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19 de julho de 2020

A biblioteca elementar: Alberto Mussa












Nada é mais estúpido do que a ideia de progresso. Tanto que a humanidade involui; a humanidade se degenera gradativamente, num processo natural, biológico mesmo, que se tornou mais rápido com o advento das civilizações.

  É provável que muitos discordem, que não considerem qualidade a obsessão pelo dinheiro. Mas a opinião da maioria é quase sempre a pior: para Violante, para os ciganos do Rio de Janeiro, a riqueza é apenas um resultado, um mero índice de existência, na pessoa, da qualidade superior entre todas: a sorte. Ter sorte, ser afortunado, no pensamento dos ciganos cariocas, é uma característica tão física, tão material quanta a força, a beleza, a inteligência. 

    No primitivo mundo árabe, a virilidade se originava da mulher, que a transmitia aos homens.

    Não me atrevi ainda, por exemplo, a descrever a personagem de Ângela Pacheca, a mais bela entre todas, pois isso me exigiria conhecimentos matemáticos de que não disponho. Ângela é, na Rua do Egito, a mulher do n maior que 3, sendo n o número de dimensões do espaço discerníveis pelo olho humano. Ângela vai além da geometria clássica e da álgebra linear, talvez mesmo da análise complexa. 



     Na quitanda do Alarcão, onde tudo começa, há um grande debate sobre os destinos da Rua do Egito: nunca tinha havido tragédia como aquela, com tantos moradores presos, em tão pouco tempo. É quando a Moura espalha sua teoria: Silvério Cid nunca foi Silvério Cid - mas o seu oposto. Ensinava, o livro dos enigmas, que a verdade não se encontra na resposta certa.

     Tal conclusão, que escandaliza a rua, se baseia num único elemento: o fato de o pretenso Silvério, licenciado em Astronomia e matemáticas pela Universidade de Coimbra, desprezar o verdadeiro tesouro que existia no sobrado de Ramiro D'Ávila: a biblioteca. 




     "O parágrafo 9º do título 25 das Ordenações Filipinas, ainda vigentes em 1733, trata do marido que consente no adultério da mulher. A pena cominada, para ambos, são açoites; levarem na cabeça chapéus de chifres; e serem degradados para o Brasil. A moderna acepção de 'corno', portanto, deriva desse antigo dispositivo legal, que remonta à Idade Média"




     Ângela Pacheca, quiromante, não domina esses segredos; mas conhece outros. No domingo, dia 1°, dia do encontro entre Gaspar e Timo Riho, toca, de manhã, ainda na cama, as mãos do marido. E pressente que aquelas linhas - lidas já uma centena de vezes - têm algo novo a dizer.

     Permitam-me um parêntese: não ignora, Ângela, que as linhas inscritas na palma da mão (como impressões digitais) não mudam de aspecto. Como, então (perguntaremos), poderia haver algo inédito na mão de Gaspar? Esse é o segredo da Pacheca, a ciência e o legado das ciganas quiromantes do Rio de Janeiro: não é o livro que importa - mas a leitura. A palma da mão também é, nesse sentido, uma biblioteca elementar. 





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