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26 de abril de 2022

Indicações de Livros Autor Nacional para Março de 2013


"Diário da Queda" foi indicado para o prêmio Portugal Telecom e  Michel Laub  é um autor jovem. 

Falando agora pelo Benito, acho que ele gosta de indicar autores jovens porque nos proporciona o aprendizado de como acontece a gênese do estilo do escritor, sobretudo para quem segue o mesmo caminho.







Carlos Rosa indica:

Chico Lopes foi um dos vencedores do Jabuti deste ano com o livro "O estranho no corredor", ed. 34. É uma novela ou mesmo pode ser considerado um romance curto. Chico concorreu também e foi um dos dez finalistas do São Paulo Literatura, um prêmio de grande importância que lançou, entre vários outros, Tatiana Salem Levy. Chico é um excelente artista plástico (pintor), tradutor de grandes editoras e um papo excepcional. Se vencer, posso tentar trazê-lo a Niterói. Tem  livros de contos publicados e elogiados por, por exemplo, Affonso Romano e Loyola Brandão. Affonso Romano o classifica de "excelente contista". Tem um livro de memórias. Seria ótimo se vencesse no CLIC.

Um grande abraço."








Para a próxima votação gostaria de sugerir "Infâmia", de Ana Maria Machado. É um livro bastante interessante. Como o próprio título sugere, a autora aborda uma característica  comum ao homem: a calúnia, a difamação, o ato de distorcer palavras ou ações de terceiros pelas razões mais diversas possíveis (obter atenção, sentir-se dono da razão, ou em casos mais graves, obter algum favorecimento em forma de poder, projeção social, bens materiais, etc. Existem inúmeros casos, que vão dos mais inocentes à pura maldade).

Acredito que o tema dê margem a boas discussões, visto que sua abordagem é ampla. A história da humanidade é rica em casos infames que antecedem os tempos bíblicos. A política é abundante em escândalos deste gênero. E não só homens públicos, mas cidadãos comuns, independente da classe econômica e nível cultural, ou seja, nós, podemos ser testemunhas, vítimas ou autores de ações levianas e julgamentos apressados de terceiros.

Ana Maria Machado é inteligente, crítica, atuante, ponderada e apresenta ao leitor muito mais que a argumentação moral. Ela estimula a reflexão, a deixar o mundo da ficção, a cegueira, e enxergar a realidade (“ser capaz de não me excluir do real ao ser intruso no fictício”).

"Gosto muito de ser intruso assim. Junto a cada um. Com suas razões próprias. Uma oportunidade de tentar entender melhor a natureza humana. Sempre gostei.

Como posso ter me perdido tanto, ao ponto de não ter conseguido fazer isso com minha filha? Só porque não era um personagem feito de palavras?"

O livro apresenta ainda mais. Ao longo da narrativa a autora brinda o leitor com arte na forma de música, pintura, escultura e principalmente literatura. Muita literatura, com belíssimas citações, que estimulam nossa curiosidade e nos fazem aprender mais sobre o mundo, o Brasil e, em particular, a cidade do Rio de Janeiro e sua cultura.

Infâmia é um livro atual, popular, intelectual, brasileiríssimo. Uma leitura que faz diferença. Além disso, o tema e estilo fogem do que temos lido e dos livros que estão na lista de leitura. Acho que seria bem legal lê-lo com o Grupo. Como eu havia comentado no último mês, há tempos estou curiosa para ler este livro, mas com a regra do revezamento valendo, só agora pude sugerir sua leitura. Deixo aqui a sugestão, torcendo para que mais gente se interesse e assim, quem sabe, possamos ler juntos em Novembro.

Sobre a autora:

A carioca Ana Maria começou como pintora e estudou no Museu de Arte Moderna. Participou de várias exposições, enquanto estudava Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se formou. Ela desistiu da carreira de pintora e passou a dar aulas, além de escrever e traduzir artigos para jornais e revistas.

Ativista política, foi presa e perseguida durante a ditadura militar. Em 1969, partiu para o exílio na Europa. Lá, trabalhou na revista Elle, na BBC de Londres, lecionou na Sorbonne de Paris, onde conclui sua tese de mestrado sob a orientação do mestre Roland Barthes. Voltou ao Brasil em 1972 e trabalhou no Jornal do Brasil e, durante sete anos, foi chefe de reportagem da Rádio JB.

Em 1980, Ana Maria deixou o jornalismo para se dedicar exclusivamente aos livros.”

“A escritora recebeu alguns dos mais importantes prêmios da literatura, como o "Jabuti", em 1978; o "Casa de las Americas", em 1981; e, no ano 2000, o prêmio "Hans Christian Andersen", considerado o Nobel da literatura infantil.” Em 2001, recebeu o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra.

“Desde 2003, ela pertence à Academia Brasileira de Letras, tornando-se primeira imortal eleita com uma significativa obra dedicada ao público infanto-juvenil.” Em 2012 tornou-se presidenta da Academia.





Amigas e amigos,

Para nosso encontro de março de 2013, sugiro o romance "Recordações do Escrivão Isaías Caminha". Na minha opinião, é o melhor livro do escritor Lima Barreto. 2011 fez de 130 anos do nascimento do Lima e neste 2012 completaram-se 90 anos de sua morte, sendo que pouco se falou nele.

Jorge, que recentemente se reuniu a nosso clube, tem um trabalho acadêmico específico sobre "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" e a reunião de março seria uma ótima oportunidade para ele partilhar com a gente seus conhecimentos sobre o assunto.

Pensem com carinho na sugestão, valeu?

Um abraço e boas leituras,



(Envie-nos sua indicação com a resenha do livro. Manifeste seu apoio nos comentários desta postagem)


22 de abril de 2022

Estamos lendo: O nome da rosa: Umberto Eco - II







"(...) Avicena aconselhava um método infalível já proposto por Galeno para descobrir de quem alguém está enamorado: segurar o pulso do doente e pronunciar muitos nomes de pessoas do outro sexo, até que se perceba a que nome o ritmo do pulso se acelera; (...)"

Pag.314 O Nome da Rosa


20 de abril de 2022

Machado: Silviano Santiago (2/2)





Originalmente, a região do Largo do Machado era ocupada por uma lagoa, a Lagoa do Suruí, também chamada Lagoa da Carioca ou de Sacopiranha, que era alimentada pelo Rio Carioca. Por sua vez, a lagoa alimentava o Rio Catete. Posteriormente, a lagoa foi aterrada, dando lugar ao Campo das Pitangueiras. Num dado momento, sua denominação mudou para Campo das Laranjeiras. No século XVII, era conhecido como Campo das Boitangas ("boitanga" era um tipo de cobra). No início do século XVIII, passou a ser chamado Campo ou Largo do Machado, em referência ao oleiro André Nogueira Machado, proprietário de terras no local. Por volta de 1810, um açougueiro também de sobrenome Machado instalou-se no largo e ilustrou a fachada de seu estabelecimento com um grande machado. Também em 1810, o largo do Machado passou a constar como logradouro oficial na cidade. (Wikipedia)



O homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que, no entanto,  lhe dera uma paraíso para viver. Mas não há paraíso que valha o gosto da rebeldia.



A mocidade é uma sublime impaciência. Diante dela a vida se dilata, e parece-lhe que não tem mais um instante para vivê-la. A mocidade põe os lábios na taça da vida, cheia a transbordar de amor, de poesia, de glória, e quisera esvaziá-la de um sorvo.









A sobriedade vem com os anos; é virtude do talento viril. Entrado na vida,  homem aprende a poupar sua alma.


Roda dos enjeitados

Na vida há simetrias inesperadas e definitivas... a verdade pode ser inverossímil e muitas vezes o é... simetrias não são fortuitas e menos fortuitas ainda são as coincidências das personalidades envolvidas por elas em trama inesperada... o ciclo das simetrias, das coincidências e das metamorfoses e das reencarnações dos personagens não se encerra assim, de modo tão lógico.   









NADA DE BOM ACONTECE ÀS PRESSAS!!!



Dom Pedro II - A Ciência sou Eu

Sou vítima de complôs armados pelo destino. Gosto dos enigmas propostos pelo Acaso e que se adensam e se metamorfoseiam pouco a pouco em incógnita. Gosto deles porque são autênticos responsáveis pelo modo como o mistério tece a vida que cumpre a mim, a nós, desvendar como detetives para melhor revelar isto a que se chama o ser humano, suas alegrias e adversidades. 


Flaubert: “Uma testemunha conta que
o menino aprendeu a ler muito tarde
e que seus familiares o tinham
então por criança retardada”

Quem furtou pouco fica ladrão, quem furtou muito fica barão.




"J'ai le sentiment d'être mort plusieurs fois" (Flaubert)




Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, — um lírio do vale, — e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.







16 de abril de 2022

Sidarta: Hermann Hesse


Começava a vislumbrar que seu venerando pai e seus demais mestres, aqueles sábios brâmanes, já lhe haviam comunicado a maior e a melhor parte dos seus conhecimentos: começava a perceber que eles tinham derramado a plenitude do que possuíam no receptáculo acolhedor que ele trazia em seu íntimo. E esse receptáculo não estava cheio; o espírito continuava insatisfeito; a alma andava inquieta; o coração não se sentia saciado. As abluções, por proveitosas que fossem, eram apenas água; não tiravam dele o pecado; não  curavam a sede do espírito; não aliviavam a angústia do coração..


"Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros. Começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim.”  (Herman Hesse)


Terá sido apenas uma coincidência estarmos lendo SIDARTA e ao mesmo tempo sermos "apresentados" a um Papa tão humano?

Estamos lendo SIDARTA, e, ao mesmo tempo nos deparamos com um ser amável, totalmente ligado e preocupado com as dores da humanidade, um Papa (finalmente) voltado para o social.

Esperemos que, independentemente da religião, essas sementes germinem...

Vera Lúcia Schubnell Freire

* * *

Na verdade estamos ligados às sintonias do Universo e concordo com a Vera que a escolha de Sidarta não foi casual com o momento que recebemos um importante líder religioso do Planeta.

(R)




"Quando foi alcançado o número de votos que me faria Papa, aproximou-se de mim o cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes, me beijou e disse: "Não te esqueças dos pobres". Em seguida, em relação aos pobres, pensei em São Francisco de Assis. Depois pensei nos pobres e nas guerras. Durante o escrutínio cujos resultados das votações se punham "perigosas" para mim, veio-me um nome no coração: Francisco de Assis. Francisco, o homem da pobreza, da Paz, que ama e cuida da criação, um homem que transmite um sentido de Paz, um homem pobre. Ah! Como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres."


Papa Francisco - 16 de março - Aula Paulo VI (sala de audiências papais) - Roma




* * *

Tudo voltava, todos os sofrimentos que não tivessem encontrado uma solução final.


Govinda — pensou, sorrindo. — Tais pessoas ficam gratasapesar de poderem, elas mesmas, reivindicar gratidão. Todas elas são submissas, querem ser amigas, gostam de obedecernão gostam de pensar muito. Esses homens são verdadeiras crianças.


..aprendi com o rio:  tudo volta.  ...que tua amizade seja meu salário...

Olha, há mais uma coisa que a água já te mostrou:  que é bom descer, abaixar-se, procurar as profundezas

- senti que a percepção do Universo circulava em mim como meu sangue.



 "Fraternidade"

E se agora, neste instante,
nos olharmos com um sorriso
e apertarmos nossas mãos,
buscando a divina essência
que é comum a todos nós,
então, fraternos nós somos
e verdadeiros Irmãos.

(Elenir)

* * *

Yes se inspirou em Sidarta de Hesse para escrever a letra de "Close to the edge"
 
     "L’intérêt passionné de Hermann Hesse pour l’Extrême Orient était une tradition de famille. Son grand-père puis ses parents avaient tous longtemps vécu en Inde au service de la Mission protestante de Bâle, y avaient appris les langues locales, s’étaient familiarisés avec les coutumes et la pensée du pays. L’un de ses cousins, Wilhelm Gundert (1880-1971), était un savant de premier plan, établi au Japon, spécialiste du bouddhisme zen.

     Dès son enfance, Hesse avait ainsi fait la connaissance de l’Asie par des conversations éclairées et par la lecture des meilleurs livres. Rien d’étonnant à ce que le futur auteur de Siddhartha et du mythique Voyage en Orient ait désiré connaître à son tour physiquement quelques-uns des pays qui nourrissaient déjà une si grande part de son imagination et de sa philosophie."

(http://www.jose-corti.fr/titresetrangers/carnets-indiens.html)

* * *

Tu Hi Meri Shab Hai

Tu hi meri shab hai subha hai tu hi din hai mera

Tu hi mera rab hai jahaan hai tu hi meri duniya

Tu waqt mere liye main hoon tera lamha

Kaise rahega bhala hoke tu mujhse judaa


* * * 





Avant la naissance de Krishna, Vishnou révélant sa divinité à Vasudeva et Devaki. National Museum, New Delhi. Basé sur l'histoire du Bhagavata Purana, Bikaner, Rajasthan, vers 1725.






Disse Sidarta: " [...] tenho para mim que o amor é o que há de mais importante no mundo. Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim me interessa exclusivamente que eu seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não odiar nem a ele nem a mim mesmo, de contemplar a ele, a mim, a todas as criaturas com amor, admiração e reverência."




Om é o arco; alma é a seta
Brama é o alvo da seta:
Cumpre feri-lo constantemente

O CLIc chega ao Nirvana
Que todos possam alcançar a Paz do Universo, deixo vocês mergulhados no Om. (R)



Uma porta após outra abre-se diante de ti. Como se explica isso? Dispões, por acaso, de algum feitiço?

Olha, Kamala: uma pedra que atirares na água, dirige-se ao fundo pelo caminho mais rápido. O mesmo sucede cada vez que Sidarta tem um objetivo, um propósito. Sidarta não faz nada. Apenas espera, pensa e jejua. Mas passa através das coisas deste mundo como a pedra passa pela água, sem mexer-se, sentindo-se atraído, deixando-se cair. Sua meta puxa-o para si, uma vez que ele não admite no seu espírito nada que se possa opor a ela. Eis o que Sidarta aprendeu dos samanas. É aquilo que os tolos chamam de feitiço e que na opinião deles é obra dos demônios. Nada é obra dos demônios, já que não há demônios. Cada um pode ser feiticeiro. Todas as pessoas são capazes de alcançar os seus objetivos, desde que saibam pensar, esperar, jejuar. 


* * *

O que é a meditação? O que é o abandono do corpo? Que significa o jejum? E a suspensão do fôlego? São modos de fugirmos de nós mesmos. São momentos durante os quais o homem escapa à tortura de seu eu.

* * *

Leitura jovem no CLIc

"Hermann Hesse é o maior escritor do século XX"
San Francisco Chronicle



Iluminação no CLIc


Sidarta, na minha estante,
passou anos escondido,
mostrou-se a mim, e num instante
sussurrou "Sou o escolhido".

(Ilnéa)





"Toda a vida de Hesse, até o último dia, foi uma série de fugas" escreveu Otto Maria Carpeaux, na orelha a 1a edição de "Sidarta". "E cada uma das fugas foi uma volta..."

... e há mais... muito mais!

Fomos, e somos, verdadeiramente um grupo... ou diria "maravilhosa familia".

Abraços ... num só abraço,

Abraço enoooorme... !!!!!!!!!!!!!!

Ilnéa

11 de abril de 2022

Clube da Lua: "Hang Massive - The Secret Kissing of the Sun and Moon

Além das minhas forças e responsabilidades



Yann Arthus-Bertrand captures fragile Earth in wide-angle



Recentemente a Unesco cedeu ao Rio de Janeiro o título de Patrimônio Mundial da Humanidade, na categoria Paisagem cultural. Foi a primeira vez que uma paisagem urbana foi escolhida para se transformar em patrimônio. Notícia que dá orgulho ao povo carioca. O Rio é, de fato, uma Cidade Maravilhosa, abençoada por um relevo de montanhas e belas praias. Bonito por natureza! É, mas quem mora aqui sabe que viver no Rio não é assim tão maravilha. A qualidade dos serviços públicos deixa muito a desejar (ensino, saúde, segurança, transporte, limpeza e planejamento urbano. Só para citar alguns.). Um problema, aliás, que afeta todo o país. Sendo atividades prestadas pelo Estado à sociedade é nosso direito (e dever como cidadãos) fiscalizar, cobrar e, mais importante, ter na memória o que o Estado faz de bom e ruim. Ponderar, comparar com outros governos e, nas eleições, não se isentar em escolher direitinho a quem dar poder de decisão e quem deixar bem longe deste papel. Afinal é nossa qualidade de vida que está em jogo. Mas existe algo a mais que podemos fazer? Sem deslocar o foco de responsabilidade do Estado para o indivíduo: o problema é só o serviço público de baixa qualidade?

Quantos são os autores e compositores que eternizaram o Rio de Janeiro em suas obras? Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes,... São tantos! E como é bom ler e ouvir sobre nossa cidade. Uma viagem no tempo! Mas, ler deveria ser muito mais que uma intrusão no texto, um desfrute de prazeres e sensações de terceiros. Como sugere Ana Maria Machado em seu livro "Infâmia", o leitor deve ser capaz de não se excluir do real ao ser intruso no fictício. Sendo assim, como cidadãos leitores de nossa cidade, temos duas escolhas, sermos somente intrusos, desfrutando das belezas naturais e reclamando das mazelas urbanas, delegando-as ao poder público, ou leitores que não fogem de suas parcelas de responsabilidade, que exercem suas cidadanias.

