Excepcionalmente este mês, o Clube de Leitura Jovem ocorrerá QUARTA-FEIRA AGORA, dia 22 de julho!
Vocês já sabem que o Clube de Leitura Jovem ocorre a toda penúltima quinta-feira do mês na Livraria Icaraí. Contudo, só dessa vez, tivemos de rearranjar datas. É com grande prazer que convidamos vocês para o debate do livro "O Continente", de Erico Verissimo, quarta-feira agora (22) às 18h na Livraria Icaraí (Rua Miguel de Frias, 9). O romance nos ensina sobre os processos de formação do Rio Grande do Sul e do Brasil; uma das obras mais importantes da história do país. Vem também, tchê! Vai ser ótimo.
"Uma geração vai, e outra vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos." O Continente, livro do dia 22/07.
Quem anda cego de amor não sabe se é noite ou se é dia
"Nenhum homem é uma ilha, mas um pedaço do Continente… a morte de qualquer homem me diminui, porque eu estou envolvido na Humanidade…"
Aventura, guerra e romance são elementos presentes na história dos Terra e dos Cambará, famílias fictícias que conduzem "O continente", de Erico Verissimo. O romance dá início à saga "O tempo e o vento", cujo pano de fundo são os acontecimentos principais da formação do Rio Grande do Sul.
Apaixone-se pelo povoado de Santa Fé, prepare um mate quentinho e venha compor essa discussão no próximo Clube de Leitura Jovem, dia 23 de julho, às 18h na Livraria Icaraí! wink emoticon Aguarde por mais informações e até lá, tchê!
A Salamanca do Jarau
No tempo dos padres jesuítas, existia
um moço sacristão no Povo de Santo Tomé, na Argentina, do outro lado do rio
Uruguai. Ele morava numa cela de pedra nos fundos da própria igreja, na praça
principal da aldeia.
Ora, num verão mui forte, com um sol de rachar, ele não conseguiu dormir a
sesta. Vai então, levantou-se, assoleado e foi até a beira da lagoa
refrescar-se. Levava consigo uma guampa, que usava como copo.
Coisa estranha: a
lagoa toda fervia e largava um vapor sufocante e qual não é a surpresa do
sacristão ao ver sair d'água a própria Teiniaguá, na forma de uma lagartixa com
a cabeça de fogo, colorada como um carbúnculo. Ele, homem religioso, sabia que
a Teiniaguá - os padres diziam isso!- tinha partes com o Diabo Vermelho, o
Anhangá-Pitã, que tentava os homens e arrastava todos para o inferno. Mas sabia
também que a Teiniaguá era mulher, uma princesa moura encantada jamais tocada
por homem.
Aquele pelo qual se
apaixonasse seria feliz para sempre. Assim, num gesto rápido, aprisionou a Teiniagá na guampa e voltou correndo para
a igreja, sem se importar com o calor. Passou o dia inteiro metido na cela,
inquieto, louco que chegasse a noite.
Quando as sombras
finalmente desceram sobre a aldeia, ele não se sofreu: destampou a guampa para
ver a Teiniaguá. Aí, o milagre: a Teiniaguá se transformou na princesa moura,
que sorriu para ele e pediu vinho, com os lábios vermelhos. Ora, vinho só o da
Santa Missa. Louco de amor, ele não pensou duas vezes: roubou o vinho sagrado e
assim, bebendo e amando, eles passaram a noite.
No outro dia, o
sacristão não prestava para nada. Mas, quando chegou a noite, tudo se repetiu.
E assim foi até que os padres finalmente desconfiaram e numa madrugada
invadiram a cela do sacristão. A princesa moura transformou-se em Teiniaguá e
fugiu para as barrancas do rio Uruguai, mas o moço, embriagado pelo vinho e de
amor foi preso e acorrentado.
Como o crime era
horrível - contra Deus e a Igreja! - foi condenado a morrer no garrote vil, na
praça, diante da igreja que ele tinha profanado.
