Mary Zaidan Noblat |
O corpo da jovem estava de cara para
o chão, no barro do subúrbio, desde as primeiras horas da madrugada. Quando os
moradores começaram a circular em direção ao trabalho, o cadáver foi avistado
por uma mulher, que soltou um grito de pavor, cortando a penumbra: “Meu Deus!” Ela benzeu-se e seguiu adiante.
O dia clareou, e só então a vizinhança
rodeou o corpo, que foi coberto com uma toalha de mesa. A mortalha era curta e
deixava os pés à mostra. Ninguém a conhecia. “A gente ouviu uns tiros de
madrugada...”. “Isso aqui tá ficando um perigo...”. “Vai ver tava devendo à boca e desovaram aqui”. “A bandidagem não perdoa”.
Crianças
passavam a caminho do colégio. Queriam espiar, as mães não deixavam. “Eu não
quero vocês na rua à noite! Ouviram? Me obedeçam, pelo amor de Deus!”. Puxavam
os pequenos pelas mãos.
O bar-mercearia iniciou o
atendimento. Depois foi a vez da Igreja Redentores de Jesus Engrandecido
levantar as portas de aço. A pastora pendurou a placa no poste próximo ao corpo:
SEGUNDA FEIRA: DIA DA SALVAÇÃO E REDENÇÃO
DOS PECADOS. “Isto é obra do Diabo! A salvação está em Jesus! Vamos
glorificar o Senhor!”. Conclamou num grito, para que todos escutassem.
Passavam agora estudantes do Ensino
Médio. As moças se encolhiam, os rapazes iam averiguar e retornavam comentando:
“É uma garota”. “Tiro na cabeça”. “Não é
da área”. E seguiam alheios aos riscos
que rondam os jovens negros da periferia.
A polícia militar chegou ao local. O
carro oficial entrou vagarosamente na rua. Um sargento ao volante, acompanhado
de um cabo, que carregava o fuzil com a ponta para fora da janela. As pessoas
afastaram-se. Os policiais deixaram o veículo. O cabo ficou em guarda, com seu
fuzil e olhar ameaçador. O sargento aproximou-se
do corpo e levantou o manto. Depois deu ordens para não permitir a aproximação
de mais ninguém. Voltou à viatura e
dirigiu-se à Delegacia de Homicídios, para o registro do caso.
Entardecia. A morta já não
despertava tanta atenção. O que mais se comentava era a demora da perícia e a
remoção do cadáver.
-
Se fosse na Zona Sul, o rabecão já teria chegado.
- Já
viu algum defunto largado no Leblon?
-
Nunca!
Quase anoitecendo, a perícia chegou.
Reuniram-se novamente alguns moradores para verem o trabalho dos peritos e
anotarem a placa dos automóveis para o jogo do bicho no dia seguinte.
Os peritos realizaram o seu trabalho
e identificaram a morta. Maria Alice da Silva era o seu nome.
...
Quando Maria Alice se arrumava para
o baile de domingo a mãe teve um mau pressentimento e pediu-lhe que desta vez
ela não fosse. Mas a filha insistiu e saiu. Na rua, Maria Alice encontrou seus
amigos. O grupo tinha pouco dinheiro; combinaram então que voltariam a pé.
O baile estava animado, e o grupo
divertiu-se até a meia-noite. Deixaram o local e deram início à
longa caminhada.
Retornavam alegres. Brincavam uns
com os outros Riam. Falavam alto. Contavam os acontecimentos da noite.
O
grupo encurtava caminho por ruas desertas e escuras, até que avistaram uma
equipe de soldados da polícia militar. Um medo atávico e terrível percorreu a
pele, o sangue, os ossos e os nervos dos rapazes e moças. Passaram pelos
policiais no mais profundo silêncio, quando escutaram a voz de comando: “PARA!
PARA! MÃO NA CABEÇA!” Mas eles correram.
Revisão: Professor Luiz Antônio de Barros
Hélio, gostei muito da sua crônica. Ela faz a gente refletir sobre o quanto as pessoas estão "frias" com o outro. Estão mais preocupadas com seus afazeres domésticos, com seu dia a dia. A crônica também traz uma crítica sobre o julgamento precipitado que fazemos das pessoas.
ResponderExcluirMuito obrigado.
ExcluirConciso e potente, assim é o DNA desse excelente escritor. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Evandro. Você sempre me incentivando.
ExcluirPerfeito, o cotidiano das comunidades descrito abertamente e diretamente. Excelente trabalho...
ResponderExcluirCrônica incrível! Mostra a desumanização do homem contemporâneo. Grande abraço!
ResponderExcluirAgradeço o comentário.
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