Se nossa cidade fosse um livro, como a leríamos? Se eu lesse as grandes festas populares, como a Virada do Ano e o Carnaval, leria, além da beleza da música, da alegria do povo, pessoas mijando em espaços públicos: na areia da praia, nas árvores, nas paredes de prédios. Leria uma cidade que fede. E muito! Se eu lesse o trânsito leria motoristas impacientes, estressados, com pouca noção de direção defensiva, andando alcoolizados, colados ao veículo à frente, lançando farol alto para forçar a liberação de pista, acelerando ao ver um veículo que dá sinal de mudança de faixa, bloqueando cruzamentos, desrespeitando à sinalização. Leria motoristas subornando policiais de trânsito. Se em minhas leituras percorresse as ruas, leria muito lixo. Pessoas deixando seu lixo por onde passam (no banco de espera de um ponto de ônibus, pelas calçadas, pelas janelas de ônibus, carros, caminhões). Lixos residenciais, resto de entulho ou poda de árvore  em terrenos baldios (Bastaria chamar o serviço de coleta público gratuito, mas jogar no terreno baldio da esquina, ou no rio é mais rápido!).

Será que eles vieram de nós mesmos?


Qual impacto temos sobre o ambiente urbano? Estamos orgulhosos de nosso papel? É urgente repensar a relação do cidadão com sua cidade. Talvez neste sentido faltem campanhas educacionais promovidas por orgãos governamentais, mas falta algo ainda mais básico. Falta educação, um conceito muito mais amplo que educação escolar. Que vai além da responsabilidade da política pública e de sistema educacionais formais. Falta aquela educação que se aprende em casa. Uma geração inteira de famílias parece ter se isentado deste papel. Pais isentos ou permissivos que não souberam educar seus filhos, e criaram uma geração de homens e mulheres pouco cientes de seu papel social e da importância de ser um cidadão. Parece que o indivíduo preza tanto a liberdade, a segurança dos seus direitos em questões privadas que esquece seus deveres. Falta educação na mídia, na sociedade, para servir de exemplo ao jovem e ao adulto que não aprendeu. Não aprendeu que o seu direito é também o direito de todos.


Ser cidadão é ser um sujeito crítico, é desenvolver atitudes de solidariedade, aprender a dizer não ao que é imposto pela mídia, é adotar uma postura, é fazer escolhas, é despertar para as consciências dos direitos e deveres, lutar pela justiça, valorizar a pessoa humana, a dignidade necessária para todos.

Ah, quem dera se não soasse, inocência, utopia,  pieguice, hipocrisia ou tom professoral. Quem dera se alguém visse um apelo, um convite a fazer melhor em um espaço de construção compartilhado. Por que a função de um Clube de Leitura, também é estimular bons leitores. Através de mudanças de atitudes individuais, podemos servir de exemplo a nossos filhos, amigos,... a um estranho que nota. Eu acredito.





"Cidadania não é uma lição a ser ensinada. É uma postura que precisa ser estimulada. Postura essa que possa fazer nascer em cada um, o sentimento do que é viver em prol do bem-comum. O conceito se refere sim a direitos e deveres civis e políticos, mas não podemos nos esquecer de que é necessário que esses direitos sejam pensados por meio de valores éticos. É necessário conjugar cidadania com diversidade, justiça, dignidade." (educação pública)





9 de abril de 2022

Releituras



Em rápida reflexão sobre o quão delicado pode ser escrever sobre momentos que correspondem à vivência conjunta de distintos indivíduos (como os momentos do Clube de Leitura), uma palavra, a princípio desconfortável, me vem à mente: pastiche.

Na literatura, ou na arte, pastiche pode ser definida como uma imitação grosseira da obra ou do estilo de escritores, pintores, ou músicos. Etimologicamente, pastiche deriva do italiano “pasticcio” (ou “pastitsio”), um prato italiano com diferentes compostos a base de massa. Durante a Renascença, o termo era aplicado de forma pejorativa a cópias de obras de grandes pintores italianos, criadas com propósitos fraudulentos. Posteriormente, tanto na literatura quanto em trabalhos não-literários, como artes ou música, o termo passou a ser aplicado como uma técnica de imitação de estilo. Não mais necessariamente visto como plágio, mas, de forma mais respeitosa, como uma releitura.

No ramo da pintura, a releitura implica numa expressão da compreensão da obra, sem preocupações com semelhanças fiéis. “É o sentimento se aliando à observação na produção de um trabalho.” Um exemplo, é o espanhol Pablo Picasso (1881 - 1973). A despeito de sua criatividade e originalidade, Picasso, abusou das releituras. Quase como uma fixação, buscou, de modo incansável, inspiração em obras como "Almoço na Relva" (Dejeuner Sur L´Herbe), do francês Éduard Manet (1832 - 1883), criando 27 óleos e mais de 150 desenhos inspirados no original. Outro trabalho que encantou Picasso foi "Las Meninas", do espanhol Diego Velázquez (1599 -1660).


Esquerda: As Meninas, pintura de 1656, de Diego Velázquez. O quadro retrata a infanta Margarida Teresa de Habsburgo, filha do rei espanhol Filipe IV, acompanhada de damas de companhia e de outros serviçais, numa das salas do Palácio Real de Madrid. Há também um auto-retrato de Velázquez e reflexo do rei e da rainha num espelho atrás da infanta. Direita: Releitura da obra, feita por Pablo Picasso. Em 1957, Picasso havia pintado 58 versões de As Meninas.

Como técnica literária, o pastiche pode ser entendido como uma colagem ou montagem. Quase uma colcha de retalhos de vários textos. A imitação de um estilo literário, nem sempre é vista como grosseira.  Vide Fernando Sabino e Domício Proença Filho, que reescreveram Dom Casmurro, de Machado de Assis, em seus respectivos trabalhos: “Amor de Capitu” e “Capitu – Memórias Póstumas”. Já o romance “Em Liberdade”, de Silviano Santiago, é pastiche do estilo de Graciliano Ramos.
Interessante o que o Silviano Santiago disse de que escrever o romance foi uma espécie de estofamento dos dados e fatos que compilou sobre Graciliano.”
O exercício da releitura pode ser interpretado de diversas formas. Ela nem sempre é exercida. Como num ato de libertação, necessário à conclusão de um trabalho, muitos autores afirmam que não tem o costume de reler o que escrevem. Esta afirmação foi feita por José Saramago, em entrevista, e presencialmente compartilhadas por Gustavo Bernardo e Silviano Santiago, em suas visitas ao Clube de Leitura nas reuniões de janeiro e setembro de 2009, respectivamente. Ambos, utilizando palavras semelhantes afirmaram “Eu não me releio”.

O NÃO à releitura de suas obras, porém, parece não ser regra entre os mestres da literatura. Segundo Silviano Santiago, em conversa com o grupo, Graciliano Ramos não só releu São Bernardo, como o reescreveu.
Muito interessante saber que São Bernardo foi reescrito por Graciliano, em brasileiro, quando caiu-lhe a ficha de quão europeizado sua linguagem era.”
De fato, no posfácio de São Bernardo está registrado que Graciliano “escreveu à esposa que, quando terminou de compor o romance tratou de 'traduzi-lo' para 'brasileiro'...”, tamanha a preocupação do autor com o uso da língua portuguesa. E o romance, lançado em 1934, foi publicado várias vezes durante a vida do autor.

Para um tradutor, como Paulo Bezerra, por exemplo, o exercício de diversas releituras e auto-releituras deve ser quase obrigatório.

Segundo Nelson Rodrigues, "Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos."

No Clube de Leitura, houveram duas releituras: “Ensaio sobre a Cegueira” (lido em janeiro de 1999 e posteriormente em outubro de 2008), e “Lavoura Arcaica” (maio de 2002 e novembro de 2009). A simpatia do grupo por releituras é reflexo da própria essência que dá continuidade às reuniões: leituras compartilhadas.

Para muitos dos integrantes “as releituras, em geral, se constituem em outra leitura porque o leitor nunca é mais o mesmo.” Discutir um livro em grupo é uma espécie de releitura, pois ouvir as impressões pessoais dos outros leitores “significa estar desenvolvendo um novo olhar, através do outro”. E até mesmo filmes inspirados em livros podem ser interpretados como releituras:
O cinema é uma linguagem diferente, é quase um outro livro.”
Como diz Heráclito de Éfeso, ‘não se pode entrar duas vezes no mesmo rio’. Tenho aproveitado para ler algumas resenhas sobre 'Ensaio...' e estou perplexo com o que ainda não tinha ‘visto’.”
As reuniões do grupo também sempre fazem alguma referência à sua história. Sintomático também que a primeira leitura do grupo na universidade tenha sido de um livro que já fora lido anteriormente (O ensaio sobre a cegueira do Saramago), sinalizando que há leituras e re-leituras, que o ato de ler é também um ato político, que há texto e contexto que se interpenetram e se influenciam mutuamente etc.”
Tão verdadeira é a essência das leituras compartilhadas para os participantes do Clube de Leitura, que o próprio termo “colcha de retalhos” já foi empregado, em referência a síntese mensal feita pelo “concierge” após cada reunião:
A cada véspera de uma reunião mensal fico aqui a imaginar o encontro e as descobertas que cada um deve apresentar a respeito do texto, do autor e das entrelinhas que nem sempre são desnudadas... sobretudo, a interpretação de cada um, num pedacinho aqui e outro ali que o nosso Coordenador tão pacientemente coleciona num lindo emaranhado em forma de cesto. Depois ele tece com maestria, desata os nós, mergulha nos vossos discursos e gentilmente nos apresenta em forma de ‘relato’ aquela colcha de retalhos lindamente colorida e sofisticada,... Ele nos prepara para uma nova leitura. Trata-se de um costureiro! ... Cada retalho é uma palavra, uma emoção, uma leitura. Ele pega, cose direitinho com fio colorido, com agulha grossa e prepara tudo para a exposição.”
Ponho então a desconfortável conotação de pastiche de lado. Pego minha agulha, e respeitosamente tento montar mais uma ou duas releituras do Clube de Leitura. Obra infindável de vários autores, em seus encontros e reencontros, leituras e releituras.