No dia da execução,
todo o Povo se reuniu diante da igreja de São Tomé. Então, lá das barrancas do
rio Uruguai a Teiniaguá sentiu que seu amado corria perigo. Aí, com todo o
poder de sua magia, começou a procurar o sacristão abrindo rombos na terra, um
valos enormes, rasgando tudo. Por um desses valos ela finalmente chegou à
igreja bem na hora em que o carrasco ia garrotear o sacristão. O que se viu foi
um estouro muito grande, nessa hora, parecia que o mundo inteiro vinha abaixo,
houve fogo, fumaça e enxofre e tudo afundou e tudo desapareceu de vista. E
quando as coisas clarearam a Teiniaguá tinha libertado o sacristão e voltado
com ele para as barrancas do rio Uruguai.
Vai daí, atravessou o
rio para o lado de cá e ficou uns três dias em São Francisco de Borja,
procurando um lugar afastado onde os dois apaixonados pudessem viver em paz.
Assim, foram parar no Cerro do Jarau, no Quaraim, onde descobriram uma caverna
muito funda e comprida. E lá foram morar, os dois. Essa caverna, no alto do Cerro, ficou encantada. Virou Salamanca, que quer
dizer "gruta mágica", a Salamanca do Jarau.
Quem tivesse coragem
de entrar lá, passasse 7 Provas e conseguisse sair, ficava com o corpo fechado
e com sorte no amor e no dinheiro para o resto da vida.
Na Salamanca do Jarau
a Teiniaguá e o sacristão se tornaram os pais dos primeiros gaúchos do Rio
Grande do Sul.
Ah, ali vive também a
Mãe do Ouro, na forma de uma enorme bola de fogo. Às vezes, nas tardes
ameaçando chuva, dá um grande estouro numa das cabeças do Cerro e pula uma elevação para outra. Muita gente viu.
Dona Picucha Terra Fagundes, toda vestida de preto, pele de marfim, olhos de noz moscada,
buço cerrado, verruga no queixo, xale xadrez e chinelas de ourelo.
Dona Picucha Fagundes, uma coisa vou dizer: quem um dia entrou em vossa casa
nunca mais há de esquecer
seu cheiro de flor e pão quente
o pintassilgo da gaiola
os manjericões da janela
os ratos que espiam nos buracos dos rodapés e que vós tratais como pessoas da família.
Quem passou pela vossa casa, ainda que viva cem anos, há de sempre recordar
vossas mãos ágeis que fazem renda de bilro
vossas mãos frescas e secas, boas para espremer queijo
vossas belas mãos afeitas a acariciar cabeças de filhos, netos e gatos
vossas ligeiras mãos que sabem curar feridas de gentes e bichos
vossas rapadurinhas de leite
vossos lençóis cheirando a alfazema
vossos chás caseiros
vossos óculos na ponta do nariz
vossas cantigas
vosso oratório onde sempre há velas acesas
e a vela solitária que às vezes acendeis no meio do pátio para o Negrinho do Pastoreio.
Quem um dia passou pela vossa casa há de guardar para sempre na memória
os causos que contais de Carlos Magno e os Doze Pares de França
os vossos fabulosos causos de assombrações e mistérios, princesas e fadas, lagoas brabas e
salamancas.
Dona Picucha Terra Fagundes:
Quem vos ensinou essas histórias e rezas e receitas, essas cantigas antigas e essas
estranhas simpatias que tudo podem curar?
O
pe. Lara sabia como era custoso obter informações certas. As pessoas dificilmente contavam
as coisas direito. Mentiam por vício, por prazer ou então alteravam os fatos por causa de
suas paixões. Cenas da vida cotidiana que se tinham passado sob o seu nariz, ali mesmo na
praça de Santa Fé, eram depois relatadas na venda do Nicolau duma maneira
completamente diferente. Como era então que a gente podia ter confiança na história?
Passou-lhe, então, pela mente a lembrança da importância que tinha para a Igreja Católica
a tradição oral... Ora, estava claro que com a Igreja, que era divina, a coisa era diferente.
Mas seria mesmo diferente?
O mundo do capitão Rodrigo
Rodrigo não podia esconder seu orgulho e sua satisfação por ter um filho macho.
Brincava com a criança como uma menina brinca com sua boneca e às vezes não podia
deixar de dar voz à sua impaciência diante do fato irremediável de que a criança levaria
anos para crescer, fazer-se homem e poder chegar à idade de botar pistola e espada na
cintura e sair a burlequear pelo Continente.
