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29 de abril de 2023

Livros, leitores e literatura: entrevista com Benito Petraglia

Publicado originalmente em 19/07/2013

By: Rita Magnago

O CLIc traz para você entrevista exclusiva com Benito Petraglia, participante presencial renomado por fazer verdadeiras autópsias dos livros, desvendando mensagens implícitas, referências cruzadas e ajudando a dar ao texto um conteúdo ainda mais rico e diversificado.

Figura polêmica, Benito, doutor em Letras pela UFF, também é famoso por suas críticas contundentes às obras e é ardoroso defensor da literatura nacional, mais especificamente, do romance.

Conheça um pouco do que ele pensa sobre livros, leitores e literatura. E fique à vontade para saciar sua curiosidade com mais perguntas. Está feito o convite.




Para você, o que é a boa literatura?
Pra mim uma boa literatura é aquela que conjuga de maneira harmônica e justa forma e conteúdo. Engenho e arte nas palavras de Camões. Muitos não prestam a devida atenção à forma ou ela passa despercebida, mas é ela que dá a coerência interna ao romance. Falo romance porque é o gênero principalmente lido no clube. Além disso, deve apresentar uma visão problematizada da vida. Costumo dizer, brincando, que, na divisão cultural do trabalho, o escritor é aquele que sofre por nós, os leitores.


Na sua opinião um leitor comum tem plenas condições de aproveitar uma obra literária? Por quê?
Totais e absolutas. Os maiores críticos, que considero grandes leitores, não tinham formação acadêmica específica: Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, que reputo o maior (tinha inicialmente formação em sociologia). Acho que é sobretudo uma questão de gostar com gosto, gostar muito.


Para um leitor que deseja mergulhar fundo num livro, que sugestões você daria?
Respondo unicamente com minha experiência individual. Três coisas são necessárias: reler, reler e reler. Acrescento uma quarta: reler. A primeira leitura nos dá um panorama geral do texto e alguma ênfase especial que o autor dá ao livro. As leituras posteriores aprofundam o panorama geral, destacam a ênfase especial. Eu também anoto o que considero importante, maneira de fixar estes pontos. Finalmente, a atitude, falo mesmo da postura física do leitor. Não dá pra ler, relaxado, espichado na cama, com olhos frouxos.


Há tanta variedade de autores e temas, como escolher um bom livro?
Pergunta difícil. Adoto basicamente dois critérios, os quais admito que são precários: o passado do escritor (prêmios recebidos) e o apanhado do que se diz a respeito dele (comentários da crítica).


Que características um livro deve ter para ser considerado literário?
Esta é aquela pergunta irrespondível. A tal da "literariedade" parece a descoberta da pedra filosofal. É um problema que tem variado no tempo. Antigamente literário era o texto edificante, que trouxesse algum ensinamento. Depois era o beletrismo, escrever difícil, uma linguagem parnasiana e rebuscada. Mais recentemente isso mudou, ainda bem, e o registro coloquial pode, sim, ser literário. Como você notou, não respondi à pergunta. Talvez ela esteja no conjunto representado pelas respostas às outras quatro perguntas.


28 de abril de 2023

Benito, Presente!

Meu querido amigo partiu. Certamente mais uma estrela está agora brilhando no céu. Homem inteligente, sábio, letrado, um Mestre da literatura. Aprendi tanto com ele! Foi tão generoso comigo quando indicou o meu nome para substituir a sua função no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Saúde Coletiva, onde atuou durante anos da sua carreira na Uff. No início senti certa insegurança de substituir um servidor tão aplicado, tão estudioso e tão querido por todos os professores do Departamento. Mas Benito foi extremamente generoso e me apresentou de uma forma que só ele sabia dizer, com aquele tom de homem sábio e extremamente despido de qualquer vaidade. Nunca vou esquecer as suas visitas repentinas para se certificar se eu estava bem, se tinha sido bem acolhida e se o trabalho era mesmo "molinho" para uma mulher como eu. Benito Petraglia dizia: este Departamento tem tudo a ver contigo, Lilian, você vai ver! Ele não cansava de falar sobre o nosso compromisso com a Universidade e dizia: você vai tirar de letra! Estivemos juntos tantas vezes nos encontros literários, onde ele sempre dava um show de interpretação dos contos do Machado, Guimarães Rosa e tantos outros autores consagrados. "Clarice Lispector não é comigo. Esta eu deixo pra você, Lilian. Vai fundo!"

Foi o meu grande Mestre sobre a obra de Machado de Assis. No Clube de Leitura de Icaraí foi também um Mestre brilhante e aclamado por todos os seus membros. O grupo parava tudo para ouvir Benito falar sobre as obras literárias que o Clube escolhia mensalmente. Tinha um caderninho com tudo minuciosamente anotado e dava verdadeiras aulas sobre as obras e seus autores. Nunca conheci um ser humano mais letrado, mais solidário, mais desprovido de qualquer soberba e vaidade. Mais gentil, mais tímido e generoso com o seu saber. 

Trocou a medicina pela literatura e não foi a toa. Benito curava feridas, tristezas e qualquer tipo de melancolia quando nos "receitava" um livro, um conto, um poema e escritores que só ele sabia decifrar não só a sua obra, mas histórias de vida e curiosidades que só ele sabia esmiuçar.

Benito vai fazer falta não só para os seus familiares e amigos. Um homem como Benito, vai fazer muita falta ao mundo! 

Adeus, meu amigo!
Até qualquer dia!

Angústia: Graciliano Ramos




Amigos, não foi um crítico conhecido, mas, sim, uma revista americana que falou de Angústia. Vejam as palavras do filho Ricardo Ramos:

"E não sei de uma alegria maior, nunca o vi tão satisfeito como após a leitura numa revista americana, de artigo considerando Angústia não apenas o romance de um drama pessoal, um ensaio sobre a loucura chegando ao crime, mas, e principalmente, a crônica da condição do intelectual nos países subdesenvolvidos da América Latina."