8 de abril de 2022

Relembrando: Entrevistamos Chico Lopes

O CLIc tem o prazer de abrir passagem aos passos que já ouve bem próximos: os de Chico Lopes. Bem-vindo à primeira entrevista do CLIc no Facebook, à semelhança do que já foi feito no Orkut. Que todos nos alimentemos de seus saberes e experiencias na arte de escrever, criticar cinema, literatura, pintura. Todos poderão participar. Chico é membro do CLIc. Autor premiado pelo Jabuti 2012, com a novela O estranho no corredor, escreve em muitos sites artigos de grande riqueza cultural. Sua obra expressa a humanidade em seu mais alto estágio, aquela que busca a libertação (por Helena Martins Rodrigues)
(Apenas perguntas expressamente autorizadas pelos autores serão transcritas do Facebook)


Chico Lopes nasceu em Novo Horizonte, SP, em 1952. É escritor, pintor, crítico de cinema e literatura. Em 1992, mudou-se para Poços de Caldas, MG, e desde 1994 trabalha no Instituto Moreira Nó de sombras (2000), Dobras da noite (2004) e Hóspedes do vento (2010). Escreve regularmente nos sites Verdes Trigos, Verbo 21 e Germina. O estranho no corredor é sua primeira novela.
Salles como programador e apresentador de filmes. Como escritor, publicou os livros de contos





Chico Lopes Pois é, cá estou, aberto a quem quiser conversar comigo sobre O ESTRANHO NO CORREDOR. Devo revelar, de início, que essa história foi longamente elaborada, passei praticamente uma década reescrevendo-a e mudando de títulos várias vezes, porque a queria enxuta, e sabia que seria minha estréia em narrativas longas. Demorou muito, muito pra que eu pudesse publicá-la (tenho uma verdadeira história de suplício de passagens por inúmeros editoras, cuja única coisa que dizem hoje em dia para obras mais sérias é NÃO, "não tem apelo comercial" e ponto final). Mas, podem começar a conversar comigo que terei prazer em ir respondendo tudo...

Roberto Terra Olá, Chico! Parabéns pela vitória, que é "parir" um livro no Brasil. Chico, hoje o mercado é voltado para "o mais vendido" isso é frustrante para quem escreve?

Chico Lopes É frustrante sim, Roberto, como disse pra Helena logo acima. Porque um escritor não tem que estar voltado pra vendas, ou, sem perceber, lentamente, começará a tornar-se um comerciante, só querendo produzir um livro pra aquele público certo que já adquiriu outros seus. Ou seja, correrá o risco de cair numa fórmula. E isso é fatal para a literatura, que tem que ter sempre gosto de aventura e risco...Mas as editoras, atualmente, só querem o garantido, e o garantido, infelizmente, é de baixíssima qualidade...

Helena: Nossa, Chico.Essa de telenovela é de deixar qualquer um desanimado, qualquer um que não traga o sonho bem forte, a vocação de escrever, não é?

Chico Lopes Pois é, Helena, é de desanimar mesmo. Uma vez (já é outra história) um editor, ao receber um pacote dos meus originais, levou um susto. Começara a vida de editor (eles sofrem também) e tivera uma série de adversidades, falindo e sofrendo um enfarte! Pensou que meu pacote trazia cobranças de bancos! Eu não sabia se ria ou chorava dessa história...

Helena: Por falar nisso, vc poderia ajudar nosso leitores a entenderem a diferença ,ou diferenças, entre novela e romance.Afinal seu livro é mesmo uma novela ou um romance?

Chico Lopes A diferença básica que se estabeleceu, na teoria literária, é que a novela seria uma narrativa longa, mas não longa o suficiente para ser definida como romance, e, no entanto, não curta o bastante para ser vista como conto. Ficaria aí num estado intermediário. Mas esta definição, grosso modo, pode ser contestada. Porque alguns preferem achar que a novela é mesmo um romance, só que curto. Eu preferiria chamar O ESTRANHO... de novela...

Roberto Terra Chico de que se trata "O Estranho no Corredor"? O livro foi escrito ao longo de 10 anos. Ele foi sofrendo influência ao longo do tempo ou se manteve fiel a roupagem inicial?

Chico Lopes Caro Roberto: O ESTRANHO NO CORREDOR é uma daquelas histórias que não podem ser resumidas, têm que ser lidas. Trata de uma perseguição, mas claro que não é só isso. É a história de um homem esmagado por uma educação puritana e por uma vida de pobreza e migalhas que um dia acha que está sendo perseguido por um desconhecido misterioso. Por isso, foge da cidade onde mora, grande, pra pequena cidade onde nasceu e viveu com uma tia. Nos dez anos em que foi escrita, as mudanças de trama foram pequenas, ocorreram mais foram mudanças de linguagem, enfoque, diálogos...

Helena: Coitado! Risos para a história do falido. Estou percebendo que vc poderia escrever um livro de grande sucesso, mesmo, ao narrar sua aventuras rsrs Daria até entrevistas ao Jô Soares. 

Chico Lopes Acho que sim, daria um livro, só não sei se não seria como você viu aí, um caso de humor negro...rs

Helena: Diz-se que o escritor tem uma visão , com justa razão, e nós leitores temos outras. O título de seu livro já é uma riqueza. Ele dá margem a interpretações diversas.O mundo pode ser um corredor. Muitas vezes nos sentimos estranhos e não sabemos definir isso. Adorei o trecho em que o personagem manifesta ternura pela prostituta e não ousa manifestá-la , por exemplo.Isso seria estranho para ela também.

Chico Lopes Ah, sim, e eu sou daqueles homens que sempre se afastaram das prostitutas, pois elas me inspiram forte piedade. Aquele trecho eu o fiz com o coração mesmo. É interessante você interpretar o corredor como o mundo. Um outro amigo interpretou o corredor como a metáfora da própria vida errante do personagem, que se divide entre o interior e a capital, a pequena cidade e a metrópole, corredor este no qual surge o estranho. Mas, para mim, esse título deriva de uma coisa que sempre me deu medo - o de me encontrar com algum fantasma hostil em corredores de hotéis. Talvez porque tenha ficado assombrado pelo filme O ILUMINADO, em que, baseado em Stephen King, um escritor enlouquece num gigantesco hotel isolado nas montanhas geladas do Colorado. Dizem que PSICOSE, de Hitchcock, fez baixar as vendas, violentamente, das cortinas de boxes de banheiro na América. No meu caso, O ILUMINADO me infundiu pavor à solidão impessoal e soturna dos hotéis em que a gente, às vezes por força de viagens, se hospeda sozinho... 

Helena: História interessante essa das cortinas.Confesso que fiquei ,um tempo, abrindo a cortina do box devagar rsrsr e sempre me lembrando de Psicose.

Chico Lopes: Creio que foi um terror que afetou principalmente as mulheres. O ator que fez o psicótico Norman Bates, Tony Perkins, jamais se libertou do papel. Ninguém dava muito crédito a ele quanto interpretava outros personagens. Foi uma espécie de maldição... 

Helena: Seu livro é cheio de referencias musicais, de artes variadas. Vamos ter um grande ganho fazendo as pesquisas delas. Costumamos apresentar esse mundo aos leitores interessados. Quando vc escreve, essas referencias vão surgindo naturalmente? Ou é suado, pesquisado?

Chico Lopes Não, Helena, são lembranças que vão me surgindo naturalmente, e, em geral, ajudam a compor o personagem, aproximando suas predileções musicais e outras da vida que ele leva e introduzindo, a partir destas, um comentário às vezes irônico (principalmente quando a situação não é romântica, mas uma canção romântica a acompanha; eu gosto desses contrastes...) sobre a sua vida. Como sou pintor e um grande apreciador de música e cinema, e tenho uma memória de elefante pra letras de música, filmes, referências da história da arte etc, estas coisas vão recheando minhas narrativas com naturalidade.

Novaes/ Oi Chico Lopes, boa noite. Ainda não terminei de ler, mas estou gostando do seu estilo e dos personagens que você criou. Esse Russo é uma figuraça, hein? Você já conheceu alguém como ele?

Chico Lopes Ah, Novaes, conheci sim. Me inspirei em vários amigos meus que eram bastante debochados e botequeiros e noctívagos. Creio que Russo, apesar de sua falta de caráter, é uma figura interessante, porque paralelo a isso tem uma dose de generosidade e de loucura que atrai o personagem principal, que é muito travado, reprimido...Quis ali criar um contraponto entre um homem cheio de escrúpulos, penitências e recalques com um outro todo desinibido e doidão...

