ELA MORAVA SOZINHA
Ela morava sozinha. Não era bonita, era linda. Há uma
diferença, explico. Não é que linda seja apenas mais bonita do que a bonita.
Linda é que, além de bonita, ou mesmo que não seja tão bonita, linda tem
personalidade, tem charme, exala inteligência. Tudo isso faz da linda muito
mais bonita do que a bonita. Linda, é a tal coisa, extrapola limites, medidas,
altura ou idade. Está acima dessas coisas que as bonitas precisam e se apegam
como se fosse tudo o que têm na vida. Linda é outro departamento. É como se a
lindeza vivesse dentro dela e, mais que isso, e por causa disso, também ao
redor. Uma aura. É por isso que é difícil para os homens se aproximarem das
lindas. Aquela aura dourada, ou lilás, ou roseada (a tonalidade depende das peculiaridades
da linda), cria um campo de exclusão que seres inferiores, como eu, sequer
conseguem se imaginar adentrando. Ela era assim, linda, inacessivel. E morava
sozinha. E, repare bem, eu digo sozinha,
não digo só. Porque só, só no mundo,
era eu. Estou só desde que me entendo por gente, criança, pelas ruas. Eu sou o
próprio Só. Ela, não, ela era o
próprio Universo. Morava sozinha, como se fosse impossível habitá-la. Não era
um planeta, era uma estrela, um sol, e a luz e o fogo eram demais para nós,
pobres mortais. Morar sozinha era só um detalhe do seu charme.
Conto tudo isso para o senhor entender como cheguei a
esse ponto, doutor.
Havia esse meu amigo, o Jessé. Ele gostava de ser
chamado de Jece, como o Jece Valadão, fama de cafajeste, de comedor, mas ele é
Jessé mesmo, nome bíblico, não comia nem... deixa pra lá. Jessé era um cara
doce, sabe, mas só que ele não sabia disso. Ele pensava que era coração mole,
que era otário, babaca, quase florzinha porque não conseguia pegar numa arma,
porra, como pode alguém na nossa profissão ter essa caraminhola na cabeça? O
cara só queria saber de roubo de casa vazia. Sem contato com a vítima. Não é
que ele tinha medo de ser pego; ele tinha medo é de olhar nos olhos da pessoa.
Não aguentava ver o medo estampado na cara do assaltado. Uma vez ele tentou,
mas quando viu o olhar da mulher ficou paralisado, confuso, quase foi pego pela
polícia. Ficou um tempo atormentado. Não sabia que era doce. Jessé era quase um
poeta metido no crime, uma aberração. Só voltou a roubar depois que enviou uma
carta pedindo desculpas para aquela senhora, acredita? Foi aí que decidiu só
roubar casa vazia. Eu acompanhava, né? Alguém tinha que tomar conta daquele
maluco. É meu amigo, gente boa, mas quando entrava numa casa vazia parecia que
queria tomar posse da própria casa. Abria geladeira, comia, bebia, usava o
banheiro. Via televisão, deitava na cama. Isso era lei pra ele. Parecia o dono.
Um prazer maluco, enquanto eu tinha que ficar apressando o cara, “vambora rapaz, daqui a pouco os donos
chegam”. Bem dizer, quem fazia a limpa era eu, pegava os badulaques enquanto
Jessé curtia a casa.
Até que ela apareceu, para enlouquecer a nossa vida.
Ela morava sozinha. Eu e o Jessé sabíamos. Ela chamou
nossa atenção, e, o senhor sabe, nosso ofício é roubar. Foi aí que ele disse:
essa mulher deve ter som, tevê de plasma e o escambau. E jóias, laptop, dinheiro
em casa, talvez até dólar – eu completei. Daí foi só fazer o plano para entrar.
O prédio é pequeno e não tem porteiro depois das cinco da tarde. Observamos que
toda quarta-feira ela saía por volta das sete da noite. Foi só esperar ela
sair. Cruzamos com ela em frente ao portão como se estivéssemos indo para algum
apartamento (assim que ela apareceu, larguei o dedo do interfone e gritei
“abriu!”), dei um boa-noite com um sorriso agradecido e segurei com a mão o
portão antes que batesse. Lá em cima, arrombamos a porta e entramos. Nisso o
Jessé era bom. Abria portas como um mágico. Parecia uma criança diante de um
jogo.