Elô


 Ocupado em várias coisas, frequentemente esqueço o essencial. (Angústia - Graciliano Ramos) p. 39

Ao Clube de Leitura,

Obrigada, Elô, por ajudar-nos a conhecer melhor  o nosso grande escritor Graciliano Ramos. Angústia me deprimiu, me angustiou, mas, por isso mesmo, considero-o um grande romance. Sobre ele disse Ferreira Gullar:


...Graciliano, na sua aparente rudeza, comovia-se com o desamparo de seus personagens, nos quais identificava o seu próprio desamparo e de todo ser humano, "este bicho da terra tão pequeno".


E, Luiz Gutemberg disse: Luis da Silva somos nós.

Abraços.

Elenir


As meninas da foto são Elô e Elenir, por ocasião de outro livro do velho Graça debatido no CLIc


Sinto uma comichão nos braços, as mãos se mexem como se eu estivesse com câimbra, oito dedos se dobram em pressão máxima, comprimindo as palmas. Só os polegares estão livres numa posição que me lembra figa. Preciso de sorte. Sorte para não esvair-me nessa angústia do Luis da Silva que mora aqui perto. Sorte para não sucumbir a essa ameaça imprecisa, porém avassaladora, que quer abrir caminho pelo meu ventre acima, gritar impropérios e partir para o ataque.

Tenho uns vidrinhos invisíveis onde guardo a raiva, de vez em quando eles enchem e eu tenho que levar para o depósito de Gramacho, mas agora esse lixão fechou e não sei como fazer. Se não jogo fora, volta tudo para o meu sangue quente e me contamino com mais de mim. Ah isso não, já estou em fervuras, examine minhas bolhas que você vai ver que é verdade.

A face mais bela da vida, a face mais bela da vida, olhe para ela, me diz a voz do bem que anda perdendo ultimamente. Não está do lado esquerdo nem do direito. Onde então? Pescoço pra cima, procuro no alto e nada, pescoço pra baixo, ai, é aí, acorda, a corda, essa não, está me apertando, as letras saem mais finas, quase não consigo escrever, o sangue segue de va gar, o  san gue  cor re  len to , cor re  l en do,  es cor re, c or re  que  is so  pe ga.


Rita Magnago

O que é Angústia:

Angústia é a sensação psicológica que se caracteriza pelo sufocamento, pelo peito apertado, ansiedade, insegurança, falta de humor, e com ressentimentos aliados a alguma dor. No campo psiquiátrico a angústia é considerada uma doença e precisa ser tratada.

Para a psiquiatria, a angústia está muito próxima da depressão, embora que, nem sempre quem tenha angústias periódica pode estar sofrendo de depressão e sim uma manifestação da ansiedade que é o receio do futuro.

A angústia também pode estar ligada a causas psicológicas como, complexos, traumas, meio familiar repressores ou desgastantes, podem desencadear sensações de opressão. A angústia somente será considerada uma doença, quando aparecerem outros sintomas, como falta de concentração, tristeza permanente, inquietação, pensamentos negativos.

As pessoas que apresentam quadro de angústia e não tem acompanhamento profissional desenvolvem outros distúrbios emocionais, como cansaço físico e mental, comportamento inadequado e baixa auto-estima.

A angústia é uma emoção que está à frente de um acontecimento, uma circunstância, ou ocorre por lembranças traumáticas. A angústia acontece também em estados paranóicos onde a percepção das coisas é muito maior e destorcida.

Entre os povos da antiguidade, os gregos procuravam combater a angústia, criando uma sociedade baseada no principio do equilíbrio, isto é, nada em demasia, como forma de combater nossos instintos e paixões. Assim surgiram as tragédias gregas que como arte da representação e da aparência nos coloca em contato com toda a tragégia e angústia da existência.

Alguns filósofos dizem que a angústia surge no momento que o homem percebe a sua condenação à liberdade, por isso se sente angustiado já que sabe que é o senhor do seu destino.

(Extraído do site http://www.significados.com.br/)

Mariana Novelli Hardman


Título: Angústia

Ano de Produção: 2009

Técnica: Pastel oleoso sobre papel

Dimensão: 46,0 x 33,5 cm






“Os vagabundos não tinham confiança em mim. Sentavam-se, como eu, em caixões de querosene, encostavam-se ao balcão úmido e sujo, bebiam cachaça. Mas estavam longe. As minhas palavras não tinham para eles significação. Eu queria dizer qualquer coisa, dar a entender que também era vagabundo, que tinha andado sem descanso, dormido nos bancos dos passeios, curtido fome. Não me tomariam a sério. Viam um sujeito de modos corretos, pálido, tossindo por causa da chuva que lhe havia molhado a roupa. A luz do candeeiro de petróleo oscilava no balcão gorduroso. Homens de camisa de meia exibiam músculos enormes, que me envergonhavam. Encolhia-me timidamente. Não simpatizavam comigo. Eu estava ali como um repórter, colhendo impressões. Nenhuma simpatia. A literatura nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros.” 






 
Auto-retrato de Graciliano Ramos aos 56 anos

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas
Casado duas vezes, tem sete filhos
Altura 1,75
Sapato n.º 41
Colarinho n.º 39
Prefere não andar
Não gosta de vizinhos
Detesta rádio, telefone e campainhas
Tem horror às pessoas que falam alto
Usa óculos. Meio calvo
Não tem preferência por nenhuma comida
Não gosta de frutas nem de doces
Indiferente à música
Sua leitura predileta: a Bíblia
Escreveu "Caetés" com 34 anos de idade
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados
Gosta de beber aguardente
É ateu. Indiferente à Academia
Odeia a burguesia. Adora crianças
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz
Gosta de palavrões escritos e falados
Deseja a morte do capitalismo
Escreveu seus livros pela manhã
Fuma cigarros "Selma" (três maços por dia)
É inspetor de ensino, trabalha no "Correio do Manhã"
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo
Só tem cinco ternos de roupa, estragados
Refaz seus romances várias vezes
Esteve preso duas vezes
É-Ihe indiferente estar preso ou solto
Escreve à mão
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio
Tem poucas dívidas
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas
Espera morrer com 57 anos



Aos amigos do CLIC e a Elô, especialmente,

Obrigada, Elô,  pela divulgação da entrevista com a neta do Graciliano, Elizabeth Ramos, que ajuda muito a compreender a obra. Sinto a angústia de Luiz da Silva, O livro me angustia. A repetição das palavras, das frases, a monotonia, a história de cada uma das personagens daquele ambiente miserável e, principalmente, a de Luiz da Silva, com aquela corda no bolso, por toda essa angústia crescente, cresce, cada vez mais, minha admiração por esse grande romancista. Estou satisfeita por estar lendo mais uma grande obra no nosso CLIC.