Novaes/ Ficou muito bom, parabéns. Estou no início do livro, mas a existência desses 2 polos (um travado e outro meio escrachado) dá uma movimentação interessante na história. Lendo acima sobre o título do livro, achei interessante porque se o personagem foge pra sua cidade natal (não cheguei nessa parte), então podemos considerar que ele é um "corredor" (pois correu, fugiu) e talvez haja "um estranho" dentro dele mesmo... Será? (Deixo essas obs. mas terei que me afastar do micro agora - vou buscar uma filha num cursinho - volto depois) Abs!

Helena: Gostei de ver o Russo filósofo tb.Bem interessante mesmo. Chico, sei que já fez isso, mas poderá repetir?Onde adquirir seu livro O estranho no corredor?O Concièrge ainda terá para vender?Tem alguém me dizendo que vai adquiri-lo.

Chico Lopes Atualmente, ele pode ser comprado nas redes Saraiva e Cultura em S.Paulo. Também pode ser adquirido na própria editora 34 com eliete@editora34.com.br e, no Rio de Janeiro, creio que algumas livrarias (como a Travessa) terão. Pode ser encontrado com facilidade em indicações de livrarias na Internet, pelo que tenho reparado.

Novaes, tua interpretação aí do corredor é interessante e enriqueceu a visão do livro. Ótimo. Sem dúvida, há um estranho dentro dele mesmo, como há um estranho dentro de todos nós. Basta lembrar o brado do poeta Rimbaud, efetivo para a modernidade literária de um modo decisivo - EU É UM OUTRO...

Roberto Terra Vejo corredor como uma ligação, túnel do tempo, um "religare" que dependendo do sentindo gera muito medo pela quantidade de portas que poderão existir ao longo desse percurso... Pior medo seria se deparar com a imagem de si mesmo no meio do corredor. Vou comprar o livro, Chico, depois voltarei com substância rs

Chico Lopes De fato, Roberto, o sentido de ligação do corredor é bastante forte, na narrativa. É uma passagem, estreita, difícil, penosa mesmo, como metáfora, e também a figura do estranho permite que você veja a história sob múltiplos ângulos, creio. Mas é claro que vou querer que você leia primeiro pra fixar teu ponto de vista...

Novaes/ Sim, Chico Lopes, percebi que o Russo também guarda um "estranho" dentro dele, quase explícito, com aquelas "brincadeiras" estranhas dentro do banheiro masculino... Um personagem interior que parece beirar a realidade, reprimido apenas por uma fina película de censura consciente... Ou seja, ele também vive uma forma de tensão interior, como o personagem principal. Legal essa dinâmica!


Evandro: A interpretação que fiz cá com meus botões foi que o estranho é o próprio protagonista e que sua verdadeira, digamos assim, alma, é o estranho que o persegue, que foi banida do seu corpo pelos recalques, pela educação puritana rigorosa, etc. Essa sombra que o persegue é ele mesmo e enquanto ela não é restaurada ele foge de tudo e de todos, buscando refúgio na bebida, por exemplo. Quando enfim decide enfrentar sua própria sombra, aí eu não sei se ele se liberta e se encontra ou se enlouquece de vez. A interpretação do final fica a cargo de cada leitor. 

Chico Lopes Evandro, acho muito boa a tua interpretação, mas eu não fecho com interpretação alguma, porque gosto da multiplicidade das leituras e de ficções que oferecem camadas e mais camadas de significados possíveis. Neste ponto, tomo o partido da realidade, que, a meu ver, nunca é tão sólida e unívoca quanto se pensa, e um de meus mestres literários maiores é Henry James (até traduzi A volta do parafuso para a Landmark, editora, em 2004), que pregava essa ambiguidade, essa polissemia. Também sou adepto dos finais em aberto, porque penso que a vida real nunca nos apresenta finais e sim desfechos provisórios, porque tudo continua e tudo é entretecido de ilusões e delírios. 

Evandro: Por isso e pela qualidade da escrita é que achei teu livro esplendidamente literário! 

Chico Lopes Exato, foi exatamente isso que procurei: a força da linguagem, acima de tudo. A linguagem, mais que o enredo, tornou-se a pedra fundamental da literatura contemporânea. Eu gosto de ler uma história bem contada, como todo mundo, mas o avanço da literatura modificou muito tudo isso - conta-se uma história, arma-se uma trama, mas o interesse é sobretudo o estilo, que é capaz de engendrar um mundo autônomo, pertencente só a um dado escritor, como uma marca de identidade intransferível. 

Helena:  Adorei A volta do parafuso e acho mesmo que a grande virtude do livro está nessas todas possibilidades, Chico, que ele oferece. Chico, se seu livro fosse um quadro famoso, qual seria ele?rsrs 

Chico Lopes Puxa vida, Helena, pergunta difícil de responder. Mas, como sou pintor e admiro muito certos grandes pintores, eu não diria que escolheria um quadro apenas, mas sim obras de, por exemplo, Edward Hopper, hiper-realista que mostra muito a solidão das pessoas em cenários metropolitanos americanos, bares, quartos de apartamentos etc., ou de alguns pintores expressionistas como Ensor, Kirschner, Munch. Creio que, se uma escola estética me influenciou muito, esta foi o expressionismo, e em seguida o surrealismo, na pintura. E isso tem reflexos em minha literatura. Gosto de seguir o preceito de Kafka, que dizia que "o que faz o monstruoso é a naturalidade com que é apresentado". Você conta uma história fantástica como se realista fosse, em resumo...O plano em que ela ocorre é o da realidade, mas exacerbada de tal modo que chega ao delírio e à desfiguração, alterada pela visão paranóica ou sofrida dos personagens... 

Helena:  Munch...é desse que falo! Muito bom!! 

Chico Lopes De fato, "O grito" me atrai muito, mas é a obra toda dele que é impressionante, viu, Helena? Sugiro que você adquira o livro EDVARD MUNCH, de Ulrich Bischoff, que existe nas livrarias pela editora Taschen. Traz o GRITO na capa e é magnífico... 

Helena: Esse quadro é o final do livro!rsrsr 

Chico Lopes Sabe que lembra mesmo, Helena? (risos) 

Evandro: Chico, confesso que senti um certo estranhamento lendo teu livro. Minha avó tinha sobrenome Lopes e meu avô era Paiva e se tornou alcóolatra, morrendo em consequência disso. A certa altura do livro me perguntei: será que o Chico Lopes conhece a história da minha família? Adicione-se a isso o choque civilizacional sofrido pelo protagonista que não se adapta na cidade grande e volta para o interior, onde também não encontra mais espaço para levar sua vida a contento, experiência que vivi, voltando para o interior e depois retornando. As viagens noturnas de ônibus, as estações rodoviárias, os pés-sujos onde fazemos amizades de conversa fiada e birita, a relação provinciana com os conhecidos que não são amigos propriamente ditos, mas compartilham uma enorme quantidade de vida comum, já que no interior todos parecem saber da vida de todos, etc. Em suma, quando peguei teu livro para ler pensei: vou ler rápido este livrinho, e o livrinho virou um livrão que me atordoou. Mas no meio de toda esta identificação com a história, me pegava às vezes flutuando em algum trecho de puro valor literário, de musicalidade da escrita. Noutras partes você pegou pesado, usando de linguagem de casa da luz vermelha, de baixo calão. Acho que teu livro vai bombar na nossa reunião de Maio. Bem, e pra não deixar de fazer uma pergunta, aí vai: você se sente um estranho no nosso clube de leitura ou os estranhos somos nós? 

Helena: O quadro é o ápice perfeito! Olhando o que diz Evandro, ainda acrescento, sua descrição da cidadezinha na chegada foi uma das partes de que mais gostei.Um primor. 

Chico Lopes Evandro, legal isso que você disse, pois tudo ali é ficção, Paiva foi só um sobrenome comum que me ocorreu e que me pareceu verossímil para a narrativa, e sou Lopes, que é um sobrenome bastante corriqueiro, não? Mas é curioso como a gente, no processo de fantasiar, acaba atingindo o particular de muitas pessoas. Também morei (na verdade, tentei morar) em SPaulo uma época e, desesperado, acabei voltando pra minha terra natal, no interior de SP, a pequena Novo Horizonte. Mas eu sou bem pouco daquele professor (ela, pra começar, é um sujeito magro, e eu sou gorducho rs rs) Eu sempre faço ficção com alguns elementos de realidade, mas encontro gente que, lendo tal ou qual conto meu, jura que eu me baseei em fulano ou sicrano conhecido etc e tal. Acho que, quando você mergulha com força na realidade da criação, acaba atingindo o inconsciente coletivo, de certo modo. Não me sinto um estranho no clube de vocês, não (acho uma iniciativa muito interessante isso, propiciando um debate com os escritores que é necessário e sadio existir). E nem acho que vocês sejam estranhos. Ou, grosso modo, somos estranhos, bizarros, todos os que gostamos de literatura num país tão iletrado... 