Tudo ia como de praxe, Jessé já estava deitado na cama
da lindona, abraçava o travesseiro, dizia que sentia o perfume, enquanto eu
recolhia tudo que pudesse caber na mala que levamos. Não sei, doutor, se ela
voltou antes do previsto ou se foi o Jessé que se demorou demais nos salamaleques
com as coisas do apartamento. Dessa vez ele quis até tomar banho. só pra usar a
toalha da mulher. Bem, isso foi o que eu pensei de início, mas depois vi que
ele pegou uma toalha nova, cor de vinho, que, depois de usar, pendurou bem
dobrada ao lado da toalha da dona, que era rosinha. Ficaram lá, as duas
toalhas, de cores que pareciam formar um casal. Meus apelos de apressura não
adiantaram, doutor, e ademais eu já estava ficando meio atordoado com aquela
coisa toda do Jessé, aquele ritual, aquele teatro, o cara não via outra coisa,
só a vida que havia naquele apartamento, impregnada nos móveis, nos objetos,
ele ficava imaginando os passos, os gestos da mulher pela casa.
De repente ela chega no apartamento e nos vê em seu
quarto. Foi um susto. Nenhum daqueles olhos queria estar ali vendo o outro. Ela
olhou para a mala, aberta, com as coisas dela ali. Entendeu. Eu me adiantei,
puxei o canivete e gritei “perdeu, dona!” Ela não se perturbou. Fechou a cara,
com
aquela personalidade, mas não disse um “ai”. Jessé e
eu, com a maior cara de culpa, tratamos de encerrar os trabalhos, fechar a
mala. Mas eu ainda não havia achado dinheiro. Fui pra cima dela, apontei a
lâmina e perguntei da grana. Ela olhou fixo nos meus olhos. Juro que achei que
seu olhar me dizia “seu incompetente... há tanto tempo aqui e ainda não achou o
dinheiro!” Aquilo me deu raiva e saí esbravejando com ela. Foi quando a
desgraçada disse “isso não é justo!”. “Mas, dona, desde quando assalto é
justo?”, respondi. Ficou essa conversa de maluco, e o Jessé mudo, abobalhado,
sem saber o que fazer. Eu pedia o dinheiro e ela se fazia de difícil. A coisa
estava saindo de controle. Comecei a gritar, ameaçar. Aí ela falou: vocês
querem abusar de mim. Não sei de onde ela tirou isso, eu juro. Jessé deu um salto
apressado e se pronunciou: nós não fazemos estrupo
não, senhora! “Es-tu-pro” – ela corrigiu, humilhando o coitado. E continuou a humilhação:
“vocês não sabem português mesmo... quando eu falei vocês querem abusar de mim, aquilo foi uma pergunta, imbecis”.
Jessé abriu um olhão esbugalhado. E eu não sabia se estava entendendo o jogo
daquela mulher. Aquilo estava ficando perigoso. Abusar? Abusar como? Se a gente
quer? Porra... que papo é esse? “É uma questão de justiça”, voltou ela com esse
argumento de doido. “Vocês vão me levar tudo e não vão dar nada em troca? Ah,
não...”
A coisa estava nesse ponto quando as sirenes da
polícia soaram lá embaixo. Olhei pela janela e vi uma patrulha e um camburão e
os homens entrando no prédio fortemente armados. Olhei para a vaca. Ela sorriu.
Saquei que havia ligado pro 190 quando viu o apartamento arrombado. Jessé
estava apavorado, não juntava as ideias, muito menos as palavras. Ela fechou a
porta do quarto, trancou, pegou duas camisolas curtas, transparentes, com rendinha,
daquelas bem sex, e disse: “vistam!”
Eu nem sabia que existia camisola daquele jeito nesse mundo, doutor. “Se
quiserem que eu livre a cara de vocês, vistam!”, ela mandou. Mas antes,
orientou. Virou pro Jessé e disse: “você, veste a branca”. Jessé, que é negro,
vestiu a camisolinha branca e eu, branco, vesti a preta. “Sempre tive essa
fantasia e a transa vai ser assim, ok?” A situação obrigava, doutor, fazer o
quê?
Quando a polícia entrou no quarto, ela já estava com
dinheiro na mão. Virou pros polícias
e deu uma bronca, “mas o que é isso?” Nessa hora, entregou o dinheiro na minha
mão e convenceu os meganhas de que eu e Jessé estávamos ali “prestando
serviços”. “Olha só a roupinha deles, não estão umas gracinhas?”, ela disse. A
poliçada caiu na gargalhada e foi embora, convencida de que a ligação havia
partido de algum vizinho moralista ou invejoso. Sabe, doutor, aquilo foi
humilhante, mas também foi um alívio. Jessé estava quase infartando, o negão já
estava branco. E não é pelo fato de que ela é linda, mais gostosa do que a
imaginação é capaz de imaginar, o caso é que temos que ter ética. Ela livrou
nossa cara. Tínhamos que cumprir o combinado. Ela veio para a cama e a coisa
aconteceu, nós três lá, tudo junto e misturado, eu e Jessé com as camisolas de
rendinha.