Desejo a todos um domingo leve, prazeroso, nada angustiante.

Abraço.

Elenir

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Elenir, boa tarde e  bom fim de domingo. Boa noite,Clube!

Seu e-mail vem aliviar a minha  angustia pessoal, com certeza, ao ver o silencio que se fazia em torno do livro. Graciliano merece toda nossa atenção. É demais!! ...

Eloisa Helena (Elô).

* * *

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.


Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."                  



"...Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição... os autores resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama."


"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro de chauffeur. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me. - "Perdão! Perdão!" digo às pessoas a que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócio, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e, como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramento percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. (...) Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente."

                                    (Trecho do romance Angústia)

Table rase.
J'ai tout balayé.
C'en est fait.
Je me dresse nu sur la tierre vièrge,
derrière le ciel à repeupler.

(Gide)


“Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó”





Angústia: Sonia Salim


O desamor me angustia
as incertezas roem a minha alma
como ratos em seus ninhos
fazem com os trapos
Logo agora que a esperança
surgia feito algo tangível
fui abandonado 

Augusto Giacometti

com o coração ferido
Ah, como eu odiava!
Era uma golfada de ciúmes
que lambuzava o meu interior
ciúme da mulher, ciúme do homem
que desavergonhados se amavam
ambos descarados, felizes, com riso exposto
Prendo-me ao silêncio
Um silêncio temeroso que sufoca
e impulsiona-me para o beco da solidão
Escuro, frio, delgado, lúgubre
Assim era o meu mundo
longe daquele cruel e infiel amor
O vício me consumia lentamente
A insônia era a minha companheira, noite após noite
O livro e a imaginação eram os melhores afagos
dentro do peito lacerado pela vida
ali onde a morte faz a ronda
Nas madrugadas frias e sombrias
rompeu o fio da ilusão

              Sonia Salim



Astrologie littéraire avec Proust

 

Incapable de recommencer souvent ces expéditions si simples pour d’autres mais qui lui coûtaient autant que si pour les faire il descendait de la lune, il était surpris de trouver souvent que la vie de chacun n’était pas organisée d’une façon permanente pour donner leur maximum d’utilité aux brusques élans de la sienne. (Le Côté de Guermantes I - p. 184)


J'avais compris le matin, devant les poiriers en fleurs, l'illusion sur laquelle reposait l'amour de Robert pour « Rachel quand du Seigneur ». Je ne me rendais pas moins compte de ce qu'avaient au contraire de réel les souffrances qui naissaient de cet amour. Peu à peu celle qu'il ressentait depuis une heure, sans cesser, se rétracta, rentra en lui, une zone disponible et souple parut dans ses yeux. Nous quittâmes le théâtre, Saint-Loup et moi, et marchâmes d'abord un peu. Je m'étais attardé un instant à un angle de l'avenue Gabriel d'où je voyais souvent jadis arriver Gilberte. J'essayai pendant quelques secondes de me rappeler ces impressions lointaines, et j'allais rattraper Saint-Loup au pas « gymnastique », quand je vis qu'un monsieur assez mal habillé avait l'air de lui parler d'assez près. J'en conclus que c'était un ami personnel de Robert ; cependant ils semblaient se rapprocher encore l'un de l'autre ; tout à coup, comme apparaît au ciel un phénomène astral, je vis des corps ovoïdes prendre avec une rapidité vertigineuse toutes les positions qui leur permettaient de composer, devant Saint-Loup, une instable constellation. Lancés comme par une fronde ils me semblèrent être au moins au nombre de sept. Ce n'étaient pourtant que les deux poings de Saint-Loup, multipliés par leur vitesse à changer de place dans cet ensemble en apparence idéal et décoratif. Mais cette pièce d'artifice n'était qu'une roulée qu'administrait Saint-Loup et dont le caractère agressif au lieu d'esthétique me fut d'abord révélé par l'aspect du monsieur médiocrement habillé, lequel parut perdre à la fois toute contenance, une mâchoire, et beaucoup de sang. Il donna des explications mensongères aux personnes qui s'approchaient pour l'interroger, tourna la tête et voyant que Saint-Loup s'éloignait définitivement pour me rejoindre, resta à le regarder d'un air de rancune et d'accablement, mais nullement furieux. Saint-Loup au contraire l'était, bien qu'il n'eût rien reçu, et ses yeux étincelaient encore de colère quand il me rejoignit. L'incident ne se rapportait en rien, comme je l'avais cru, aux gifles du théâtre. C'était un promeneur passionné qui, voyant le beau militaire qu'était Saint-Loup, lui avait fait des propositions. Mon ami n'en revenait pas de l'audace de cette « clique » qui n'attendait même plus les ombres nocturnes pour se hasarder, et il parlait des propositions qu'on lui avait faites avec la même indignation que les journaux, d'un vol à main armée, osé en plein jour, dans un quartier central de Paris. Pourtant le monsieur battu était excusable en ceci qu'un plan incliné rapproche assez vite le désir de la jouissance pour que la seule beauté apparaisse déjà comme un consentement. Or, que Saint-Loup fût beau n'était pas discutable. Des coups de poing comme ceux qu'il venait de donner ont cette utilité, pour des hommes du genre de celui qui l'avait accosté tout à l'heure, de leur donner sérieusement à réfléchir, mais toutefois pendant trop peu de temps pour qu'ils puissent se corriger et échapper ainsi à des châtiments judiciaires. Aussi, bien que Saint-Loup eût donné sa raclée sans beaucoup réfléchir, toutes celles de ce genre, même si elles viennent en aide aux lois, n'arrivent pas à homogénéiser les moeurs.