— O mundo está errado! — disse ele um dia ao vigário, quando ambos conversavam
na frente da venda, após o jantar. — Por que é que cavalo cresce tão depressa e gente leva
tanto tempo?
O padre, que palitava os dentes com um espinho de laranjeira, encolheu os ombros e
respondeu, meio vago:
— Deve ser porque cavalo vive menos.
— Também está errado. Um cavalo devia viver tanto como uma pessoa.
O pe. Lara olhou para o capitão longamente antes de falar. Fazia meses que vinha
notando mudanças nele. O homem simplesmente andava desinquieto, irritadiço. Tudo
indicava que aquela vida sedentária, atrás dum balcão, começava a entediá-lo. Não fora
feito para aquilo. Para falar a verdade, também não fora feito para o matrimônio, ou
melhor, para ter uma mulher só. E o vigário se inquietava, pois de certo modo se sentia
responsável perante Pedro e Arminda Terra por aquele casamento, do qual era uma espécie
de fiador. Se o signatário da letra de que ele era avalista fugisse e ele fosse chamado a pagar
a dívida, que poderia fazer ou dizer? Soltou um suspiro e perguntou:
— Se vosmecê fosse o criador do mundo, como é que fazia as coisas e as pessoas?
Rodrigo apanhou um seixo, fez pontaria numa árvore e arremessou-o, errando o alvo.
— Se eu fosse dono do mundo, fazia algumas mudanças...
— Por exemplo... — pediu o padre.
— Acabava com essa história de trabalhar...
— Sim, e depois?
— Fazia os filhos virem ao mundo de outro jeito. Eu vi o que a Bibiana sofreu. É
medonho.
O vigário sorria. Aquelas palavras, partidas dum egoísta, não deixavam de ter seu
valor.
— E depois?
— Dividia essas grandes sesmarias de homens como o coronel Amaral.
— Dividia? Como? Pra quê?
— Dividia e dava um pedaço pra cada peão, pra cada índio, pra cada negro.
— Não vá me dizer que ia libertar os escravos...
— E por que não? Acabava com a escravatura imediatamente.
O padre ria, e o riso encatarroado que o sacudia todo depois se transformou num acesso
de tosse que acabou por deixá-lo ofegante e cansado.
— Vosmecê é das arábias, capitão. Mas continue com o seu mundo... Que mais?
Dentro da casa Bolívar chorava. E Bibiana, ninando-o, cantava as cantigas de Ana
Terra.
— Ah! Eu ia m’esquecendo. Pra principiar, fazia o mundo mais pequeno, pra gente
poder atravessar todo ele a cavalo, sem levar muito tempo.
— E como é que vosmecê ia se arranjar, indo dum país pra outro sem conhecer outra
língua senão a sua?
— Eu acabava com esse negócio de línguas diferentes...
Rodrigo fez uma pausa e ficou pensativo.
— Que mais?
— Acabava também com a velhice.
— Acabava?
— Quero dizer, ninguém envelhecia mais...
— Nem morria?
— Morrer... morria. Mas se morria era de desastre, nos duelos, nas guerras.
O vigário mordeu o palito, fez avançar a cabeça na direção do outro:
— Vosmecê não ia também acabar com as guerras?
Rodrigo por um instante pareceu confuso. Depois respondeu, lento:
— Bom...Acabar de todo, não acabava. Porque guerra é divertimento de homem. Sem
uma guerrinha de vez em quando ficava tudo muito enjoado.
— Ia ser um mundo bem esquisito...
— Mas não mais esquisito que este nosso, padre.
— Se Deus fez o mundo assim foi porque achou que era o direito.
— Mas hai muita coisa torta por aí.
— Que há, há...
Rodrigo abafou um bocejo. Depois, olhando para os lados como para ver se ninguém o
escutava, cochichou:
— Outra coisa, padre. No meu mundo não ia haver casamento. Um homem podia ter
quantas mulheres quisesse. Dez, quinze, vinte, mil...
— E se dois homens desejassem a mesma mulher?
Rodrigo respondeu indiretamente com uma pergunta:
— Pra que é que serve a espada? Pra que é que serve a adaga? E a pistola?
