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22 de maio de 2019

Da morte. Odes mínimas: Hilda Hilst


I
Te batizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de  Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arcoíris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não?

II
Demora-te sobre a minha hora.
Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.

Que me tomes sem pena
Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.

E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.

III
Pertencente te carrego:
Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento.

IV
Vinda do fundo, luzindo
Ou atadura, escondendo,
Vindo escura
Ou pegajosa lambendo
Vinda do alto
Ou das ferraduras
Memoriosa se dizendo
Calada ou nova
Vinda da coitadez
Ou régia numas escadas
Subindo

Amada
Torpe
Esquiva

Benvinda.
V
Túrgida-mínima
Como virás, morte minha?

Intrincada. Nos nós.
Num passadiço de linhas.
Como virás?

Nos caracóis, na semente
Em sépia, em rosa mordente
Como te emoldurar?

Afilada
Ferindo como as estacas
Ou dulcíssima lambendo

Como me tomarás?
VI
Ferrugem esboçada

Perfil sem dracma
Crista pontuda
No timbre liso

Um oco insuspeitado
Na planície

Um cisco, um nada
À tona das águas

Brevíssima contração
Te reconheço, amada.

VII
Perderás de mim
Todas as horas

Porque só me tomarás
A uma determinada hora.

E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos

Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos

A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferida
De malassombros, de gozo

Morte, imagina-te.

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