Le Côté de Guermantes I - p.173-175


Mais elle, bien qu'il ne pût plus l'apercevoir, continuait à régir ses actes comme ces astres qui nous governent par leur attraction, même pendant les heures où ils ne sont pas visibles à nos yeux.

Le Côté de Guermantes I - p. 167


Enfin, mon pauvre enfant, si cela vous amuse ! Pendant que vous irez à quelque five o'clock, votre vieil ami sera plus heureux que vous, car seul dans un faubourg, il regardera monter dans le ciel violet la lune rose. La vérité est que je n'appartiens guère à cette Terre où je me sens si exilé ; il faut toute la force de la loi de gravitation pour m'y maintenir et que je ne m'évade pas dans une autre sphère. Je suis d'une autre planète. 

Le Côté de Guermantes I - p. 146

14 de abril de 2023

A miséria que alicerça o crime

A data do próximo encontro se aproxima, então vou deixar aqui algumas palavras sobre essa obra que é uma das melhores de um dos maiores escritores que o mundo já conheceu. Peço desculpas pelos parcos comentários sobre o livro, há bem mais o que dizer sobre ele do que o que direi agora, mas muito do que se pode dizer, já foi ou ainda será dito pelos membros do nosso clube e alguns críticos. Mas, depois de tantos “quês” e “ditos”, toda contribuição é válida quando se pretende valorizar um bom livro e conversar sobre ele. Então, vamos ao que interesse.

Angústia é um nome perfeito para o romance de Graciliano Ramos, tanto pela forma como vive e sente o mundo o protagonista, como por nós leitores que nos vemos angustiados, senão durante todo o livro, pelo menos durante grande parte dele, graças à narrativa de Luís Pereira da Silva e suas queixas e considerações sobre o mundo e as pessoas que o rodeiam e rodearam, condicionada na forma e estilo da poética de Graciliano Ramos.

Num fluxo de consciência e monólogo interior, o texto é contado a partir do fim, de cerca de trinta dias depois de Luís da Silva ter acordado dos delírios de febre que lhe acometeram após o dia em que assassinou Julião Tavares. Desde esse momento, através de um flashback, passamos a conhecer o passado do protagonista, sua vida na fazenda com seu pai, seu avô, mãe, caboclos, cangaceiros e pistoleiros que rendiam respeito ao seu avô, além de sua história recente com Marina e seus amigos, e, em pequenas digressões, determinados casos que viveu na sua terrível passagem pelo Rio de Janeiro, dentre outras lembranças periféricas.

O flashback a que me referi acima é, na verdade, uma soma de flashbacks coordenados, por assim dizer, em três grupos de memória, ou como nomina Silviano Santiago, três processos, sendo dois de rememoração e o último, um processo interno. Chamo de três grupos por entender que o terceiro também é memória. São eles: a lembrança do passado distante de Luís — sua vida no campo quando criança —, a lembrança mais recente — aquela de seu momento atual, referindo-se a sua vida pouco antes de conhecer Marina, por quem se apaixona, até o enforcamento de Julião —, e a derradeira, a qual se refere Silviano Santiago como processo interno, que "produz uma quantidade apreciável de casulos de redundância no tecido narrativo” (SANTIAGO, 2011, p. 344, grifos do autor). Santiago se refere às repetições que ocorrem durante o texto, com a aparição e sumiço repentino de certos elementos e passagens, o que para alguns críticos foi entendido como um defeito de pleonasmo, mas que na verdade é parte da forma e do estilo adotado para o livro que muito contribui para nos dar a sensação de ansiedade, bagunça mental e angústia por que passa o protagonista.

Todas essas lembranças, esse passado, pareciam fazer de Luís da Silva inferior, ou pelo menos sentir-se inferior, só — profundamente só —, e desiludido com a vida. Deduções a que podemos chegar através das declarações de Luís, sempre assombradas e feridas, e que, por sinal, vêm sobrepostas, entrelaçadas, com idas e vindas de uma história a outra, do passado ao presente, numa forma anacrônica; declarações que surgem atropelando-se e substituindo-se sem aviso de mudança temporal. As lembranças de ocorrências antigas invadem relatos de coisas recentes como para justificar ou complementar o sentido do que se diz agora; ou invadem simplesmente porque o pensamento de Luís é vago, desconexo, demonstrando pouca saúde mental — talvez devido a resquícios da febre pela qual passou, ou ainda, e mais provável, demonstra-se pouco saudável pela soma de acontecimentos que permearam sua vida, antiga e recente.

A soma desses passados, revividos na sua lembrança, incomoda Luís da Silva, funciona como combustível e fermento que se unem aos tormentos últimos e inflama a ferida já há muito aberta e recentemente agravada com a presença de figuras detestáveis aos seus olhos como o rico Julião Tavares, esnobe, metido a culto e literato, enganador de meninas pobres, mau-caráter e que, como se não bastasse, seduziu e lhe tomou a noiva. Além deste, o incomodam os vizinhos fofoqueiros, o trabalho e a sua desventurosa paixão por Marina, menina linda, sedutora, invejosa da riqueza, da suposta boa vida e bem-aventurança alheia, bem como sedenta por luxo e esbanjamento, apesar de ser filha de pais pobres e malfadados, atributos de Marina que a tornam nada confiável. Enfim, tudo engrossa o caldeirão de situações, piorando o estado de ânimo de Luís, que ainda perdeu com seu noivado todas as economias acumuladas sofregamente.

Talvez por Luís ter passado dias perdido em devaneios de febre, após o crime cometido, ele nos conta sua história como se turvado por sombras, como sonhos que ele mesmo parece não ter certeza se realmente aconteceram, ou se aconteceram como ele se lembra, segundo o próprio Luís da Silva deixa transparecer ainda no início do relato: “Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios” (RAMOS, 2011, p. 21).