O vigário procurou resumir as aspirações do amigo através do que ouvira e do que
sabia dele por observação direta durante aquele ano:
— Noutras palavras, capitão, seu desejo mesmo é andar correndo mundo, sem pouso
certo, sem obrigação marcada, agarrando aqui e ali uma mulher como quem apanha fruta
em árvore de beira de estrada... De vez em quando uma partidinha de truco ou de solo, um
joguinho de osso, umas carreiras e, para variar, uma peleia... Não é isso?
Rodrigo sacudiu a cabeça lentamente.
— Mais ou menos.
O choro do menino cessara, mas Bibiana ainda cantava baixinho. Um cão ladrou para
os lados da casa dos Amarais. Por longo tempo os dois amigos ficaram em silêncio, olhando
o céu estrelado. Rodrigo pensava na mulher com quem dormira todas as noites que passara
no Rio Pardo: era uma mulata clara, de olhos verdes, com uma voz doce como arroz de leite
e um corpo que cheirava a fruta madura quente de sol. O pe. Lara pensava na noite que
iria passar... horas de aflição, sem ar e sem sono. A solidão de seu quarto era tão grande que
ele às vezes ia para a capela e lá ficava orando e meditando, olhando para a imagem de
Nossa Senhora, como que a buscar-lhe a companhia. Quase ao amanhecer caía no sono e
dormia no chão, sobre as tábuas duras.
— Mas o mundo não é o que a gente quer — disse ele, quebrando o silêncio. — É o que
é.
— Eu sei que ele é o que é. Mas a gente não deve se entregar. Deve lutar para conseguir
as coisas que quer. Não há muita gente disposta a dar. Às vezes é preciso tirar à força.
— Cada qual luta a seu modo, meu filho. Cada qual luta por um ideal. Houve homens
que lutaram para libertar o Brasil dos portugueses.
— Mas os galegos estão aí mesmo — retorquiu Rodrigo. — Nas tropas os oficiais
portugueses mandam mais que os brasileiros. No fundo a independência não mudou nada.
— Mas deixe-me terminar o pensamento. Uns lutam de arma na mão pela sua pátria.
Eu luto pela minha fé. Vosmecê não acha que eu podia encontrar uma vida melhor se
tivesse ficado em São Paulo e seguido o comércio como os meus irmãos fizeram?
— Rodrigo
sacudiu a cabeça.
— Pois é. Estou aqui porque esta gente em geral vive sem Deus.Vosmecê
sabe que um padre também é chamado um pastor. É porque os paroquianos são como
ovelhas. É preciso proteger os rebanhos contra os guarás, os tigres, as onças-pintadas. Mas
de que é que vosmecê está rindo?
Ao luar ele via a cara do capitão, toda aberta num sorriso irônico.
— Me lembrei do coronel Amaral.
— E que é que ele tem a ver com a nossa conversa?
— Tem muito. Ele é um leão baio. E dos grandes! E vosmecê parece ser mais do lado
dele que do lado das ovelhas, padre.
O pe. Lara empertigou-se sobre a banqueta.
— Não compreendo — disse. Mas compreendia perfeitamente o que o outro insinuava.
— Vosmecê sabe como ele trata os escravos... — continuou Rodrigo. — Para ele negro
não merece ser considerado gente. Vosmecê sabe como ele trata os peões e os agregados. E
vosmecê não ignora que ele tem mandado matar gente...
O pe. Lara estava meio sufocado. Que conversa para depois do jantar! Seu
ressentimento, sua confusão lhe tiravam a clareza das ideias e ao mesmo tempo lhe
roubavam o fôlego. Passaram-se alguns momentos antes que ele pudesse falar.
— Mas não há provas! — exclamou por fim.
— Provas do quê?
— De que foi o coronel Amaral que mandou matar aqueles homens.
E ao dizer essas palavras ele baixou a voz e olhou a medo para os lados.
Rodrigo soltou
uma risada:
— Ora, padre, todo mundo sabe!
— E depois vosmecê deve saber que muitas vezes fui falar com o coronel para interceder
por um escravo, por um peão. Ele me ouve muito.
Rodrigo desabotoou a camisa e puxou-a para fora das bombachas. Sentia calor. Não
havia a menor viração na noite cálida.