Depois daquele dia, mantivemos toda semana o nosso
encontro a três. Usávamos a indumentária, sempre, ela não abria mão. Mas ela
era tão linda, tão inacessível para nós, que valia a pena. Já estávamos até
acostumados. Um dia, Jessé chegou a comprar espartilho e cinta-liga. Ela ficou
doida, foi uma festa.
O desencontro aconteceu por causa disso. O Jessé.
Pirou o cabeção. Se apaixonou. Começou a viver no mundo da lua, a cabeça nas
nuvens. Eu disse pra ele: “meu amigo, acorda!, o que você está pensando?!” Sabe
o que ele me respondeu? “Depois dela, não tenho mais pensamento, só pensavento”. Porra, um poeta no crime! Anarquizou
a coisa toda. Eu querendo sexo com a lindona e ele falando de amor. Eu querendo
roubar umas casas e ele falando em casar, em ter a casa dele, com a mulher
dele. Eu disse: “escuta aqui, ô Jessé, você está subvertendo as coisas. Deixa
eu te lembrar: ladrão só tem apego pelas coisas dos outros! Onde já se viu
ladrão se preocupar com seus próprios pertences? Tá virando burguês, é? Quer uma
vidinha assentada, com patrimônio e coisa e tal? Tem certeza de que quer mudar
de lado? Passar a ser vítima de ladrões? Já pensou? A cidade anda muito
perigosa...”
Eu avisei, doutor, que aquilo não ia dar certo. O pior
foi o ciúme. Nosso encontro tinha um limite e ele não entendeu. Confesso pro
senhor que aquilo também me afetou. Eu sempre fui só, o Senhor Só, e bem ou mal eu tinha ali uma família. Depois da cama
rolava um jantarzinho, eu fazia um macarrão, ela abria um vinho. Durante o
jantar ela conversava com a gente, perguntava da nossa vida, parecia que se
importava. Eu sabia que não, na verdade não, mas gostava de ouvir ela
perguntar.
De repente ela parou de nos chamar pro apartamento
dela. Um mês, dois meses, e nada. Agora estamos aqui, nós dois. O senhor podia
ser o delegado e eu estaria aqui contando os meus crimes e o meu envolvimento
com essa linda. O doutor podia ser um psicólogo e eu aqui, tentando entender
meu destino. Mas, não. O senhor é o filho-da-puta que apareceu na vida da nossa
lindona. Tá feliz?... Tá achando que encontrou o amor de sua vida?... É... Mas
foi por causa do doutorzinho que ela deu um chute de vez na nossa bunda. Até
avisou pelo telefone: “estou comprometida, sumam!” Meu amigo Jessé está
inconsolável. Chora de um jeito que nem a poesia conhece. E eu perdi a minha
família. Voltei a ser só, só no mundo, estou só até dentro de mim. Não tenho
nem mais aquela mentira pra me consolar. Só que, veja bem doutor, o Jessé é
doce. Eu não. Eu arranjei esse companheiro aqui. Conhece? É um 38. E sabe com
quem eu vou gastar a primeira bala?
Newton, maravilha de conto, bem construído, engraçado, personagens fortes, mostra o bem e o mal em todos nós. Bom de ler e reler e reler e reler. Parabéns!!!
ResponderExcluirInusitada a personagem feminina, muito gostoso de ser lido! Valeu a pena!
ResponderExcluirGostei do Senhor Só,e doestar só...narrativa leve com um tema tão denso....Parabens!Como disse a Rita,vc arrazou! Ceci
ResponderExcluirNovaes, mergulhei na sua narrativa, maravilhosa! Que personagens! Que arrojo! Parabens!Zeze
ResponderExcluirUm conto com o já reconhecido estilo do autor, e com aquela pegada típica do Brocador.
ResponderExcluirParabéns, Newton. Você enganou bem o leitor para chegar a um final inusitado e surpreendente.
ResponderExcluirque maravilha de conto, ameiiiiiiiiiiii. espartilho,camisolinha sexys rsrsr, suspense para o leitor imaginar quem é o doutor, um triângulo amoroso muito bom. Você sempre a me surpreender com suas narrativas intensas e filosóficas.
ResponderExcluirÓtima história! Criativa e bem contada!
ResponderExcluirNewton não me canso de ler esse conto. E quanto mais leio, mais encantada fico. Escreva muitos outros. Aguardamos.
ResponderExcluirMais uma vez, Parabéns!
Elenir
Newton, amei!
ResponderExcluirQuanta imaginação!
Parabéns!
Beijos ternos, Vera.
Que "dupla" você e Rita fazem...
Excelente, meu caro Barra. Conto danado de gostoso e bem escrito. Bom de verdade.
ResponderExcluirCarlos Rosa