Antefinal Noturno
BREVÍSSSIMA REFLEXÃO SOBRE UM LIVRO
IMENSO
Edmar Monteiro Filho
No
conto intitulado “Pierre Menard, Autor do Quixote”, inserido no livro
“Ficções”, Jorge Luis Borges imagina um escritor que se aprofunda no estudo de
“Dom Quixote” até ser capaz de reescrever integralmente a obra prima de Miguel
de Cervantes. A história, salpicada de elementos do fantástico, gênero de
preferência do mestre argentino, traz interessantes discussões acerca do tema
da autoria, propondo que Pierre Menard, ao reproduzir “Dom Quixote” palavra por
palavra, em uma época posterior à escrita do Quixote de Cervantes, cria uma obra
distinta da original, tendo em vista as diferentes influências utilizadas por seu
“novo” autor.
Em
meu último livro, “Atlas do Impossível”, imaginei processo semelhante, buscando
levar adiante o jogo de espelhos criado por Borges. Um personagem, de nome
Barros, secretário do escritor, decide reescrever o conto “Pierre Menard”,
também palavra por palavra. Se a inspiração provocada pela fascinante história
escrita por Borges suscita tais aventuras literárias, é preciso reconhecer que,
neste caso, o ponto de partida é a monumental obra de Cervantes.
Quando
examinamos uma obra artística que deixou marcas substanciais em nossa cultura,
estamos pensando não apenas nessa obra, mas em tudo aquilo que já se produziu a
partir dela. Ao analisarmos o romance “Dom Quixote”, é impossível ignorar a
imagem criada por Pablo Picasso, a ideia dos moinhos de vento como símbolos da
ilusão, ou mesmo o adjetivo quixotesco, apropriado a todo aquele que é
excessivamente sonhador ou atrapalhado. Impossível estimar ainda a quantidade
de estudos existentes acerca do livro. Assim, desobrigado de qualquer tentativa
de abrangência ou originalidade, concentro esta breve conversa justamente na qualidade
que eleva Dom Quixote a um patamar de
distinção na história da literatura ocidental: a de obra fundadora do gênero
romance.
A
primeira parte das aventuras do "Cavaleiro da triste figura" foi
publicada em 1605 e se tornou tão popular, que obrigou seu autor a escrever uma
sequência – que veio a público em 1615 –, a fim de fazer frente a inúmeros
"falsos Quixotes" que passaram a circular. Numa leitura inicial, é possível
identificar que o livro satiriza a novela de cavalaria, gênero que já fora
bastante popular na Espanha e que começava a experimentar seu declínio.
Cervantes apresenta o personagem Alonso Quijano, fidalgo que teria perdido a
razão em virtude da leitura continuada de tais livros e que acaba imaginando a
si próprio como um cavaleiro andante, vestindo-se com uma improvisada armadura
e montando um arremedo de corcel – Rocinante – para partir em busca de
aventuras, acompanhado pelo simplório Sancho Pança, à guisa de escudeiro.
O
livro se funda numa série de contrastes que traduzem sua vocação de obra
bifronte: olha para a tradição, representada pela literatura medieval e pela
fantasia, ao mesmo tempo em que vislumbra os horizontes da prosa moderna,
através do romance, gênero burguês, por excelência. Assim, os protagonistas Dom
Quixote e Sancho Pança são figuras opostas: o cavaleiro louco, em busca da
glória proporcionada pelos grande feitos, e o escudeiro ignorante, afeito à
realidade e ocupado com a satisfação de necessidades como o alimento, o
repouso, o sustento material. A alternância entre momentos de serenidade e
desatino que constitui a figura de Dom Quixote permite um constante embate
entre a imaginação e a concretude, entre a mulher idealizada pelos paradigmas
do amor cortês e a camponesa de formas e modos grosseiros, entre os nobres ideais
e a falsidade.
“Dom
Quixote” também dialoga com distintas
formas e gêneros literários, como a sátira e a narrativa pastoril. O burlesco aparece
já no prólogo, por meio de poemas supostamente escritos por conhecidos
protagonistas dos livros de cavalaria e dedicados aos principais personagens do
livro. Assim, por exemplo, o famoso cavaleiro Amadis de Gaula homenageia Dom
Quixote, o escudeiro deste louva Sancho Pança, a formosa donzela D. Oriana
escreve para Dulcineia, a amada do herói, havendo, inclusive, um diálogo entre
Babieca, a montaria do cavaleiro El Cid, e Rocinante. À medida que a narrativa
avança, vão sendo intercalados diversos episódios paralelos, bem como poemas e
canções, todos ligados de forma harmônica ao eixo principal, o que confere ao
livro a característica de um discurso múltiplo, próprio de um gênero em
gestação.
Ao
longo de todo o romance, Dom Quixote parece entabular uma difícil negociação, agarrando-se
como pode aos restos de fantasia que se sustentam precariamente contra os avanços
implacáveis do real. Quando, ao final do livro, o herói fecha os olhos, assistimos
não ao encerramento de um texto literário, mas ao fim de uma era.
Dom Quixote é um livro maravilhoso, divertido, inteligente, questionador. A questão do real e do fantástico permeia nossa vida em tantos momentos... Acreditamos no que queremos que seja verdade (real) e não necessariamente no que é. Muito legal as ligações que Edmar fez, como por exemplo os moinhos de vento serem símbolo de ilusão, o que torna a obra pra lá de especial.
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