— Conheci muitos padres por esse mundo velho que tenho corrido. Eles nunca estão
contra o governo.
— A Igreja não é revolucionária — exclamou o vigário. — A Igreja não é lugar de
conspirações. Ela representa o poder espiritual, que está acima, muito acima do temporal.
— Não me venha com essas palavras difíceis, padre, que eu não entendo. Fale claro.
Temporal pra mim é mau tempo. Mas, falando sério, amigo Lara, cá pra nós no maior
segredo, vosmecês nunca se arriscam a ir contra o governo, não é mesmo?
O padre rosnou alguma coisa ininteligível. Depois sua voz se fez clara e ele murmurou:
— Não é a Igreja que está com o governo. É o governo que está com a Igreja.
— Ahá! — e a gargalhada de Rodrigo encheu aquele pedaço da noite que parecia
envolver a casa. — Quando nós brigamos com os castelhanos, nossas bandeiras e nossas
espadas eram benzidas aqui pelos padres católicos. E os padres católicos lá da Banda
Oriental faziam o mesmo com as bandeiras e as espadas dos castelhanos. Como é que se
explica isso?
— Isso prova que a Igreja Católica é universal. Está acima das paixões e dos interesses
dos homens, que são todos iguais perante Deus.
— Iguais? Até os negros?
O padre teve um levíssimo instante de hesitação — não porque considerasse os negros
animais, mas porque lhe passou pela cabeça uma dúvida quanto à maneira como o outro
podia usar sua resposta.
— Até os negros, claro.
...
— Meu filho, aprenda uma coisa. Por que é que a Igreja tem sobrevivido através de
todos estes séculos?
- Por quê?
- Passam os reis, os conquistadores, os generais, os filósofos...
passa tudo. Mas a Igreja fica. Alguns pensam que é porque ela é de origem divina. —
Piscou um olho e pegou na fralda da camisa do outro. — Mas eu acho, e Deus me perdoe a
irreverência, que é um pouco porque nós os sacerdotes somos realistas. Realistas, está
ouvindo? Vosmecê sabe o que é um realista?
— Um homem do lado do rei?
O pe. Lara sacudiu a cabeça numa ardorosa negativa.
— Não. Um realista é um homem que nunca dá murro em ponta de faca. Deixa que os
outros deem... Boa noite, capitão, durma bem.
— Boa noite, vigário.
* * *
- Mas quem foi que lhe disse que a Bibiana gosta dele? Só naquele instante é que o padre percebeu que os Terras quase sempre principiavam suas sentenças com um mas; era o sinal de que estavam sempre discordando do que os outros diziam. Era a gente mais cabeçuda, mais teimosa que ele conhecia. ... - Ela pode gostar um pouco dele. Mas vai acabar esquecendo.
Arminda ergueu a cabeça.
- Esquecendo? - repetiu. - A Bibiana é bem como a avó, dessas que só gostam dum homem em toda a vida. Essas nunca esquecem. ... Pedro pôs-se de pé e gritou:
- Bibiana!
A moça apareceu.
- É verdade que vosmecê gosta deste tal Cap. Rodrigo?
Bibiana baixou os olhos. Viu as botas embarradas do pai, mas viu principalmente a face do Cap. Rodrigo. Tinha chegado a hora decisiva. Se mentisse, perderia o homem que amava. Se dissesse a verdade, poderia perdê-lo também, mas pelo menos ficaria, com o consolo de não ter mentido. Aconteça o que acontecer - resolveu - vou dizer a verdade. Sem erguer a cabeça, balbuciou:
- Gosto, papai.
- E vosmecê sabe que eu não gosto dele?
- Sei, sim senhor.
- E mesmo assim quer casar com ele?
- Eu não sei se ele quer casar comigo . . .
- Está visto que quer! Mas vosmecê está resolvida a arriscar a ser infeliz?
Ela ficou em silêncio por alguns segundos.
- Estou - disse, erguendo o rosto e encarando o pai.
O padre olhou para Pedro e sentiu um calafrio. O que via nos olhos, no rosto daquele homem era ciúme, um ciúme surdo, escondido, que ardia como brasa viva sob a cinza.
