Elle était si belle
Que tu n'aurais pas osé l'aimer

J'aimais les femmes atroces dans les quartiers énormes
Où naissaient chaque jour quelques êtres nouveaux
Le fer était leur sang la flamme leur cerveau

J'aimais j'aimais le peuple habile des machines
Le luxe et la beauté ne sont que son écume
Cette femme était si belle
Qu'elle me faisait peur

Guillaume Apollinaire, Alcools, 1913 


"Judite com a cabeça de
Holofernes" (
Judite Vitoriosa)
c. 1530 Beech panel, 75 x 56 cm.
Jagdschloss Grunewald, Berlim.

The story revolves around Judith, a daring and beautiful widow, who is upset with her Jewish countrymen for not trusting God to deliver them from their foreign conquerors. She goes with her loyal maid to the camp of the enemy general, Holofernes, with whom she slowly ingratiates herself, promising him information on the Israelites. Gaining his trust, she is allowed access to his tent one night as he lies in a drunken stupor. She decapitates him, then takes his head back to her fearful countrymen. The Assyrians, having lost their leader, disperse, and Israel is saved.[27] Though she is courted by many, Judith remains unmarried for the rest of her life.


"Lucrécia" c. 1524.
Óleo sobre madeira.
Alte Pinakothek, Munique.
Lucrécia (? — 509 a.C.) foi uma lendária dama romana, filha de Espúrio Lucrécio Tricipitino, prefeito de Roma, e mulher de Lúcio Tarquínio ColatinoOs historiadores Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso referem que Lucrécia foi estuprada por Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo, e que se suicidou após ter relatado este facto ao marido e ao pai e pedido vingança. Neste drama pessoal teria estado o pretexto para o movimento que conduziu à revolução que derrubou o regime monárquico e estabeleceu a república em Roma.




Examinando as condições na quais Cleópatra, rainha do Egito, pôs fim à sua vida, impressiona-me o contato destes dois elementos: de um lado a serpente assassina, símbolo masculino por excelência; de outro, os figos sob os quais a serpente se dissimula, imagem comum do órgão feminino. Sem querer ver nisso mais do que uma coincidência, não posso deixar de assinalar a exatidão com que esse encontro de símbolos corresponde ao que é para mim o sentido profundo do suicídio: tornar-se de uma só vez si mesmo e outro, macho e fêmea, sujeito e objeto, o que é morte e o que mata - única possibilidade de comunhão consigo próprio. Se penso no amor absoluto - essa conjunção, não de dois seres (ou de um ser e do mundo), mas de dois termos decisivos - parece-me que só se poderia chegar a ele por meio de uma expiação, como a de Prometeu punido por ter roubado o fogo. Castigo que alguém se inflige a fim de ter o direito de amar demasiadamente a si mesmo: é assim que vejo, em última análise, a significação do suicídio. 




Após os anos turvos durante os quais mandava entregar às feras os homens dos quais havia se servido (... o essencial sendo o duplo papel de soberana autoritária e de mulher de costumes desregrados), após a vida inimitável em companhia de Marco Antônio, as pérolas bebidas, dissolvidas em vinagre, a fundação do Clube dos Inseparáveis na Morte e todas as outras fantasias que devem ter brotado de sua imaginação desenfreada, Cleópatra, por não ter podido seduzir Otávio, o vitorioso, fez-se morder no seio por uma serpente, preferindo a morte à servidão que a ameaçava. 

Fogo-de-santelmo

As questões de etiqueta, de estilo, prevalecem sobre a imediata eficácia. 



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