As noites compridas a que se refere são as que começaram logo após cometer o crime, quando volta para casa e parece entrar numa espécie de transe, alvejado por lembranças confusas e disformes, surrealistas como os quadros de Salvador Dalí.

Febril, histórias se sobrepõem, imagens alucinadas invadem seus olhos suspendendo-o num mundo fantástico e terrível, possivelmente vitimado pela culpa do crime, à semelhança do célebre estudante de direito, Rodion Românovitch Raskólnikov, de Dostoiévski, em Crime e castigo (1866), quando esse comete o assassinato e sofre por ter que viver com a culpa e toda a carga moral e psicológica do ato, quase enlouquecendo, expondo ao leitor todas as cores do sofrimento que acarreta o sentimento de culpa sobre um homem.

E é também dessa forma que se alucina e sofre Luís da Silva, homem simples de origem, marcado em sua simplicidade no próprio sobrenome, comum, vulgar entre as famílias brasileiras, “um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer” (p. 35), como ele mesmo se define; porém consciente do mundo em que vive e dos seus atos. Como Raskólnikov no livro do russo. Semelhança que não pode nos causar estranhamento.

Entre Graciliano Ramos e os russos, sobretudo Dostoiévski, alguns pontos convergem: o estilo seco, duro, de traços naturalistas, sem pedantismo de linguagem ou mesmo maneirismo com o fim de suscitar esperanças românticas, e um forte apelo psicológico como, especificamente, ocorre em Angústia, à semelhança dos romances do autor de Crime e Castigo (1866), O idiota (1869) e Irmãos Karamázov (1881) — parte da obra que foi objeto dos primeiros estudos de Freud sobre a psicologia humana, segundo este revelou, tamanha é a carga humana e psicológica dos personagens do russo. Assim, se Freud é o pai da psicanálise, Dostoiévski seria uma espécie de avô?

Mas nos atendo ao romance do Velho Graça, através dessa enxurrada psicológica que quase transborda pelos quatro cantos do texto, toda a vida de Luís parece ter sido uma maçada, um incômodo. Oprimido pela realidade social e por si mesmo, via o mundo distante como se não vivesse realmente nele por inteiro. Havia sempre entre ele e os outros uma distância, um fosso de desconfiança e ódio. Não se entregava, não confiava em ninguém, não era parte de nada verdadeiramente. Até mesmo sua paixão por Marina era desconfiada e se assemelhava à posse e paixão sexual, e não a amor.

Ouvindo os relatos de Luís — digo ouvindo e não lendo porque, dada a qualidade deles, na sua força expressiva, podemos ter a impressão de que ele está a nossa frente nos narrando tudo, como num depoimento policial —, mas enfim, ouvindo Luís percebemos vários traços de sua personalidade, como certo ar de demência ranzinza: um homem distante, frio muitas vezes, e com atitudes sovinas que iam além da necessidade de seu estado de pobreza, e das exigências descabidas de Marina, como quando, conversando com esta e sua mãe, d. Adélia, sobre o casamento, considera razoável dispensar até mesmo o véu da noiva, normalmente um sacrilégio para esta:

— Estávamos combinando, Marina. Quanto mais depressa melhor, foi o que eu disse a d. Adélia. Gente pobre não tem luxo.
— É preciso fazer as coisas com decência, opinou Marina.
— Claro. Mas com modéstia. Não é, d. Adélia? Dispensa-se o véu. Para quê véu? Eu por mim casava hoje (2011, p. 81-82, grifo nosso).

Além disso, essa pressa para casar, “Quanto mais depressa melhor” e “Eu por mim casava hoje” mostram o medo da perda, a necessidade de se ver logo tudo decidido, irremediável, definido entre ele e a noiva, buscando com isso evitar um novo malogro na sua vida, uma nova decepção e tristeza; o que não consegue evitar, como sabemos.

Contudo, outros traços de sua personalidade nos surgem, como seu complexo de inferioridade; mas um complexo, por assim dizer, que não o reduz a zero, o diminui, mas o colocando dentro da sociedade, com certo valor, porém um valor baixo, o que indica que sofre, no entanto, não está de todo ausente de esperança ou algum amor próprio. Diz ele: “Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim, valor” (p. 50).

Possivelmente se considerava miúdo porque, vindo do mato para a cidade grande, primeiro sofre no Rio de Janeiro, passa fome, depois em Maceió, vive essa vida subjugada pelos boçais como Julião Tavares e pelos trabalhos que realiza para sobreviver — funcionário público e redator de textos políticos tendenciosos em troca de dinheiro, uma espécie de ghost writer. Enfim, um homem que se encolhe, como faz no café: “A mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. [...] passo ali uma hora, encolhido junto à porta, distraindo-me” (2011, p. 35), e completa na página seguinte: “Uma criaturinha insignificante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem” (2011, p. 37).

Como uma das consequências, tudo isso o deixa mais distante do mundo. E essa distância é mais sentida quando nos deparamos com seu relato sobre a morte e o velório do pai, quando Luís tenta chorar, mas não consegue; o pai é outro, distante dele, não lhe comove realmente, portanto, ele nada sente. Sua distância é marcada pela ausência de sentimentos, de lágrimas pelo pai; na verdade, todo aquele clima incomoda-lhe:

Penso na morte do meu pai. [...] Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. [...] Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia (2011, p. 31).

E quando chorou, não foi pelo pai: “Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos” (2011, p. 33). Rosenda havia acordado Luís com um café no dia do enterro.

Já sua desilusão com a vida era fruto de uma forma de determinismo:

Estudava-me ao espelho, via, por entre as linhas dos anúncios, os beiços franzidos, os dentes acavalados, os olhos sem brilho, a testa enrugada. Procurava os vestígios das duas raças infelizes. Foram elas que me tornaram a vida amarga e me fizeram rolar por este mundo, faminto, esmolambado e cheio de sonhos (2011, p. 164).

