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10 de fevereiro de 2024

Tango com violino: Eduardo Alves da Costa


Reunião do Clic em 19/09/2020

Eduardo Alves da Costa. Tango, com violino. São Paulo: Tordesilhas, 2014.


O livro apresenta, quase como um diário, de alguém que, ao se colocar em uma postura de espectador, descobre que, ainda que como espectador, continua intervindo no real. Não há como fugir da nossa forçada condição de protagonistas. Pelo menos, enquanto por aqui estivermos.

Mais do que “sacanagem”, que faz parte da vida, o relato de Abeliano mostra uma capacidade imensa de empatia, de colocar-se no lugar do outro, o que efetivamente, abre as portas pra tanto diálogo (e conquista também, por que não?). Quanto ao breve debate surgido no Clic acerca da esquisitice do nome “Abeliano”, uma das únicas vezes que me lembro de ter visto alguma referencia ao nome no texto, insinuava que, como era um nome iniciado por “Ab”, estava entre os primeiros da lista de chamada na escola, não pelos méritos escolares, mas pelo seu “lugar alfabético de fala”, aproveitando esse tema do “lugar de fala”, que tem se tornado tão intenso nos últimos tempos, e por onde passa, necessariamente, inclusive, os “feminismos” (sim, no plural, porque existem vários), os quais constituem lugares de fala plurais, como também vimos nos breves debates “cliqueanos”. 

Me chamou muita atenção, particularmente, os desencontros e reencontros, para os quais ele sempre produzia alguma explicação, seja porque andou muito devagar, como aconteceu no primeiro (des)encontro com Laura (p. 45), seja porque era arrastado misteriosamente, como aconteceu no encontro com a Morte, aqui metaforicamente representada pelo Machado de Assis, que dirigia uma “Venda Americana”, uma espécie de bazar, que dispunha das mais incríveis e impressionantes raridades e curiosidades. Me lembrei do filme de Robert Altman, “Short Cuts: cenas da vida”, onde personagens vagamente conectados vão se encontrando, com suas histórias de desencontros, produzindo uma narrativa cujo fio condutor é um atropelamento de uma criança, filha de um apresentador de TV. Aqui, no livro de Eduardo Alves da Costa, o fio condutor é dinâmico, são as suas intermináveis viagens de ônibus. Uma lógica parecida também, eu encontrei em outro filme dos anos 90, chamado “Antes da chuva”, um filme macedônio, onde pessoas se encontram e desencontram, mais se desencontram que encontram. 

Não faltam os momentos indignados, de uma crítica social enrustida, como quando o inseparável Theo, na viagem para contratar o ex-presidiário Militão, aquele que havia matado a mãe e jogado na caixa d´água, e que iria construir a espelunca da pipoca, pede que Abeliano recite alguns poemas, pra passar o tempo da viagem de ônibus até a oficina. A reação inesperada de Abeliano, vai lembrar ao perplexo Theo que “essa classe [dominante] intransigente e egoísta aferrolhou a cultura em pedaços delimitados, impedindo que o povo tivesse acesso a ela. Daí a ideia colonialista de levar (e ele sublinha o “levar”) cultura ao povo, o que equivale a uma confissão de segregação social, promovida pela indevidamente chamada elite”. Bem mais à frente, um discurso ainda mais contundente e radicalizado será feito pelo “palhaço da pipoca”, reproduzindo, para um público entre surpreso, indignado ou empolgado, uma espécie de novo manifesto comunista.  

Falando no Militão, aquele que matou a mãe e a cerrou no meio, jogando o corpo na caixa d´água, vale um registro breve de como o autor recupera traumas edipianos de vários personagens, como o próprio Abeliano com seu pai, a quem só perdoa já no final, após o encontro com a Morte, ou do Theo, fazendo uma descrição nada lisonjeira da sua mãe, como prostituta.

Um momento de grande inspiração, é quando ele reencontra a leitora que insistia que ele era um autor, apesar da sua recusa em assumir essa identidade. Ao não mais poder refutar que, de fato, era o autor, ele afirma “não confunda o poeta, inspirado, visionário, com o ser humano que o carrega. O poeta voa. Eu, pobre ser humano, ignorante, mesquinho, solitário, desiludido, rastejo. [...] Deixei-me apanhar pela flor carnívora da modernidade. Tornei-me uma espécie de cientista amalucado e estéril, que tudo coloca sob o microscópio e, de bisturi em punho, expõe as vísceras das emoções mais simples, à procura da verdade” (p. 303). Um drama, diga-se de passagem, sentido por muitos professores, particularmente os das áreas técnicas, em geral, positivistas até a raiz, quando descobrem, muito mais tarde, que essas raízes eram falsas. 