Chico Lopes Helena, me esmerei muito naquela chegada à cidadezinha. Na verdade, ele já a conhecia, mas a revia, e ela estava sendo apresentada ao leitor - portanto, era necessário captar, por assim dizer, a cor local não apenas no sentido físico, mas também psicológico...

Novaes, de fato, há uma ambiguidade sexual nem tão velada no Russo. E, se você prestar atenção mais à frente, é muito ambígua a atitude dele dando Carla de presente, por assim dizer, ao professor. Outra coisa: quando naquele bordel, ele brinca dizendo ao professor que podiam ter feito um menáge etc e tal. Ele não é um homossexual, mas, como muitos machões, reprime essa faceta através de gozações e escárnios que são, em parte, reveladores de uma fantasia reprimida.

Helena: Vou destacar um dos trechos mais perfeitos , quando fizermos as fotos dessa reunião.

Chico Lopes A respeito desta observação de Novaes Barra, aliás, quero acrescentar que um personagem literário só é satisfatório quando não é chapado, isto é, quando tem várias camadas e pode ser visto sob vários ângulos, tal como uma pessoa real, coisa que nunca, a rigor, chegamos a conhecer direito nesta vida. Aprendi isso em Dostoiévski, que faz com que um mesmo personagem seja adorável, palhaço, assassino, incestuoso e tudo que se possa imaginar, mas não perde a grandeza humana, o mistério múltiplo que cada ser carrega...E em Dosto. a gente vê como um personagem se derrama, se confessa e, no entanto, jamais deixa de nos seduzir, mesmo confessando as coisas mais miseráveis...

Helena: Pois é, já falamos sobre isso, em outra oportunidade, esse perseguidor,lembra o perseguidor do personagem principal de Crime e castigo. Aproveitando mais ainda de seus saberes , Chico, fale de seus autores preferidos, que lhe inspiram, acordam a vontade de escrever, por favor.

Chico Lopes Ah, Helena, eu tenho muitos autores que vivo relendo. O elenco começa com Proust, meu favorito, e depois Dostoiévski, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Henry James, Julien Green, Carson McCullers, Truman Capote...Também faço muitas leituras de autores policiais ou de terror como Stephen King, Ruth Rendell, Patricia Highsmith, H.P Lovecraft. E tenho mania de livros sobre cinema (é o tipo de presente que mais gosto de ganhar, filmes sobre filmes, astros e cineastas). Também curto ensaios literários como os reunidos no livro UM DEUS SELVAGEM, de A.Alvarez (que versa sobre suicídios na literatura) ou ensaios e palestras do grande Jorge Luis Borges. Recentemente, descobri escritores italianos que estão me deixando de queixo caído como o Dino Buzzati, o Italo Svevo...Mas, pra dizer a verdade, sempre fui um leitor muito eclético. Só que, quando a gente quer ficar em companhia realmente valiosa, sempre volta aos grandes, né?...

Helena: Esqueceu dela, da grande....rsrsr

Chico Lopes Quem seria? Virginia Woolf, Clarice Lispector? Bem, eu gosto das duas... rs

Chico Lopes O curioso é que comecei escrevendo poesia, mas hoje em dia quase não leio mais poesia (o que considero uma certa perda). Mas, sempre me lembro de trechos de Pessoa, Drummond, Quintana, e me encanto novamente com eles. Mas não tenho muita paciência pra ler poetas que não conheço. Também considero isso uma falha minha. Parece que a prosa me pegou pra todo sempre, e, no entanto, não gosto de prosa desprovida de poesia...

Helena: O Clube leu faz tempo(minha indicação) ITALO SVEVO: A consciência de Zeno.

Chico Lopes Helena, é um clássico, um livro maravilhoso (o pretexto tão simples, de procurar um psicanalista pra deixar de fumar, puxa aquela investigação psicológica de um homem medíocre tão completa)...Mas, agora, como disse, estou me retirando. Boa Noite pra todos! Good night/sleep tight...

Rosemary: Livro comprado. Preciso aguardar 6 dias úteis. Será uma experiência nova esta de ler e poder conversar com o autor. Santa tecnologia.

Chico Lopes Rosemary - Gosto do facebook porque me põe em contato com um monte de gente e me permite esse acesso ao que os leitores pensam e sentem. É uma experiência tremendamente enriquecedora. Pensemos apenas no passado,quando escritores de geografias diferentes e distantes tinham a maior dificuldade de saber a mera existência uns dos outros e tinham que, no máximo, esperar cartas pelo Correio que podiam durar meses pra manter um diálogo. A tecnologia é fascinante por essas coisas...

Chico Lopes Oito e vinte e cinco da manhã e já estou disponível pra perguntas da turma daqui do Clube ao longo do dia. Podem me abordar, os que quiserem. Abraços 

O escritor Chico Lopes, que residiu por 18 anos em Poços de Caldas, onde se destacou como escritor, jornalista e comentarista de cinema no Inst. Moreira Salles - Casa da Cultura, estará de volta à cidade para uma palestra no dia 3 de maio, na Feira do Livro de 2013, no Complexo Cultural da Urca. 

A palestra versa sobre PRAZERES E DESCOBERTAS DA LEITURA DE CONTOS E ROMANCES e nela o escritor falará de sua experiência como contista já veterano e romancista estreante. Vindo de uma carreira de três livros de contos bem saudados pela crítica, o escritor estreou em 2011 com o romance O ESTRANHO NO CORREDOR, que lhe valeu um lugar entre os dez finalistas do Prêmio S.Paulo e um Jabuti na categoria romance em 2012. Chico falará com o público sobre sua passagem de um gênero para outro e dará seu ponto de vista sobre os prazeres dos diversos gêneros literários. 

A palestra será às 14, 30 do dia 3 e o autor sorteará livros de sua autoria entre o público participante.





Evandro: Chico, bom dia! Em relação ao que você mencionou anteriormente, sobre a força da linguagem, o estilo de cada escritor, pertencente só a ele, como uma marca de identidade intransferível. Isso é algo adquirido ao longo da formação do escritor e que permanece posteriormente ou se transforma incessantemente ao longo de sua vida? Fale um pouco dos ingredientes que atuam nesse fiat lux de um escritor, por favor. Existe algum grande escritor que tenha transformado essa assinatura ao longo da vida de forma a não ser possível reconhecê-lo se não soubermos a priori que ele é o autor de determinado livro?

Chico Lopes Evandro, eu acredito que todo escritor padece muito para encontrar a sua própria voz (quer dizer, seu estilo) em meio às muitas vozes (influências) que vai recebendo ao longo de sua vida. Na minha experiência pessoal, rasguei tentativas e mais tentativas de contos e novelas até que, aos 48 anos (e aí somente), reuni um livro de contos, incentivado pelo Inst. Moreira Salles de Poços de Caldas, que foi publicado (Nó de sombras, IMS/SP, esgotado). Tive a chamada estréia tardia, que é melhor,nesse caso. Hoje em dia, a pressa domina e os escritores estreiam rápido, mal terminam um texto já vão desovando-o na Internet ou transformando-o em livro. Acho isso prejudicial. Porque um estilo se faz de muita tentativa e erro, muitas relutâncias e escolhas, marchas e contramarchas. E, assim que ele é obtido, não pode ser dado como absoluto, já que o aperfeiçoamento natural que a gente busca pode modificá-lo num ou outro aspecto, mas eu diria que não substancialmente (o estilo é um pouco fatídico, ele é o próprio homem, dizem alguns). Há escritores que, com um talento múltiplo, sim, se comprazem em despistar o leitor de seu verdadeiro estilo - basta citar o caso de heterônimos de Fernando Pessoa. Mas creio que, por mais que a forma possa mudar e o escritor manipulá-la a seu bel prazer, quando o talento se une à versatilidade, o conteúdo dificilmente muda - as escolhas psicológicas, temáticas, que fazemos, nos definem melhor que a forma adotada.

Eu diria que um estilo é fruto do tempo sim, e, assim que conquistado, é tolice não ser fiel a ele.

Helena Martins: Chicoooo, rsrs Aqui no Clube, costumamos classificar os livros em femininos e masculinos. Obviamente, constato ser seu livro voltado para o masculino, o que muito me agrada, pois tão poucos homens manifestam coisas desses mundo de forma tão sincera.Claro que ele não se limita ao universo masculino.Vemos até o quanto pesa sobre ele a influencia da mulher (mãe, mulher, irmã), em geral manipuladora dos sentimentos masculinos. Vc aborda em seu livro questões que poucos homens ousam declarar:preocupaçãocom tamanho do membro, fantasias, cobranças de amigos, um mundo masculino erguido em cima de padrões. Ser diferente deles, não querer prostitutas, por exemplo, faz do homem um estranho. Uma das coisas que mais agradou em A Ilha sob o mar, foi um dos personagens não querer relação artiificial com a prostituta(coitado foi enganado!). SER SENSÍVEL, em geral , é algo rejeitado pelo macho. Como vc vê essa questão nos dias de hoje? As coisas mudaram? A literatura tem colaborado como para isso?