Referia-se, quando falava das duas raças, ao avô negro chicoteado pelo feitor há 200 anos e ao avô caboclo, emboscado pelos brancos. Mas ainda sobre o determinismo, Jean-Paul Sartre dizia que, “[...] qualquer que seja o nosso ser, é escolha; e depende de nós escolhermos como ‘ilustres’ e ‘nobres’, ou ‘inferiores’ e ‘humilhados’” (SARTRE, 2001, p. 581). Ao contrário disso, o protagonista de Graciliano Ramos se vê escolhido.

Assim vive Luís da Silva, tomado pelo passado e pela fúria com o presente opressor. Sua angústia é a de Kierkegaard, que alega que a angústia surge da impossibilidade de realização de algo. Há a possibilidade, mas esta não se transforma em algo real, não se executa, daí a angústia pelo nada, pois essa realidade existe apenas como possibilidade e não como realidade, feito o que acontece com Luís da Silva que quer um mundo novo, diferente da dor em que vive, mas isso não acontece, e esse não acontecer o angustia. A falta de uma família feliz, de um amor verdadeiro, de amigos verdadeiros, tudo se mostra como a irrealização da possibilidade, ficando apenas na realidade do seu espírito. Nas palavras de Kierkegaard:

[...] A realidade do espírito mostra-se continuamente como uma forma que atrai sua possibilidade, todavia ela desaparece, tão logo que essa a agarra; é um nada, que nada pode, a não ser, angustiar. Mais ela não pode, enquanto ela meramente se mostra (KIERKEGAARD, 1952, p. 39).

Essa é a realidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade, ou seja, o indivíduo tem na angústia uma forma de liberdade, porém, cativa, liberdade que só existe na possibilidade, que vive na angústia, e a angústia é a liberdade presa ali:

[...] a possibilidade da liberdade não é poder escolher entre o bem e o mal. [...] A possibilidade é o poder. Num sistema lógico é bem cômodo dizer que a possibilidade transforma-se na realidade. Na realidade, isso não é assim tão fácil e precisa-se de uma determinação intermediária. Essa determinação intermediária é a angústia, que tampouco explica o salto qualitativo como o justifica eticamente. A angústia não é nenhuma determinação da necessidade, mas também nenhuma da liberdade, ela é uma liberdade cativa, onde a liberdade em si mesma não é livre, mas sim cativa, não na necessidade, mas sim em si mesma (KIERKEGAARD, 1952, p. 47-48).

Aqui Luís da Silva aproxima-se ainda mais de Kierkegaard, essa angústia provoca uma ação, um salto para um novo estágio; estágio que, em Luís da Silva o leva ao assassinato, como uma busca pela liberdade de tudo o que o aflige. E na tentativa de realizar essa liberdade que, como eu disse, está apenas na possibilidade, presa na angústia, ele percebe que, após a morte, a liberdade seria impossível; daí vem a culpa, das consequências da ação que a angústia o levou a cometer.

A angústia para Kierkegaard permite que o homem descubra a diferença entre o bem e o mal; contudo, esse conhecimento também o angustia, pois percebe que não pode ser livre porque vive numa realidade de pecado. Dessa forma, a angústia é inerente ao homem, ela nos proporciona saltos, evoluções, faz-nos procurar ir adiante, e nos acompanha a vida inteira.

Outro ponto onde a angústia de Kierkegaard encontra a do protagonista de Graciliano Ramos é quando o filósofo afirma que não é possível angustiar-se do passado. E aí vocês me perguntam: mas no livro do Velho Graça não é também o passado que angustia o anti-herói? Sim, é. Por isso Kierkegaard diz que não é possível angustiar-se do passado, a não ser que haja uma relação de futuro com o indivíduo, ou seja, o que ocorreu no passado tem, no sentimento de culpa por ele, ou simplesmente na crença do indivíduo, a possibilidade de se repetir:

O passado, do qual eu devo me angustiar, precisa estar numa relação de possibilidade comigo. Se me angustio de uma desgraça passada, então, neste caso, não é que ela é passada, mas sim que ela pode, neste caso, se repetir, i. é, tornar-se futura. [...] Se ela é mesmo [realmente] passada, então não posso me angustiar, mas somente me arrepender. Se eu não o faço, então eu me permiti antes fazer minha relação com ela dialética, mas com isso, a infração se tornou ela mesma uma possibilidade e não algo passado. Se me angustio diante do castigo, então este é posto somente, tão logo, numa relação dialética com a infração (caso contrário, carrego meu castigo) e, então, eu me angustio diante da possibilidade e diante do futuro (KIERKEGAARD, 1952, p. 93).

E assim é Luís da Silva, constantemente relembrando o passado, a solidão, a tristeza, os dias de miséria, a falta de amor familiar e sua inadaptação ao mundo, fatos que ele teme se repetirem indefinidamente no futuro. O medo desse futuro ser um eterno moto-contínuo, a se repetir como um feitiço do tempo, quando os dias renascem iguais e a vítima desses dias revive tudo outra vez do mesmo jeito, provoca sua angústia. Daí, nesse sentido, o passado angustia e Luís da Silva encontra Kierkegaard.

Mas a angústia desse Silva também é a de Heidegger,

A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. [...]. O mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública (1986, §40, p.254).

A angústia do anti-herói de Graciliano Ramos é fruto do embate com a realidade, da sua presença nela, da sua existência em um mundo que não pode oferecer-lhe nada, ou pelo menos o que ele almeja. O ser-no-mundo de Heidegger, em Luís da Silva é a falta de compreensão com o outro, do seu papel, ou o que julgaria merecer, é a incompreensão da injustiça que julga sofrer. Angustia-se por não se realizar como ser-aí, que não vai a lugar nenhum.

