Fundado em 28 de Setembro de 1998

14 de julho de 2020

Astronomia Literária com Gabriel García Márquez


Para ela, estava certo. Mas naquele dia começou a se dar conta de alguma coisa que ninguém havia descoberto e era que no transcurso do ano o sol ia mudando imperceptivelmente de posição e quem se sentava na varanda tinha que ir mudando de lugar pouco a pouco e sem o perceber. A partir de então, Úrsula tinha apenas que se lembrar da data para saber o lugar exato em que Amaranta estava sentada. Embora o tremor das mãos fosse cada vez mais perceptível e já não pudesse com o peso dos pés, nunca se vira a sua figura miudinha em tantos lugares ao mesmo tempo. Era quase tão diligente como quando arcava com toda a responsabilidade da casa. Entretanto, na impenetrável solidão da velhice, dispunha de tal clarividência para examinar mesmo os mais insignificantes acontecimentos da família que pela primeira vez viu com clareza as verdades que as suas ocupações de outros tempos lhe haviam impedido de ver. Na época em que preparavam José Arcadio para o seminário, já tinha feito uma recapitulação infinitesimal da vida da casa desde a fundação de Macondo e havia mudado completamente a opinião que tivera dos seus descendentes. Percebeu que o Coronel Aureliano Buendía não tinha perdido o afeto à família por causa do endurecimento da guerra, como ela acreditava antes, mas que nunca tinha amado ninguém, nem sequer a sua esposa Remedios ou as incontáveis mulheres de uma noite que haviam passado pela sua vida e muito menos ainda os seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por idealismo, como todo mundo pensava, nem tinha renunciado à vitória iminente por cansaço, como todo mundo pensava, mas que tinha ganho e perdido pelo mesmo motivo, por pura e pecaminosa soberba. Chegou à conclusão de que aquele filho por quem ela teria dado a vida era simplesmente um homem incapacitado para o amor. Uma noite, quando o tinha no ventre, ouviu-o chorar. Era um lamento tão definido que José Arcadio Buendía acordou do seu lado e se alegrou com a ideia de que a criança ia ser ventríloqua. Outras pessoas prognosticaram que seria adivinho. Ela, pelo contrário, estremeceu com a certeza de que aquele bramido profundo era um primeiro indício do temível rabo de porco e rogou a Deus que lhe deixasse morrer a criatura no ventre. Mas a lucidez da velhice lhe permitiu ver, e assim o repetiu muitas vezes, que o choro das crianças no ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia nem de faculdade adivinhatória, mas um sinal inequívoco de incapacidade para o amor. Aquela desvalorização da imagem do filho despertou-lhe de uma vez toda a compaixão que estava devendo a ele. Amaranta, pelo contrário, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, foi revelada no último exame como a mulher mais terna que jamais pudesse haver existido e compreendeu com uma penosa clarividência que as injustas torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo pensava, nem o lento martírio com que frustrara a vida do Coronel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pelo fel ruim da sua amargura, como todo mundo pensava, mas sim que ambas as ações tinham sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e triunfara finalmente o medo irracional que Amaranta sempre tivera do seu próprio e atormentado coração. Foi por essa época que Úrsula começou a se referir a Rebeca, a evocá-la com um velho carinho exaltado pelo arrependimento tardio e pela admiração repentina, tendo compreendido que somente ela, Rebeca, a que nunca se alimentara do seu leite e sim da terra e da cal das paredes, a que não levara nas veias o sangue do seu sangue e sim o sangue desconhecido de desconhecidos cujos ossos continuavam chocalhando na tumba, Rebeca, a do coração impaciente, a do ventre arrebatado, era a única que tinha tido a valentia sem freios que Úrsula desejara para a sua estirpe.





NO ATURDIMENTO dos últimos anos, Úrsula dispusera de tréguas muito escassas para atender à formação papal de José Arcadio, quando ele teve que ser preparado às carreiras para ir para o seminário. Meme, sua irmã, dividida entre a rigidez de Fernanda e as amarguras de Amaranta, chegou quase ao mesmo tempo à idade prevista para mandá-la ao colégio de freiras onde fariam dela uma virtuose do clavicórdio. Úrsula se sentia atormentada por dúvidas graves em torno da eficácia dos métodos com que temperara o espírito do lânguido aprendiz de Sumo Pontífice e não jogava a culpa na sua tropeçante velhice nem nas nuvens que mal lhe permitiam vislumbrar o contorno das coisas e sim em alguma coisa que ela mesma não conseguia definir mas que imaginava confusamente como um progressivo desgaste do tempo. “Os anos de agora já não vêm como os de antigamente”, costumava dizer, sentindo que a realidade cotidiana lhe escapava das mãos. Antigamente, pensava, as crianças demoravam muito para crescer. Bastava recordar todo o tempo que fora necessário para que José Arcadio, o mais velho, partisse com os ciganos e tudo o que acontecera até que ele voltasse pintado como uma cobra e falando como um astrônomo, e as coisas que tinham acontecido em casa até que Amaranta e Arcadio esquecessem a língua dos índios e aprendessem o castelhano. Que se visse o sol e o sereno que suportara o pobre José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro, e o quanto tivera que chorar a sua morte antes que lhe trouxessem moribundo um Coronel Aureliano Buendía que, depois de tanta guerra e depois de tanto se sofrer por ele, ainda não tinha feito cinqüenta anos.


Por esses dias reapareceu José Arcadio Segundo em casa. Passava de longe pela varanda, sem cumprimentar ninguém, e se trancava na oficina para conversar com o coronel. Apesar de não poder vê -lo, Úrsula estudava ruído das suas botas de capataz e se surpreendia com a distância irremediável que separava da família, inclusive do irmão gêmeo, com quem brincava na infância os engenhosos truques de confusão e com o qual já não tinha nenhum traço em comum. Era comprido, solene, e tinha um ar pensativo, e uma tristeza de sarraceno, e um brilho lúgubre no rosto cor de outono. Era o que mais se parecia com a mãe, Santa Sofía de la Piedad. Úrsula reprovava em si a tendência a se esquecer dele ao falar da família, mas quando o sentiu de novo em casa e percebeu que o coronel o admitia na oficina durante as horas de trabalho, voltou a examinar as suas velhas lembranças e confirmou a crença de que em algum momento da infância ele se confundira com o irmão gêmeo, porque era ele e não o outro quem devia se chamar Aureliano. Ninguém conhecia os pormenores da sua vida. Em certa época, sabia-se que não tinha residência fixa, que criava galos na casa de Pilar Ternera e que às vezes ficava para dormir ali, mas que quase sempre passava a noite nos quartos das matronas francesas. Andava à deriva, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula.

Ensinou o pequeno Aureliano a ler e a escrever, iniciou-o no estudo dos pergaminhos e incutiu-lhe uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia bananeira que muitos anos depois, quando Aureliano se incorporasse ao mundo, haveria de se pensar que contava uma versão alucinada, porque era radicalmente contrária à falsa que os historiadores tinham admitido e consagrado nos textos escolares. No quartinho isolado, aonde nunca chegou o vento árido, nem a poeira, nem o calor, ambos recordavam a visão atávica de um ancião de chapéu de asas de corvo que falava do mundo de costas para a janela, muitos anos antes que eles nascessem. Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcadio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez bastante para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada.




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