- Vosmecê alguma vez falou com esse homem? - tornou a perguntar Pedro Terra.
- Nunca, papai.
- E se eu lhe proibisse de falar com ele, que é que vosmecê fazia?
- Obedecia.
- E ficava triste?
- Ficava.
- Ficava com raiva de mim?
- Como é que a gente vai ficar com raiva do pai?
- Mas não acha que um dia vosmecê podia esquecer esse homem?
- Não acho, não senhor.
- Por quê?
- Porque sei o que sinto.
- Escute, minha filha. - A voz de Pedro ficou mais branda e ele chegou a dar um passo na direção da moça. O padre olhou para Arminda e viu que as mãos dela tremiam. - Vosmecê nunca se interessou por homem nenhum . . .
Bibiana meneou a cabeça afirmativamente.
- E vosmecê não sabe - continuou o pai - que esse homem não tem nada de seu a não ser um cavalo, um violão e uma espada? Que esse homem não tem nenhum ofício e nenhuma serventia? Não vê que vosmecê pode ser infeliz com ele, sempre com medo que ele possa abandonar a casa duma hora pra outra, e ir pra alguma aventura ou seguir outra mulher? Não sabe?
- Sei.
- E assim mesmo quer casar com ele?
- Se ele quiser, eu quero.
O padre agora via na moça a decisão de Ana Terra: o mesmo jeito de falar, quase a mesma voz. Teve saudade da velha, com quem costumava manter longas conversas ao pé do fogão, nas noites de inverno.
"E ao outro dia, como saíssem de Betânia, teve fome. E tendo visto ao longe uma figueira, foi lá a ver se acharia nela alguma coisa; e quando chegou a ela, nada achou, senão folhas, porque não era tempo de figos. E falando-lhe disse: Nunca jamais coma alguém fruto de ti para sempre; o que os discípulos ouviram. E no outro dia pela manhã, ao passarem pela figueira, viram que ela estava seca até as raízes."
"Noite de vento,
noite dos mortos...”
Observo que quanto mais simplicidade de maneiras e
conversa imprimo a meus atos, menos deferência recebo.
Os habitantes da Capitania do Rio Grande estão de
tal modo habituados ao militarismo e ao ar carrancudo
dos oficiais, que não acreditam em que uma pessoa
simples e honesta possa ter importância.
* * *
Sou valente com as armas, sou guapo como um leão. Índio velho sem governo Minha lei é o coração. Fui soldado, sentei praça, já servi numa guarita, agora sou ordenança de toda moça bonita. Esta noite dormi fora, na porta do meu amor; deu o vento na roseira me cobriu todo de flor.
Ana Terra & Pedro Missioneiro
Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando.
— Ana Terra
Noite medonha... Noite medonha... Rodrigo não se erguia. Não sabia que era que o
prendia àquela cadeira. Uma teimosia, uma vontade de contrariar os outros, um medo de...
Medo de quê? Escutou o vento. "Sua filhinha está muito mal..." Pois que esteja. Mulher
não faz falta no mundo. Que morra! As mulheres são falsas. Helga Kunz é uma cadela.
Que morra! Não sou curandeiro. Melhor é não ver nada. Não tem mais remédio. É
questão de horas. Não me adianta nada ir. Não gosto de choro. Um dia a guerra vem.
Tudo se resolve. A guerra e o tempo. Remédio pra tudo.
A Rosa Mística de Dali
— Nossa mente é como uma grande e misteriosa casa, cheia de corredores, alçapões, portas falsas, quartos secretos de todo o tamanho, uns bem, outros mal iluminados. No fundo desse casarão existe um cubículo, o mais secreto de todos, onde estão fechados os nossos pensamentos mais íntimos, nossos mais tenebrosos segredos, nossas lembranças mais temidas. Quando estamos acordados usamos apenas as salas principais, as que têm janelas para fora. Mas quando dormimos, o diabo nos entra na cabeça e vai exatamente abrir o cubículo misterioso para que as lembranças secretas saiam a assombrar o resto da casa.
Teiniaguá a malvada princesa moura que desgraça nossa vida
Eta mundo velho sem porteira!
Quais são teus inimigos?
Os bugres, as feras, as cobras, os castelhanos e o Regimento de Dragões.