Mas deixando a filosofia de lado e nos dirigido ao texto como estrutura, como construção. Para alcançar todo esse campo magnético de sombra e angústia, Graciliano Ramos não fez uso apenas de conhecimentos filosóficos, ou mesmo de suas próprias concepções do terror humano; uma boa dose de preocupação estilística foi usada em metáforas, em termos pesados, em declarações sufocantes, repetições que soam como redundâncias para alguns, mas que na verdade são formas de alcançar uma expressão que dê ao texto e, sobretudo à figura do anti-herói, a densidade necessária para ele ser quem é e para dar aos leitores a verossimilhança exigida que nos fará acreditar na história e no estado de ânimo de Luís, assim como no mundo existente no livro.

Alguns exemplos deixam clara essa intenção de intensificar o sentido do texto, como quando Luís da Silva está num bonde e este segue cruzando a cidade. Observando o tempo lá fora ele vê “os focos de iluminação pública, espaçados. Cochilando, piongos, tão piongos como luzes de cemitério” (2011, p. 26). Observação que dá vida a esses postes, na sua visão interior; vida bastante para cochilarem melancólicos (piongos), de uma tristeza tão profunda que se assemelham a “luzes de cemitério” — expressão que, assim como “cochilando” e “piongos”, remetem-nos à tristeza, a pesar; sensações presentes no ânimo de Luís, e imagens difíceis de serem lidas sem nos submeter à densidade do estado de espírito do personagem e do mundo segundo seus olhos.

Densidade que também recai sobre a chuva que envolvia Luís nos seus dias de inverno na serra: “Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó” (2011, p. 28, grifo meu). A cena traz solidão e desolação, vendo a rua sumir no véu da chuva, chuva que Luís descreve como “lençol branco de água em pó”. A densidade está na água que se assemelha a pó, embota a visão, turva, encobre e pesa. A água é quase sólida, é pó, e representa a vida de Luís, assombrada, sem limpidez. Por isso, seus olhos tristes já sofrem tendenciosos quanto a tudo o que presencia. Cada visão é distorcida para a sua dor da existência. No seu modo de ver, nada é claro e puro, nem mesmo a água que cai do céu.

Em outro momento, Luís da Silva nos descreve sua visão sobre si mesmo; um ponto de vista depreciativo e bastante significativo para que entendamos como ele mesmo se via e como queria que nós o víssemos, numa espécie de tentativa de nos causar empatia reversa, ou contraditória, como se buscasse nos impingir repulsa pelo seu estado miserável e pelo estado do mundo que o cerca, mas também nos causar pena, dó e sentimento de afeição e piedade pelo que ele tem se tornado. Seu mundo e sua vida claustrofóbica pela empatia, desejada ou imposta, causa-nos também claustrofobia. Acompanhamos sua história sempre com a sensação de que as paredes se fecham sobre nós, e a imagem de Luís pode nos dar pena ou repulsa. Enfim, diz ele sobre si: “Não sou o que era naquele tempo [da infância]. Falta-me tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou” (2011, p. 34, grifo meu). A cidade não o salvou do passado, ela potencializou seu estado de miséria.

Usei essas passagens, todas ainda do começo do texto, para mostrar que o narrador/personagem nos quer fazer entender sua condição desde o início do seu relato. Seu flashback vai gradualmente, e por intermédio de imagens fortes e histórias tensas de solidão e angústia, apresentando-nos seu mundo e o que construiu, o que pavimentou o caminho até este desembocar no assassinato.

Em suma, a vida de Luís da Silva é miserável como tudo o que ele descreve. O mundo parece acabar-se aos poucos, perder o sentido — se é que já teve um algum dia —, a depravação domina o mundo e a natureza de todos — menos a dele que, apesar de se esfregar com Marina no quintal, não se identifica como um depravado também, apenas como um infortunado miserável vítima das circunstâncias de sua vida passada e presente. Enquanto isso, a sombra que lhe embaçou os delírios na febre é a sombra que lhe embaçou toda a vida, mantendo-o sempre longe e distante da vida pulsante, deixando-lhe na eterna modorra, quebrada apenas pela agitação mental do romance com Marina e pelo crime que vem a cometer, em parte por ela, mas ainda mais por vingança contra toda a miséria que o subjugou, contra todos os folgados e inúteis Julião Tavares que lhe cruzaram o caminho, tomando seu lugar, empurrando-o para a mesa do canto do café.




BIBLIOGRAFIA

KIERKEGAARD, Søren A. Der Begriff Angst, Vorworte. Düsseldorf: Eugen Diederichs Verlag, 1952. [Trad. Iuri Andréas Reblin. In: Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 16, mai.-ago. de 2008]

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti Schuback. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011. Edição comemorativa.

SANTIAGO. Silviano. “Posfácio”. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011. Edição comemorativa.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.





2 de abril de 2023

Sob o Signo do Equador: Cícero Coelho Lapa

Ai que calor!


"O comunismo é o possível paraíso terrestre."





Cícero Coelho Lapa é a voz da Terra de Mafrense no nosso clube de leitura Icaraí, um filho do sol do equador, como diz o hino piauiense. O pai sonhou um filho super homem, a mãe lhe legou fibra de cangaceiros. Tornou-se objeto de maldição da vingança de um suposto gênio de garrafa de cerveja para uma bela estudante da zona da mata que veio estudar em terras de Arariboia. Qualquer semelhança com histórias narradas em "Sob o Signo do Equador" é mera coincidência.

Quando jovem, Cícero veio para o sul maravilha estudar Economia.  Aqui, na terra dos papa goiabas, e no clube de leitura Icaraí, é conhecido por suas assertivas contundentes, francas. Quem o conhece pessoalmente sabe do que estou falando. Pois é a mesma forma direta e perturbadora de expressar suas convicções que pode ser encontrada também em seus textos. Lemos suas histórias como se colhêssemos caules de mandacaru.

Muitas passagens de "Sob o Signo do Equador" são inesquecivelmente deliciosas e os leitores se surpreenderão com l'ambiance de bas-fond rustique et voluptueuse. Recomendo a aquisição da obra (R$ 25,00) através da Estante do Concierge (conciergeclic@gmail.com). Não esperem, portanto, encontrar na leitura as memórias líricas de um escritor romântico, embora haja muito romance no quartinho de fundos da casa grande. Longe disso. Prepare-se também para momentos de emprego da linguagem rude de um pau de arara contando casos de intensa experiência humana, atravessando a solavancos as estradas poeirentas e áridas da existência humana, para tantos.