Chico Lopes Helena, não sei se a evolução masculina foi grande. Percebo quase sempre os mesmos problemas de afirmação, tamanho de membro, fantasias de onipotência, estupidez crassa, coisas bem características da couraça masculina. Mas me sinto um desses homens que pouco se importam em se afirmar como machões, não tenho pejo em lavar louça e fazer outras tantas coisas pra minha mulher, tenho uma filha que foi criada pra ser independente e não ficar deslumbrada por homens e que está se revelando uma intelectual - em suma, minha família é bem pouco típica, no quadro brasileiro. Acredito que todos os homens que se dedicam à arte têm uma sensibilidade mais livre, permitem-se mais nuances de emotividade, o que não significa necessariamente que tenham que ser homossexuais. Mas, tanto na questão da libertação das mulheres quanto na libertação masculina (porque o machismo parece privilégio, mas pode ser um senhor fardo também), acho que a sociedade brasileira vai a passos de tartaruga - avança um pouco e logo vem com contramarchas. Eu quis pintar o personagem do ESTRANHO NO CORREDOR como um homem colhido entre essas contradições, ele não se sente bem com o mundo masculino de modo algum, mas é sensível ao encanto das mulheres (só não as quer submetidas e avacalhadas) e, no entanto, sofreu uma formação puritana e rígida demais, donde suas inibições (creio que a cena em que mantém relação sexual com Carla é bem reveladora disso). A sua homossexualidade, se existe, é muito reprimida. Ele me parece mais um homem com medo de sexo, qualquer sexo, porque teme abrir as comportas de sua intimidade.

Chico Lopes Helena, complementando, quero dizer que não aceito bem essa divisão rígida entre livros masculinos e livros femininos. Será tão visível a fronteira? Como analisar, p. ex, Madame Bovary e Ana Karenina, clássicos escritos por homens e no entanto tão sensíveis às questões femininas? Orlando, de Virginia Woolf, é genial, porque o personagem vai virando homem e mulher com o passar do tempo, uma criatura fluida, e ela ironiza muito essas divisões de sexo (ao menos do ponto de vista psicológico, parece haver muita arbitrariedade nessas dicotomias). Enfim, isso me parece dúbio...

Helena: Gostei, claro, Chico.Sobre essa questão da divisão dos livros srsrré mais uma brincadeira, uma tentativa, mas percebemos que quando falamos dos homens também falamos da mulher.Nada muito rígido, viu? É mais uma provocação, uma chamada para essas divisões.Alguns acham que tal escritor tem alma feminina, outros alma masculina. Eu diria que vc tem alma humana.Ah, estou amando Orlando.

Chico Lopes É verdade, Helena, creio que a questão que se coloca é até onde somos humanos, não até onde somos masculinos e femininos. Isso é sexismo, e não nos leva a lugar algum. Precisamos de mais GENTE e menos classificações rígidas. Quase sempre os militantes disto ou daquilo, gay ou woman lib, acabam caindo em extremismos e simplificando e enrijecendo as questões. A liberdade humana, o amor humano, é o que conta.

Helena: "A liberdade humana, o amor humano, é o que conta."Viva!!

Chico Lopes Viva! Temos que afirmar esta liberdade, este amor, este humor, esta tolerância, esta abertura, o tempo todo...

Chico Lopes Bem, mas passei da hora e estou indo dormir. Boa noite pra todos...

Helena: Obrigada por nos disponibilizar seu tempo, por mais este dia. Boa noite!

Helena: "Em entrevista, o autor (Autran Dourado) certa vez declarou: 

Meus personagens se parecem muito comigo. Eu os conheço muito bem e sofro a angústia que eles sofrem. Não tenho nenhum prazer em escrever. Depois de pronta a obra, aí me dá uma certa satisfação, mas a mesma que dá quando se descarrega dos ombros um fardo pesado. [...] (Escrever é) também uma fatalidade. Você é destinado à literatura, e não a literatura a você. [5] "E para Chico Lopes, o que é escrever?

Chico Lopes Concordo em grande parte com o Autran Dourado. Livros verdadeiros têm muito de auto-exorcismo, a gente os escreve para entender melhor os próprios demônios, mas não é certo que, ao fim, entenda-os melhor que os não-escritores. Há, porém, um grande prazer em escrever, o prazer de encontrar palavras certas para sensações, coisas, situações, almas, e um toque de libertação (moderada, mas essencial). E acrescentaria a essa questão de destino que há na atividade literária, uma frase célebre de Dostoiévski: "A gente não possui o tema, o tema é que nos possui".

Helena: Amigos, nosso querido Chico estará por aqui respondendo sempre, à medida que perguntarmos, até o fim do mês.Quem ainda não leu o livro fique tranquilo.Haverá tempo.

Evandro: Olá Chico Lopes, boa noite! Gostaria de saber o que sente um autor ao se encontrar com seus leitores? Há diferença se a interação é virtual, como está sendo aqui no Facebook com os leitores do CLIc, ou se a interação se dá tête-à-tête, como seria no dia da Reunião com cerca de 30 leitores?

Chico Lopes: Para mim, é nova esta experiência de encontro com leitores pelo facebook, e vem me parecendo bem interessante. Porque sinto que penso melhor escrevendo do que falando...Evidente, perde-se muita coisa com a comunicação sem olho no olho, mas ganha-se outro tanto. Acho que vocês têm feito observações enriquecedoras sobre o livro e me sinto muito com isso...Infelizmente, não poderei estar na reunião, mas espero que esse encontro pelo facebook possa compensar minha ausência.

Helena: Chico , boa tarde. Trago a pergunta de um amigo comum(ele, como vc sabe, não tem Facebook).Carlos M Rosa pergunta:Chico, tirando as questões mundanas, que afetam todos nós, o que te persegue?

Ceci: gostaria de saber um pouco sobre o que te "moveu" a escrever o livro

Chico Lopes: Oi, Carlos, grande cara, não sei se entendi bem tua pergunta. Creio que as questões mundanas, se compreendi por coisas do cotidiano e da sobrevivência, são as que mais ferram um escritor sim, roubando-lhe o tempo que poderia dedicar à literatura e impedindo-o, aliás, de fazer isso, principalmente se ele não for um daqueles herdeiros folgados que o Machado de Assis tornou personagens de seus romances...É preciso lutar pela sobrevivência, e isso já nos mutila muito. Não sei se sou perseguido por nada além disso. Posso falar não do que me persegue, mas do que persigo: edições de maior penetração, com mais leitores e mais atenção dos críticos que importam e a possibilidade de relançar meus três livros de contos, que apresentaram vários defeitos de revisão e eu quero reescrever em muitos pontos...

Chico Lopes: Ceci Lohmann: Escrevi o livro O ESTRANHO NO CORREDOR meio que movido por um sentimento de paranóia (tenho cisma medrosa com corredores, elevadores e lugares fechados em geral) e um desejo de recontar meu passado através de um personagem fictício. Parcialmente, até que realizei isso, mas a ficção tem uma maneira sorrateira de se colocar à frente da gente e nos ludibriar, porque o livro foi ganhando forma própria e o personagem começou a deixar de se parecer comigo...Também queria mostrar como não há muita saída para certas pessoas oprimidas, seja na cidade grande, seja na pequena, e como é preciso romper com tudo que nos formou. O livro é um brado contra um atavismo infeliz...

Ceci: Oi Chico...obrigada por sua resposta..queria saber se vc nao viria para a Reunião..acho que seria muito importante para nós

Chico Lopes: Tenho no dia 3 um compromisso há longo tempo assumido com uma palestra na Feira do Livro em Poços de Caldas...Mas creio que ainda algum dia poderei aparecer em Niterói, mas de repente...

Ceci: Seria maravilhoso..Ah! Estive pensando em ir la...gostei muito de conhecer seu livro,ou seja sua criação bem como o autor

Concierge Clic: Bom dia, Chico Lopes! Uma honra e um prazer tê-lo aqui no CLIc interagindo conosco! Eu gostei do paivinha! Algumas leitoras, no entanto, me disseram que não gostaram dele, o acharam problemático, confuso, fraco, alguém que foge da vida, um anti-herói. Paivinha não parece ser o tipo de homem que agrada as mulheres! rsrsrs. Você acha que o fato de não se identificarem ou admirarem o protagonista pode fazer com que as pessoas digam que não gostaram do livro independente da qualidade literária do mesmo? De forma reversa acontece quando se gosta de livros de péssima qualidade literária mas que contam uma história que agrada as pessoas. Hmm, acho que acabei chegando à questão: o que é literatura?