Mais poético foi a leitora, no seu papel de incentivar o autor, quando diz que “assim como o reflorestamento faz ressurgirem as nascente, o repovoamento da alma, ao trazer de volta os espécimes destruídos pela brutalidade dos fatos, pela desilusão, pelo excesso de consciência, pelo sofrimento... por todos os desastres, enfim, causados pela ignorância humana, deverá necessariamente nos devolver a leveza do ser, a inspiração, o encanto e, portanto, a poesia!” (p. 303).

A impressão que fica é que o autor resolveu contar, da forma mais simples que lhe parecia, ou seja, andando de ônibus urbano, os pedaços, também simples, com que se tecem uma vida, com todos os seus altos e baixos, seus dramas e alegrias, suas brincadeiras e amizades. Vida e experiência, é bom que se diga, vivida, toda ela, sobre este “bólido ensandecido, que se desloca na vastidão do universo, a mais de cem mil quilômetros por hora, sem apoio algum a não ser o tênue fio de sua órbita, seguro, na outra extremidade, pelos dedos de Deus. Um bibelô, um pequeno amusement divino, a ser lançado um dia à lixeira de algum buraco negro” (p. 352). 

Não podia ter outro final esse romance-poema que fala dos nossos pequenos grandes mundos, vividos, ora com atenção, ora distraidamente, até que a Morte, interagindo com a gente por meio de algum dos seus infinitos rostos, nos sugere um título para o caminho vivido, retirado de um antigo poema, que fizemos distraidamente e a que demos o título de “Tango, com violino”.

(Emmanuel)







Tópico: Clube de Leitura Icaraí

Livro - Tango, com violino: Eduardo Alves da Costa

Hora: 19 set 2020 17:00 - Icaraí

Entrar na reunião Zoom

ID da reunião: 822 9553 4151
Senha de acesso: 902931




   


Tangoleando


Aqui é o Brasilquerida; nossos nomes não significam porra nenhuma”


Talia


Não se esqueça do que lhe disse eu a propósito de ser. 
Às vezes o excesso de planos acaba por nos desviar da meta. 


Amor triste, desconsolado, sem esperança

Eu e Ela

Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;


Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.



Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más idéias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.



Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.



Outras vezes buscando distração,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiro,
Formando unicamente um coração.



Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavaleiro de Faublas...



Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'





Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada,
Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas.

(Roberto Piva)





Quando construíste as paredes

que hoje te aprisionam, sonhavas
ordenar tua vida, canalizá-la
em direção ao mais belo destino.

E assim, estagnados, teus dias
apodreceram e tuas ilusões
se precipitaram no lodo
de teus nobres princípios.

Mas não te desesperes. Desata
a magia e ela voará para além
de todas as leis conhecidas,
até o reino da Natureza Insondável.

Ela te libertará e te devolverá
a ti mesmo no dorso do Imprevisível,
esse tigre de múltiplas faces,
devorador de melancolias.


(não confunda autor com personagem)




Gutenberg multiplicou os pães sem o vinho
por isso a memória se tornou biblioteca
o canto livro
e o leitor fechou a janela, pôs chave na porta,
e comeu a boca.
Assim resmunga o poema que nos deixa em jejum
quando com fome lógica mastigamos sua letra. 

(Horacio, amigo do Abeliano)


Espero que a partir deste momento você comece a me amar


A CAMA DE PREGOS

Tenho o corpo varado de angústias
e não encontro posição de repouso.
Porque aos de minha geração
foi dado existir numa cama de pregos,
entre o espasmo e o grito,
antes da primeira frase se fazer orvalho
contra as paredes da cela.
Não há possibilidade de fuga
para nosso instinto.
querem que o sexo floresça e murche
em nossas próprias mãos;
ou que o orgasmo seja catalogado
e obedeça aos trâmites legais.
Não há caminho que nos leve à amada.
Todos os corredores conduzem ao vestíbulo,
onde uma enfermeira nos agarra
e nos faz preencher um questionário.
Esconderam as fêmeas em arcas de veludo
e nos iludem o apetite
com mulheres da vida,
com cineminhas mambembes
e filme de sacanagem.
Mas isto não nos basta,
é preciso um espaço infinito
para nos fazermos ao largo,
como jovens leões que se lançam à planície.
Ah, visões de antigos dias,
farândolas de faunos,
virgens consumidas,
olhos de ciclopes aguardando as madrugadas!

Não haverá nesta cidade uma única mulher
verdadeiramente no cio?
Quero agitá-la como uma bandeira
entre as estrelas
e vê-la tombar,
com a face tranquila.

Sim, deliro,
estamos todos loucos,
à beira do caos e do copo.
E contudo é preciso utilizar de alguma forma
esta convulsão incontida.
Mesmo que tudo termine
na cama de pregos,
seguros pela enfermeira
e cheirando clorofórmio.

Não, por Deus,
não me façam uma incisão no crânio.
Eu sei que estou preso num palácio de espelhos
e é preciso quebrar tudo!



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