Em “A vingança do gênio” o protagonista é um jovem piauiense que se retirou para o sul maravilha do país, encontrando uma jovem cujo nome já lhe era familiar, o nome de uma das fazendas de seu pai. Eles se casam e a sulista vai, então, conhecer a terra natal do marido. O choque com a realidade social do nordeste assusta a esposa de apenas 19 anos. Ela passa a atribuir a um fantástico gênio “filho da puta” a maldição daquele casamento. O irmão o adverte de que ela certamente se separará dele assim que voltarem à corte, no Rio de Janeiro. Confiante na boa formação cristã da moça, o marido se mostra paciente para que desperte na amada sua boa índole, levando-a para conhecer a terra e os costumes locais, entre os quais o de assistir o ritual da quebra do côco babaçu. Uma mudança de sentimento, a exemplo do que aconteceu com Euclides da Cunha em “Os Sertões”, ocorreu com a fada mineira (foi essa a impressão que causou no ancião de 80 anos que lhe demonstrou o processo). Se a princípio a percepção que tinha dos nordestinos era a de serem uma espécie de subgente, a princesa aos poucos descobriu neles a autêntica matriz da brasilidade. 


Uma experiência vivida nos cafundós do Brasil fez soçobrar a vaidade quase infinita da "ariana". Foi num acidente na travessia do rio Parnaíba, a passeio numa canoa bastante primitiva que virou e por muita sorte não acabou em tragédia. Ficou o aprendizado como se fora uma experiência espiritual e salvadora, que promoveu uma verdadeira restauração interior da vida fragmentada que nossa heroína levara até então no Rio de Janeiro; foram seis meses de mortificação corporal causada pela malária, o trauma psicológico que a fez buscar auxílio numa intensa religiosidade e, enfim, a intervenção do marido para que ela buscasse ajuda terapêutica.

Floriano - terra natal do autor


Nos demais contos é possível perceber, pelo estilo narrativo, a visão de mundo do autor, desde suas convicções políticas até sua visão da vida. A entrevista com Seu Antônio é extraordinária, um tabaréu analfabeto que se transformou numa das pessoas mais poderosa daquelas terras, apoiando Antonio Conselheiro em Canudos, Lampião no cangaço, amigo de personalidades como padim Ciço, Mal. Floriano Peixoto, Presidente Getúlio Vargas, além de mantenedor de jagunços. As declarações sobre Canudos, o cangaço e outros eventos históricos do início do século passado contam outra história que não a oficial. Será real este personagem? Em "O Incêndio", Cícero demonstra seu domínio na arte de contar histórias, denunciando a corrupção no serviço público, os apadrinhamentos políticos que tanto mal fazem às nossas instituições. Em "Conflito com a Lua", dessa vez, denuncia a destruição criminosa de nossas matas, mas mais surpreendente do que a mobilização dos símios na estória se mostrou, para mim, as dimensões da lua no céu: "mais de 1 (um) metro". Em "Debaixo das verdes bananeiras" o autor retoma o mito de Lolita, da obra prima de Nabokov, mostrando que no caso de Rosa, a protagonista, antes de se envolver sexualmente com o patrão, a inspiração e o aprendizado se deu pela observação dos porcos e dos cães no quintal da casa. Mas o leitor apressado se equivoca pois o desfecho da estória é inesperado, embora não mais que surpreendente: as analogias apresentadas são inquietantes e polêmicas. Em "Sentimento transcendente" o leitor se depara com as mesmas causas profundas de indignação e revolta que levaram milhões de brasileiros às ruas nas manifestações populares ocorridas durante a Copa das Confederações no Brasil. Vale a pena conferir!


Se Adolf dançasse, não se tornaria Hitler


"De tanto ver os corruptos e as nulidades proclamarem suas vitórias, o honesto põe em dúvida suas virtudes; chega até a ter vergonha delas." (Ruy Barbosa)

Um filme sobre o poeta maior do Piaui - Da Costa e Silva


Além de brasileiro, Deus é piauiense!


Um diamante pra você: Júlia Câmara




Está acabando um ano de surpresas. 2013, nunca esperava isso do senhor. Antes que morra, devo lhe agradecer pelas pessoas que colocou no meu caminho, e pelas outras que não desistiram de seguir junto da minha jornada. Além disso, obrigada por ter colocado um sentido na palavra “amor” em meu dicionário e também por ter me dado muita paciência e muita dedicação. 

O senhor não foi nada fácil, por mais que tenha tirado de mim muitos sorrisos e gargalhadas, eu chorei e me desesperei. Sim, não vou falar que os meus problemas foram complicados de se resolverem porque como tudo passa – e o senhor é a prova disso – passou. Só se constrói uma história se ela tiver um início, um problema, uma resolução e um fim. O livro chamado 2013 só falta agora a sua conclusão. 

Que o ano de 2014 seja brilhante que nem diamante, e melhor que qualquer outra riqueza.



Entre linhas

Não sei se é por fragilidade ou medo,
mas as vezes te sinto distante que até te perco.

Na imensidão do universo,
na contra capa de um livro
ou no seu inverso,
versos que me dizem sem rumo,
ou no esquivo do mundo.

Eu vou contra e você junt'a maré,
entre linhas, olhares se cruzam
mãos se afagam,
depois se desgrudam, se afastam...
Abraços perdidos.

Não sei se é por causa do medo ou pela fragilidade,
que me desencontrei (de você);
E há saudade...




Leia mais sobre Júlia Câmara no Recanto das Letras




"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas." - Friedrich Nietzsche



Escrevo desde os 12, fascinada pelo o que meu avô costumava fazer. Dizem por ai que herdei o dom das palavras dele e pretendo deixá-lo orgulhoso mesmo sabendo que agora ele virou estrela como todos os meus antepassados.

Vô, meus poemas são pra você. 

Obrigada.