Chico Lopes: Concierge: Não creio que um escritor sério, ao conceber um personagem, se preocupe muito com a questão de que ele será amado ou não pelos leitores. Isso cabe em geral aos escritores que querem cativar e adular o público e não são fiéis a si mesmos nem à arte literária. Um escritor cria seu personagem por uma necessidade interior impositiva, e não sabe o que o mundo pensará dele em nenhum momento, pois este é um julgamento que não lhe cabe. De fato, meu personagem é um anti-herói, e em geral prefiro gente assim, com um pé na realidade (personagens muito heróicos e idealizados não são mais que mentiras para entreter os desejos de compensação fantasiosa dos leitores). Controvérsias de leitores à parte, literatura é arte, e arte comprometida (no meu caso) com mergulhar profundamente na realidade. É possível que muita gente desgoste de Madame Bovary, por seu suicídio ou por outras razões, e do Brás Cubas, por sua ironia e cinismo, mas eles se impuseram por si mesmos acima e além disso. Claro que meu livro é bem menor que esses, mas eu procurei ser honesto. O resto não me cabe dizer, cada leitor reagirá do modo que achar melhor.

Helena: Chico, desculpe fazer vc ler isso primeiro:A Intimidade do EscritorHá quase um ano sozinho, na antiga vida de solteirão. Tem sido duro, mas útil. De vez em quando faz-me bem estar só e desamparado. É nessas horas que sinto mais profundamente a significação de uma mulher ao lado do artista. A história literária exibe prodigamente o cenário feminino e mundano que aconchega os criadores e lhes embeleza a vida. Mas diz-nos pouco das companheiras quotidianas, domésticas e anónimas, a verem nascer a obra, a aquecê-la com chávenas de chá, e a renunciarem à alegria de a conhecer na emoção virginal de um leitor apanhado de surpresa. E nada de mais significativo e decisivo do que essa ajuda e do que essa renúncia. As Récamiers são o estímulo de fora, higiénico e lisonjeiro; enquanto que as outras, íntimas e apagadas, empurram o carro trôpego da criação debaixo de todos os ventos, e sem aplausos no fim. O seu lema é a aceitação calma e confiante dos desânimos, dos rascunhos, das mil tentativas falhadas. E quando a obra, finalmente acabada, empolga o público, já tem atrás de si um tal cansaço, uma tal soma de horas desesperadas, que só com um grande amor a podem ainda olhar. 

Por esse amor não existir, é que a mulher de Tolstoi disse a conhecida barbaridade: «Vivi quarenta e oito anos com Lev Nicolaievitch sem chegar nunca a saber que homem ele era». De qualquer maneira, estou só, e sinto-me em penitência. Considero-me a cumprir a pena de usufruir um bem anos a fio, e só de vez em quando ter consciência dele.Miguel Torga, in "Diário (1947)"

Helena: A companheira de Chico Lopes o conhece enquanto escritor ? Que importância tem sua esposa para seu trabalho literário?Dizem sempre haver uma grande mulher atrás de um grande homem.

Chico Lopes: Oi, Helena: Minha mulher conhece sim, e acompanha meu trabalho com atenção. É uma boa leitora, aliás, e nós fazemos aquele casal que passa livros de um pro outro. Tem um trabalho nos Correios que em nada tem a ver com Literatura, mas admira muito arte em geral, e tem grande sensibilidade. Para mim, a importância dela, como esteio emotivo, é gigantesca, tanto que meu primeiro livro de contos, NÓ DE SOMBRAS, foi inteiramente dedicado a ela.

Evandro: Olá Chico, boa noite! Você poderia nos mostrar uma de suas criações pictóricas? Você conjuga suas criações literárias com as pictóricas?

Chico Lopes: Eu bem que tento, Evandro, e até comecei como pintor e desenhista, e a literatura foi vindo depois. Mas a Literatura engolfou minha atividade de pintor, e hoje pinto menos do que já pintei no passado, quando fazia exposições com certa regularidade. Vou ver um site (não me lembro agora o endereço) onde há imagens de quadro meus e passarei pra você por aqui, oportunamente. Creio que a pintura, aliás, está presente no que escrevo, contos e novelas. Eu sempre gosto de descrever, de pintar com palavras, por assim dizer, locais, pessoas, situações de muita vividez, muita cor.

Evandro: Aproveito, então, para pedir antecipadamente permissão para transportar a pintura lá pro blog do nosso clube. Sabe como é, a maioria não tem Facebook, e gostaria de acompanhar o que está sendo dito e mostrado aqui. Cinco pessoas me ligaram de ontem pra cá perguntando como adquirir teu livro. Disse a elas sobre a entrevista e que você informava aqui como comprar o livro, mas apenas uma tinha facebook. Cá pra nós, que ninguém nos leia, tem muita gente mimada no CLIc. Teu livro foi escolhido há quase 3 meses atrás. Apesar disso, são todas pessoas adoráveis!

Rosemary T: Bom dia Chico Lopes, comecei a ler o estranho no corredor e se não estivesse lendo com olhos de uma "clic ana" eu teria engolido seu livro, mas estou saboreando os personagens que são muito bem elaborados. Minha pergunta para o escritor é: você faz anotações diárias? Quando você tem um insight você anota imediatamente ou consegue reter na memória?

Chico Lopes Eu tenho confiado na minha memória pra essas coisas, Rosemary. E gosto de reler muito o que escrevo, sempre à procura de uma coisa que eu chamaria de naturalidade, que outros talvez chamassem de fluência. Imagino sempre que a leitura deva ser uma experiência agradável para o leitor, ainda que o tema do livro possa ser sombrio. Então, trabalho muito no sentido de aclarar as situações e ao mesmo tempo deixá-las mais sugestivas. Creio que grande parte do trabalho de criação só se completa é na cabeça do leitor - preciso da cumplicidade dele. Às vezes anoto uma boa ideia sim, mas em geral minhas ideias nascem muito no calor da escrita. Depois, releio tudo e faço as correções necessárias (não só as gramaticais, porque de repente dou uma nova característica a um personagem, mudo uma fala etc).

Rosemary T: É estou percebendo seu estilo e também, sinalizada pela Elô me chamou a atenção de que seu livro é masculino, é a voz do homem. Não gosto de personagens muito adocicados, todos nós temos o sombrio e encontrar isso em um personagem me faz elaborar as minhas sombras. Instigada por Rita De Cassia Magnago, tenho tido insights sobre os textos que ela está me estimulando a escrever mas não anoto e depois esqueço.

Helena: Adorando nossa entrevista!Obrigada ,Chico, por suas respostas prazerosas e elucidadtivas!Obrigada aos participantes interessados na leitura.Obrigada aos leitores dela.

Chico Lopes: Rosemary, creio que v. toca num ponto importante aí - é um livro masculino, mas elabora exatamente essa formação do masculino (feita de asperezas, repressões, dores, hostilidades) na alma de um homem de um modo crítico. Eu acho que tanto a feminilidade quanto a masculinidade são construções extremamente sofridas de nossa sociedade, elaboradas com muitas lacunas, contramarchas e penas. Meu personagem se sente desajustado no mundo masculino, porque a sensibilidade sua o leva ao escrúpulo (que em geral, entre machos, é sinal de fraqueza) e à compaixão. Mas também incluí uma visão negativa da feminilidade na figura da tia dele, que é terrivelmente puritana e repressiva e, de certa maneira, o "emasculou" inculcando nele seus temores e repressões. A sociedade da cidadezinha de V. é terrivelmente atrasada e preconceituosa e ela é uma encarnação daquele mundo mesquinho e negador dos prazeres. E ele precisa se libertar tanto do masculino quanto do feminino negativo.

Rosemary T: Mas ele também tem uma questão com o pai e com a mãe que ainda não foi explicada (até onde eu li) quando ele rasga a foto deles. Perfeita a leitura do perfil psicológico dos personagens. No entanto, quero acrescentar aqui, que nas grandes metrópoles e nos dias de hoje, é fácil encontrar pai/mãe que tiram o poder dos filhos mantendo eles para sempre sob seu domínio. Espero que ele consiga se libertar. Obrigada pelas respostas e pela atenção.

Chico Lopes: Rosemary (continuando) Os homens, em geral, na nossa sociedade machista, não colocam a masculinidade como um drama, mas como um dado natural - porque naturalmente se sentem favorecidos pelas permissividades injustas que recebem desde meninos. No entanto, pagam um preço muito alto por sua dureza, por sua macheza, perdendo muito em sensibilidade e não chegando nunca a entender a alma feminina (tantos são os casais sem o menor entendimento!). Com meu livro, quis mostrar que a masculinidade, no caso de um homem sensível, se desenvolve e evolui como um drama de identidade renovado a cada momento, um tormento e uma expiação que ele tem que transformar em algo positivo, num aprendizado bem sofrido. Esse drama pode até passar pela homossexualidade (porque há sempre um desejo velado, uma inveja e uma admiração dolorida entre homens que em geral zombam de si e se hostilizam), mas pode não se deter aí e se estender a toda uma série de dramas psicossociais.

Chico Lopes: Obrigado digo eu, Rosemary. Verdade que ele tem ressentimento do pai ausente e da mãe que cedo sumiu de sua vida (você entenderá melhor as coisas à medida que for avançando). Você verá que a tia acaba acumulando essas funções pai/mãe de modo bem sinistro, infelizmente...

Rosemary T: Perfeito, muito bom entrar na pele deste homem e sentir suas fraquezas.
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Leia aqui o mais completo comentário que saiu na crítica literária até hoje sobre o livro "O estranho no corredor" de Chico Lopes, segundo o autor.